Da Violência à Paz
by Homero Reis©
O Cálice e a Espada (Riane Eisler)[1], é um livro essencial. A partir de uma pesquisa longitudinal de dez anos, o que ela nos oferece não é apenas uma interpretação da história humana, mas uma proposta para o porvir. Lê-lo fez-me sentir como se tivesse em mãos, duas chaves simbólicas. Uma abre a porta da violência que atravessa nossa história; a outra abre a possibilidade de um futuro tecido pela paz.
Ela nos desafia a reconhecer que a forma como estruturamos a vida em sociedade não é a única possível. Somos filhos de escolhas, e podemos escolher de novo. De fato, como gosto de dizer, “o futuro não existe como tal. Somos frutos de nossas escolhas”.
A pergunta desafiadora que me atravessa ao ler Eisler é simples e poderosa: existiram sociedades pacíficas em nossa história? Se a resposta for “sim”, então a violência que naturalizamos como destino é evitável. Ela é apenas uma narrativa dominante. E se houve outras narrativas de parceria, cuidado e respeito, então nós podemos, hoje, recontar a nossa história e reescrevê-la no presente a partir de outras perspectivas.
O que lhes quero trazer nesse texto é minha visão e algumas reflexões sobre o trabalho de Eisler.
A metáfora central é luminosa. O cálice simboliza culturas matrísticas, voltadas ao acolhimento, à nutrição, à vida que se renovam no ventre e no vínculo. É um recipiente sagrado que guarda e compartilha; é a taça que une, não a lâmina que separa. Em contrapartida, a espada representa as culturas patriarcais, fundadas na violência, na guerra e na exploração. A espada corta, fere, divide. É o símbolo da dominação que sustenta a crença de que só pela força se constrói um mundo melhor.
Durante trinta mil anos, as sociedades patriarcais nos ensinaram que a guerra e a exploração eram os motores do progresso. Esse conceito nasce do discurso de que a violência pode ser legitimada em macro ou micro escala. É a ideia do mais forte contra o mais fraco, do “olho por olho e do dente por dente”. A lógica é simples e brutal: se não posso explorar, eu guerreio para conquistar. E assim consolidamos a ideia de que dominar é a única forma legítima de nos relacionarmos. Mas Eisler nos lembra: isso não é destino, é escolha. E escolhas podem ser revistas.
O nascimento das perguntas humanas
Se voltarmos à pré-história, percebemos que a narrativa hostórico-social nasce de três perguntas fundantes: De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos?
Essas questões ecoam desde as pinturas rupestres até as filosofias contemporâneas. Não temos respostas definitivas. O que temos são narrativas, crenças, mitos. E esses mitos moldam a forma como nos relacionamos.
O fato incontornável que as primeiras sociedades puderam observar era simples: todos nós viemos da mulher. O vínculo entre ato sexual e gravidez era invisível ao olhar imediato. O tempo entre o coito e os sinais da gestação era longo demais para ser percebido. Por isso, os povos primitivos só podiam concluir uma coisa: a vida nasce da mulher, assim como todo animal nasce de sua mãe. Mas, como não era visível a relação entre coito e gravidez, as comunidades primitivas acreditavam na ideia de que a fecundação era um “ato dos deuses”, e, portanto, a mulher era o caminho pelo qual a divindade entrava na história humana. Tanto é que as narrativas das concepções divinas são comuns na história. As mais conhecidas são: o nascimento de Hércules, filho de Zeus com a mortal Alcmena; e o nascimento de Jesus, filho de Jeová com Maria. No entanto, há várias outras histórias semelhantes. Essa percepção fundou uma forma de organização relacional: a cultura matrística, baseada no acolhimento, no cuidado e na integração, tendo por centralidade a figura feminina.
Nessas culturas, havia luta, competição, conflitos, mas não havia a violência como princípio. Divergir não era destruir; disputar não era exterminar. O ventre materno era metáfora de comunidade: nele cabiam todos, sem distinção. Esse modelo ainda existe entre nós. Os jogos olímpicos, por exemplo, são expressões de competição, luta e disputa, mas não de inimizades ou violência.
