by Homero Reis©[1]
A história dos relacionamentos humanos tem a idade da própria humanidade. Tudo o que nos tornou humanos, aprendemos de forma objetiva nas comunidades que formamos ao longo de nossa história devido à nossa natureza gregária. A reprodução gera novos animais, seres biologicamente semelhantes aos genitores, mas é a vida relacional que nos torna humanos. Somos o que somos porque vivemos na comunidade que vivemos. Enquanto frutos das comunidades, também a produzimos pelas diferenciações que construímos no nosso desenvolvimento como indivíduos que descobrem como as coisas são e como poderiam ser. Seres dotados de memória e imaginação.
Na literatura mítica de todos os povos, a criação do homem se dá nessa perspectiva de coloca-lo sempre em relação a outros, influenciando e sendo influenciado a todo o tempo. No caso bíblico, mais conhecido por nós, o fato se dá da mesma forma: “Não é bom que o homem esteja só. Far-lhe-ei uma ajudadora que lhe seja idônea” (Gn.2:18). Dessa primeira relação surge a noção de família, depois a de comunidade e assim por diante até à noção de sociedade que temos hoje. No entanto tudo isso tem por pressuposto fundamental o relacionamento entre diferentes, mas com interesses comuns. Diferenças fundamentais para a criação, manutenção e o desenvolvimento da própria comunidade. Assim é que a vida relacional surge pelo fato de que o ser humano não é um ser solitário, nem se constitui isoladamente; antes, é coletivo pela própria natureza de sua existência. Má notícia: o Tarzan como tal não existe.
Se por um lado a vida individual se auto referencia, a vida comunitária é caracterizada por um conjunto de elementos orgânicos intrínsecos entre seus membros, produzindo ajustes entre eles. Ferdinando Tönnies (1887 – Comunidade e sociedade), afirmava que “a vida comunitária compreende tudo o que é confiante e íntimo, vivendo exclusivamente em um conjunto relacional” que representa unidades comuns entre diferentes. Sociólogos posteriores como Cooley, Weber e Durkhein ampliaram esse conceito transformando-o no que se entende hoje por sociedade.
No entanto é a vida relacional entre diferentes que evidencia as coisas que funcionam e as que não funcionam. O movimento natural de equilibração entre elas da-se pela preservação de comportamentos sociais aceitáveis por um lado e de exclusão daqueles não tão efetivos assim, por outro. Esse movimento é mais observável em comunidades pequenas cujo nível de contato entre os membros é grande e a diferenciação entre eles, embora existente, não é tão expressiva assim, como nas comunidades globais. A complexidade dos relacionamentos cresceu e evidenciou que “nem tudo são flores” entre os seres humanos. A diferenciação exponencial de valores, crenças, princípios, cosmovisões, cultura enfim, tanto do ponto de vista macrossocial, quanto nas relações pessoais, passaram a requer uma nova área de estudo e pesquisa, que denomino de inteligência relacional, cujo conceito é a capacidade de “ler dentro” dos relacionamentos para saber como funcionam e se estruturam, entendendo sua dinâmica, de modo a intervir neles para construir situações mais harmônicas e efetivas em todos os domínios do viver humano! Nesse texto que explorar um pouco mais essa ideia de “ler dentro” dos relacionamentos.
Numa perspectiva bem ampla, como chegamos até aqui? Das pinturas rupestres e do lixo das civilizações até a invenção da escrita foi um longo tempo; de lá para cá outros tantos. Mas em todo o tempo parece que as dificuldades relacionais estão presentes. Se em intensidades diferentes, o mesmo não se pode dizer das categorias. Não fomos capazes de nos livrar do pecado original, conforme a literatura bíblica, nem de tudo que foge das virtudes universais, conforme escreveu Prudêncio na Idade Média. Segundo ele, a luxuria, a avareza, a gula, a preguiça, a raiva, a inveja e a vaidade, os chamados sete pecados mortais, são a tônica dos relacionamentos humanos. Ao contrário, a vida deveria ser regida pela castidade, enquanto pureza, simplicidade e sabedoria; caridade, enquanto generosidade e gratidão; temperança, enquanto autocontrole, moderação e justiça; diligência, enquanto persistência, ética, força, coragem e disciplina; paciência, enquanto serenidade e paz; bondade, enquanto compaixão, amizade e empatia; e, humildade, enquanto modéstia e respeito. Relacionamentos construídos a partir dessas premissas nos tornariam capazes de viver graciosamente aceitando os desafios impostos pela difícil tarefa de convivermos bem. Acredite ou não, não fomos bem sucedidos.
A partir da idade moderna outros elementos corroboraram para que nossas dificuldades relacionais se tornassem sistêmicas. No séc. XVI, René Descartes, desenvolve o racionalismo afirmando que tudo o que existe tem uma causa inteligível. Quanto aos relacionamentos privilegiou a razão em todas as coisas, deixando os aspectos emocionais em segundo plano. Julgava que a experiência relacional não poderia servir de base para nenhuma via de acesso ao conhecimento. Tudo deveria ser fruto de um exame racional profundo. Bem intencionado, René Descartes logra êxito em muitas áreas do conhecimento científico sendo considerado um dos mentores mais importantes da revolução científica moderna. No entanto, a exclusão de aspectos subjetivos na análise dos relacionamentos humanos, como também a não valorização do peso das emoções nesses relacionamentos dificultou o entendimento da inteligência relacional. Somente no final do séc. XX (1994), António Damásio reparou esse erro escrevendo o livro O Erro de Descartes onde retrata com detalhes neuro-anatômicos o modo de funcionamento da mente e seus impactos na estruturação dos relacionamentos. Se por um lado a ideia de racionalizar as coisas foi muito boa, a experiência mostra que isso não é suficiente para “se entender” como a inteligência dos relacionamentos se estrutura. Entender os relacionamentos requer mais que a frieza racional lógico-matemática.