A transição para a dominação
Com o tempo, a humanidade percebeu o papel masculino na concepção. O esperma passou a ser visto como a semente indispensável da vida. E a narrativa mudou: do ventre da mulher para a “semente” do homem. A sacralidade feminina foi sendo substituída pela supremacia masculina. E com ela nasceram estruturas patriarcais que subjugaram e extinguiram sociedades matrísticas inteiras.
Essa mudança não foi apenas biológica, foi política. A dominação masculina não se impôs pela persuasão, mas pela violência, pela criação de mitos aterrorizantes e pela manipulação da ignorância. Se uma colheita queimava, era porque a divindade masculina exigia submissão. Se uma doença devastava, era punição por não obedecer. Surgiu a figura dos intermediários, sacerdotes que não apenas cuidavam da espiritualidade, mas a usavam para impor medo e controle. Criou-se o inferno como ameaça e a salvação como barganha. A espada substituiu o cálice. O medo passou a reger o vínculo. A relação deixou de ser parceria e tornou-se hierarquia.
Quando penso no que significa viver em uma cultura patriarcal, vejo diante de mim um espelho que, por séculos, refletiu apenas um lado da humanidade. É como se tivéssemos aprendido a caminhar usando apenas uma perna: conseguimos nos mover, mas de forma manquitola, instável, sempre desequilibrada. A cultura patriarcal nos fez acreditar que a força, a dominação e a hierarquia eram os únicos instrumentos capazes de sustentar a vida em sociedade.
Essa cultura se estrutura em dois eixos principais: a guerra e a exploração. Se não é possível explorar, guerreia-se para conquistar e explorar depois. Ao longo da história, povos foram dominados, riquezas expropriadas, culturas inteiras sufocadas por esse modelo. A espada se tornou metáfora e prática: ela corta, divide, subjuga. Aprendemos a acreditar que sem espada não haveria ordem, progresso, futuro. Daí para o conceito de supremacia do homem, foi fácil. E dessa facilidade para se “legitimar” uma narrativa da “submissão” da mulher foi mais fácil ainda. Com isso “aceitamos” relações tóxicas, comportamentos abusivos. O feminicidio e a violência de gênero estão por todos os lados.
Mas o patriarcado não se limita a campos de batalha ou tratados políticos. Ele se infiltra no cotidiano. Está na maneira como famílias foram organizadas sob o mando do homem, no modo como religiões ergueram deuses masculinos guerreiros, na ideia de que obediência é mais importante que diálogo. Está na crença de que a violência é inevitável e até necessária. Crescemos naturalizando isso, como se fosse a ordem das coisas.
A cultura patriarcal, no fundo, é uma narrativa de poder. É a manipulação da ignorância para manter a dominação. Foi assim quando povos inteiros foram convencidos de que um deus vingativo exigia submissão sob pena de castigo e sacríficos. Foi assim quando se construiu o medo do inferno como ferramenta de controle. É assim ainda hoje, quando líderes se apresentam como salvadores da pátria, sustentando-se na lógica da força e da intimidação.
O preço dessa narrativa é alto. Perdemos a capacidade de nos indignar com o absurdo. Aceitamos fome em meio à abundância, exclusão em meio à tecnologia, guerras em meio a tantas alternativas de diálogo. É como se a cultura patriarcal tivesse anestesiado nossa sensibilidade, tornando normal o que deveria nos escandalizar.
O patriarcado nos ensina a ver diferenças como ameaças e não como riquezas. Ele nos faz acreditar que o outro só pode existir sob minha condição: ou se submete, ou é inimigo. A diversidade, que poderia ser um mosaico vivo de possibilidades humanas, é reduzida a fronteiras rígidas. Quem pensa diferente vira adversário; quem é vulnerável vira descartável.
Ao refletir sobre isso, percebo que a cultura patriarcal é como uma lente que distorce o real. Ao invés de enxergar o mundo como uma teia interdependente, ela o apresenta como um campo de batalha. Ao invés de percebermos a vida como dom compartilhado, passamos a vê-la como território a ser conquistado.
Desmontar essa lente não é fácil, porque crescemos dentro dela. Mas é necessário e urgente. Se quisermos um futuro sustentável, justo e humano, precisamos questionar a herança patriarcal que ainda orienta nossas escolhas. Precisamos reaprender a caminhar com as duas pernas: força e cuidado, razão e afeto, masculino e feminino, convivendo sem hierarquia. Só assim, talvez, possamos reencontrar o equilíbrio perdido e devolver à humanidade a capacidade de florescer em parceria, e não em dominação.
A perda da indignação
Eisler nos convida a observar como, nessa transição, perdemos a capacidade de nos indignar. Como explicar Hiroshima e Nagasaki? Como justificar o Holocausto? Que racionalidade pode sustentar tamanha barbárie? A cultura patriarcal, baseada na dominação, naturaliza absurdos e constrói o discurso de que “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. O intolerável se torna rotina. Aceitamos a exclusão, a fome, a exploração, como se fossem leis da natureza. E quando perdemos a capacidade de dizer “isso é absurdo”, nos tornamos cúmplices do silêncio que legitima a barbárie.
Rastros da cultura matrística
Quando mergulho no conceito de cultura matrística, percebo que não se trata apenas de uma forma de organizar a sociedade, mas de uma forma de sentir o mundo. É como se o coração fosse colocado no centro da vida comunitária, orientando gestos, decisões e vínculos. A cultura matrística nasce do reconhecimento de que a vida é um dom que brota do ventre e que deve ser cuidado como um tesouro coletivo.
Ao contrário da lógica da imposição, a matriz dessa cultura é o acolhimento. Não o acolhimento condescendente, mas aquele que nasce da certeza de que cada ser tem um lugar legítimo no tecido da vida. É como uma árvore: seus galhos se abrem em direções distintas, mas todos encontram alimento na mesma seiva. Nas comunidades matrísticas, a diferença não era ameaça, mas variedade de cores dentro de um mesmo quadro.
O eixo não estava no poder de submeter, mas no poder de nutrir. Nutrir a vida, os vínculos, a diversidade. Nessa perspectiva, não se precisava de intermediários que ditassem o medo; bastava a experiência cotidiana do cuidado para compreender a espiritualidade. A mãe que amamenta, o grupo que partilha a colheita, os anciãos que transmitem sabedoria: tudo isso formava uma rede de significados que fortalecia o sentido de pertencimento.
É claro que nessas sociedades também havia conflitos e disputas. Mas o conflito não era tratado como sentença de destruição, e sim como ocasião para recompor os laços. Penso nisso como um vaso de cerâmica: quando trinca, não é descartado, é reparado com cuidado. A vida coletiva era vista como esse vaso comum, que precisa ser preservado porque todos bebem dele.
A espiritualidade matrística também reflete esse horizonte. Não haviam deuses distantes, imponentes e punitivos, mas representações do sagrado ligadas à terra, à fertilidade, ao ciclo da vida. O sagrado não era usado para amedrontar, mas para celebrar. A morte não aparecia como condenação, e sim como retorno ao todo. A existência era entendida como círculo, não como linha de chegada.
Minha tradução dessa visão para o presente está gesto de abraçar. O abraço não elimina a diferença de altura, peso, idade ou origem, mas integra as diferenças em um espaço de proximidade. A cultura matrística é esse abraço social: nela cabem as tensões, mas sem expulsar; cabem as divergências, mas sem anular.
No nosso tempo, marcado por tantas urgências, recuperar a inspiração matrística é reconhecer que não há futuro possível sem cooperação. Significa redescobrir que a vida floresce mais quando é partilhada, e que o cuidado é força transformadora, não sinal de fraqueza. É admitir que somos todos viajantes de uma mesma travessia e que, sem confiança mútua, não chegaremos a lugar algum.
A cultura matrística, portanto, não é utopia distante. É memória viva e possibilidade concreta. É um convite para reorganizar nossas relações sob o signo do vínculo e não da hierarquia. Minha filha Thirza Reis usa uma metáfora muito sutil para isso. No seu livro BASTA[2], ela diz que a cultura matrística “é como acender uma lamparina em meio à noite: talvez sua luz não afaste toda a escuridão, mas torna possível enxergar uns aos outros e continuar caminhando juntos”.
Vestígios da cultura matrística ainda sobrevivem. Eisler nos mostra exemplos contemporâneos. As Olimpíadas, por exemplo: competimos, disputamos medalhas, mas não transformamos o outro em inimigo. No fim, atletas se abraçam, reconhecendo-se como parte de uma mesma humanidade. É o espírito do jogo, não da guerra. Outro vestígio é a relação de muitas mães com seus filhos: acolhimento sem distinção, cuidado sem cálculo. Esses são ecos de um modo de ser que insiste em permanecer.
Patriarcal x Matrístico: dois modos de organizar a vida
A cultura patriarcal estrutura-se na lógica da dominação. Seu alicerce é a crença de que a força garante ordem e que a hierarquia é necessária para manter a sociedade unida. Guerra e exploração tornam-se instrumentos de progresso, e o outro é visto como ameaça ou recurso a ser controlado. A diversidade é percebida com desconfiança, e a diferença tende a ser anulada ou subjugada. O sagrado assume feições punitivas, legitimando a obediência pelo medo. Nessa lente, a vida é campo de batalha, e a vitória de uns exige a derrota de outros.
Em contraste, a cultura matrística organiza-se pelo cuidado e pela integração. O vínculo é o centro: nutrir, proteger, celebrar e reparar são gestos que mantêm a comunidade viva. O conflito não é sentença de exclusão, mas ocasião para recompor laços. O sagrado é próximo, ligado à fertilidade, à terra, ao ciclo da vida. A diversidade é vista como riqueza, e a morte não é castigo, mas retorno ao todo.
Enquanto o patriarcado corta como espada, o matrístico acolhe como cálice. Um modelo fragmenta, o outro integra. A escolha entre eles revela não apenas estruturas políticas, mas visões de mundo. O que lhes convido a fazer é aprender com ambos e a construir um novo horizonte.
A Cultura da Parceria: o horizonte possível
Creio que não precisamos ficar presos entre os extremos da espada patriarcal e do cálice matrístico. Podemos escolher uma terceira via: a cultura da parceria. Nela, não se trata de eliminar a força ou negar o cuidado, mas de integrá-los em uma nova forma de convivência.
A parceria reconhece que a vida é uma teia de interdependências. Cada pessoa é singular, mas essa singularidade ganha sentido quando colocada em relação com os outros. Diferente do patriarcado, não há hierarquia de dominação; diferente do matrístico, não há idealização da harmonia absoluta. O que existe é a construção cotidiana de equilíbrio, feita de respeito, reciprocidade e dignidade compartilhada.
Essa cultura valoriza a educação não violenta, que desperta talentos em vez de padronizar. Valoriza redes de ajuda, que sustentam a vida coletiva com solidariedade e não com exploração. Valoriza a diversidade como fonte de criatividade, e não como ameaça.
A parceria é, acima de tudo, uma escolha. É decidir que a paz não é ausência de conflito, mas presença de vínculos fortes o suficiente para enfrentar tensões sem romper. É o horizonte que nos convida a trocar a lógica do medo pela lógica do cuidado e, assim, escrever um futuro mais humano.
Mas o que significa viver matrísticamente hoje?
Viver matrísticamente não é voltar à pré-história. É atualizar valores de respeito, parceria, cuidado amoroso, sustentabilidade e inclusão. É reconhecer que diferenças não são ameaça, mas riqueza. É trocar a lógica do “ou eu ou você” pela lógica do “eu com você”.
Para isso, proponho três caminhos práticos:
- Educação não violenta. A escola que massifica é como um moedor de carne: diferentes cortes, alcatra, filé, pernil, entram distintos na máquina e saem todos iguais, transformados em carne moída. Essa homogeneização mata a singularidade. Precisamos de uma educação que reconheça talentos únicos, que cuide das diferenças em vez de esmagá-las. Educar não é padronizar, é cultivar.
- Redes de ajuda. Somos autônomos, mas ninguém é autossuficiente. Eu posso estar aqui escrevendo, mas alguém garante a energia elétrica, alguém colhe os alimentos que comi, alguém pavimenta a rua por onde andei, alguém me ajudou a chegar até aqui. Somos parte de uma grande rede de interdependência. Reconhecer isso desperta gratidão e responsabilidade. É como perceber que cada fio invisível sustenta uma teia: ao cuidar de um, sustento a todos.
- Revisão da racionalidade. A razão que justifica bombas e genocídios não é verdadeira razão, é delírio. Precisamos resgatar os afetos como parte do pensar. Razão sem afeto é cálculo frio; afeto sem razão é impulso cego. Só juntos podem gerar sabedoria. Acolher a emoção como parte legítima da vida é abrir espaço para soluções pacíficas.
A paz como escolha cotidiana
Eisler insiste: a paz não é política de Estado, é escolha pessoal. Gandhi mostrou que a revolução pode ser não violenta. Jesus escolheu a paz mesmo diante da cruz. A paz não é ausência de conflito, mas decisão de não responder com violência. É como um rio que, diante da pedra, não a quebra, mas a contorna. A água não deixa de ser água; segue fluindo até o mar.
Podemos cultivar essa paz em gestos simples: aprender a conversar sem agressão; reconhecer o outro como legítimo em sua diferença; praticar ajuda não monetizada, baseada na necessidade e não no mérito; escolher não se deixar contaminar pela lógica da violência.
A convivência pacífica nasce quando descubro que ninguém pode me agredir sem meu consentimento interior. Posso rejeitar a violência com coração aberto, como quem segura a espada do outro e a transforma em arado.
O desafio do nosso tempo
Vivemos um século de paradoxos. De um lado, temos tecnologia que nos conecta instantaneamente; de outro, seguimos isolados em bolhas de intolerância. Produzimos alimento para todos, mas aceitamos a fome de milhões. Construímos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos desarmar o coração. É como se tivéssemos avançado no poder de multiplicar, mas regredido na sabedoria de compartilhar.
A cultura patriarcal nos ensinou a confundir força com grandeza, dominação com ordem, medo com obediência. O desafio agora é reaprender outra gramática: a da parceria, da ternura, da reciprocidade. Eisler chama isso de “cultura da parceria”.
Eu gosto de pensar como uma música em que cada instrumento é diferente, mas juntos criam harmonia. A diversidade não ameaça, enriquece.
Um fecho reflexivo
Por isso tudo, quero enfatizar o que estou propondo. Quando me aproximo do pensamento de Riane Eisler, encontro a chave que abre novos horizontes para compreender a vida em sociedade e justificar o que creio e defendo: o conceito de parceria. Não de uma parceria como um arranjo estratégico ou como um contrato entre partes que buscam benefícios mútuos. Falo de algo mais profundo, quase ontológico: uma maneira de organizar a vida que se opõe radicalmente ao modelo de dominação.
Por milhares de anos, fomos ensinados a acreditar na violência, na hierarquia e no controle como inevitáveis. Herdamos a lógica da espada: quem pode mais, manda; quem não pode (ou tem juízo), obedece. Essa visão estruturou nossas instituições, nossas economias e até nossas famílias. Mas quero crer que existe outro caminho: o caminho da cultura matrística, do cálice, que simboliza a nutrição, o cuidado e a partilha. Nesse contexto o conceito de parceria nasce exatamente na contra cultura, nos mostrando que não precisamos escolher entre ser dominadores ou dominados, podemos escolher ser parceiros.
Parceria, para mim, significa reconhecer que a vida é uma rede interdependente. É entender que a minha dignidade está ligada à dignidade do outro, que o meu florescimento só se cumpre quando o outro também floresce. É como uma orquestra: cada instrumento é diferente, com seu timbre e sua potência, mas só juntos produzem harmonia. Quando um tenta se impor sobre os demais, o resultado é ruído. A parceria é a música que só existe quando há escuta, reciprocidade e cuidado.
Ao longo da história, as culturas matrísticas viveram sob esse paradigma da parceria. Não eram sociedades perfeitas, mas estruturavam-se em torno de valores de respeito, inclusão e acolhimento. Não se tratava de negar conflitos, mas de resolvê-los sem violência como princípio. Essa herança nos lembra que o modelo da dominação não é natural nem inevitável: é apenas uma escolha histórica.
Trazer o conceito de parceria para os dias de hoje é um desafio urgente. Em um mundo que ainda insiste em medir valor pelo poder de dominar, falar de parceria soa quase revolucionário. É dizer que a verdadeira grandeza não está em impor, mas em compartilhar; não em vencer, mas em conviver. É afirmar que paz não é ausência de conflito, mas a ausência de confronto e na escolha consciente de viver sem violência.
Na prática, parceria se traduz em pequenas e grandes ações: educar de forma não violenta, construir redes de ajuda, respeitar as diferenças, aprender a conversar sem agredir. É decidir, todos os dias, que a vida vale mais quando é partilhada. É optar pelo cálice em vez da espada.
No fundo, parceria é um ato de fé: fé de que a humanidade pode aprender a se reconhecer não como inimigos em guerra, mas como companheiros de jornada. E é também um ato de coragem: coragem de desarmar a mão e abrir o coração. A realidade atual de nossa história é um alerta mais que urgente para que comecemos essa travessia. Eu aceito o convite, porque acredito que o futuro só será possível se for um futuro de parceria.
O cálice e a espada continuam diante de nós. Podemos escolher qual símbolo guiará nossas relações. A espada é rápida, cortante, sedutora. O cálice exige paciência, cuidado, tempo. A espada promete vitória, mas deixa rastros de sangue. O cálice não promete domínio, mas oferece comunhão. Entre cortar e nutrir, entre dividir e integrar, está a encruzilhada da humanidade.
A história nos mostrou o poder destrutivo da espada. Talvez seja hora de experimentar a sabedoria do cálice. Se o mundo for uma mesa, a espada a corta em pedaços; o cálice a reúne em torno do vinho partilhado. Se o mundo for um corpo, a espada o fere; o cálice o cura. Se o mundo for uma canção, a espada silencia; o cálice canta.
Escolher o cálice é escolher a vida. É olhar para o outro não como ameaça, mas como parte da mesma travessia. É aceitar que não somos donos do futuro, mas guardiões da possibilidade de futuro. É abrir espaço para que a próxima geração encontre não ruínas, mas sementes.
Ao trocar a lâmina pelo gesto, o medo pelo cuidado, a dominação pela parceria. Que sejamos capazes de transformar a violência em memória e a paz em prática. Que o cálice volte a ocupar nossas mãos, não como nostalgia de um passado perdido, mas como profecia de um futuro ainda possível.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025
[1] Riane Tennenhaus Eisler (Viena 1931/xx) sobrevivente do nazismo, é uma acadêmica austríaca, historiadora cultural, escritora e ativista social.
É presidente do centro para “Estudos sobre Parceria”, na Califórnia/USA.
[2] REIS, Thirza; BASTA; Ed. Literare Books, SP/SP, 2025 – thirzar@gmail.com