Muita coisa acontece a partir de então até que nas portas do sec. XVIII (1760 – 1820/40) ocorre o que se convencionou chamar de Revolução Industrial. Esse movimento tecnológico, econômico e filosófico foi um divisor de águas na história em quase todos os aspectos da vida cotidiana. Todos os relacionamentos humanos foram influenciados. A transição dos processos de produção artesanais para a produção mecânica em massa (pelas máquinas), foi, por si só, uma grande revolução. Modifica-se não só o produzir como também o relacionar. O pressuposto geral invocava o racionalismo. Se os processos mentais podem ser racionalizados, os processos de trabalho também. Tudo o que é sistematizável é mecanizável. Até então nada tinha sido tão impactante na vida econômica e social das pessoas. No entanto, se por uma lado o crescimento econômico promoveu um efeito surpreendente, não foi acompanhado pelo respectivo desenvolvimento na qualidade de vida e das relações. A vida na era fabril começava a configurar-se desumana e cruel, fato que se aprofunda nos dias de hoje: o peso da jornada de trabalho, as condições de insalubridade e a periculosidade, o estresse, a mecanização das pessoas, a monetarização das relações, a concentração urbana e de renda, entre outras.
Partindo desse pressuposto, Max Weber (1864-1920), um dos fundadores da moderna sociologia e pai da burocracia, mergulhou nos estudos do capitalismo e do chamado processo de racionalização e desencantamento do mundo, que perde seu encantamento para nós mergulhar na frieza das relações burocrático-pragmáticas. Só é válido aquilo que produz um resultado concreto, objetivo, sistematizado e de valor econômico substantivo. Com Weber o pragmatismo é fecundado nas relações do Estado, mas também no cotidiano das pessoas. Sentimentos, afetos e coisas do gênero começam a soar “piegas” demais para uma sociedade dita moderna, científica e evoluída.
As relações pragmáticas, instrumentalizadas pela burocracia, são aquelas que produzem (ou reproduzem) o modelo mental educado burocraticamente ao ponto de ser capaz de reduzir o sentido das ocorrências à avaliação de seus aspectos úteis e necessários. Limitam suas reflexões relacionais aos efeitos práticos, de valor utilitário em todos os seus pensamentos, emoções e afetos. Nas “Teses de Weber” a ideia da burocracia surge como um dos eixos gravitacionais da sociedade contemporânea. A burocracia é entendida como o rigor da norma relacional, a impessoalidade do trabalho, a rigidez dos controles e a inflexibilidade dos processos. Com isso Weber pretendia garantir a lisura nas relações cidadão/estado, mas acabou por interferir de modo direto na vida privada. A influência do seu pensamento foi tamanha que as relações entre as pessoas passam a ser dominadas por um contratualismo exacerbado. Embora asséptica a burocracia weberiana e sua aplicação na vida privada não melhorou nem esclareceu porque as pessoas tem tantas dificuldades em seus relacionamentos. Falta ao burocratismo uma inteligência relacional.
O cenário está quase pronto. No inicio do sec. XX. Henry Ford constrói a “linha de montagem” (1913). Uma forma de produção em série, onde várias pessoas, numa sequência de processos racionais, burocratizados por normas e controles rígidos, especializados em diversas funções específicas e repetitivas, trabalham de forma sequencial, com a ajuda de máquinas que estabelecem o fluxo do processo. Tal feito foi considerado uma das maiores inovações tecnológicas da era industrial. Reduziu custos, minimizou os tempos, mecanizou as pessoas e promoveu um desenvolvimento econômico nunca dantes pensado ser possível. Não se pode negar os benefícios de tal empreendimento. Por outro lado, a desumanização nos relacionamentos foi de igual proporção. Tudo a partir de então foi modelado pela linha de montagem. A educação, o modelo social, a arquitetura urbana, a saúde, enfim, tudo foi pensado a partir desse modelo. Pensado, pasteurizado e padronizado. Formamos as coisas e as pessoas, as colocamos em formas, de modo que se possa garantir a qualidade dos processos, evitar o erro, massificar a produção e reduzir os custos. A questão é que os relacionamentos também entraram nessa “vibe”. Passamos a ter um modelo para tudo. A diversidade foi substituída pela padronização.
Embora tudo estivesse num caminho presumidamente certo, fomos atropelados por duas grandes guerras. Tudo o que aprendemos e tudo o que experimentamos com toda a nossa ciência e tecnologia não foi capaz de evitar o colapso da sociedade de então. Esperávamos construir um mundo perfeito. Não fomos capazes de fazê-lo. Reduzimos as relações entre as pessoas em uma neo-escravidão. Transformamos pessoas lindas, complexas e intensas em peças de um processo produtivo cientificamente constituído, mas incapaz de melhorar nossos relacionamentos. Tudo pode ser substituído; é mais barato substituir do que consertar. Fique esperto que a fila anda.
Charles Chaplin denunciou isso de forma veemente quando, em 1936 filmou nos Estados Unidos, Tempos Modernos. Um filme em que o seu famoso personagem “O Vagabundo” surta ao tentar sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado. Toda a complexidade do ser humano é reduzida a um apertador de botões do modelo industrial. A pergunta que ninguém jamais teve a coragem de enfrentar, ficou no ar: no mundo que estamos construindo, o que é mais importante, as pessoas ou as coisas? A resposta veio do próprio Chaplin em outro filme seu, O Grande Ditador. Filme premiadíssimo de 1940 em que satiriza o nazismo, o fascismo e as lideranças mundiais que os representavam. Chaplin faz isso de forma magistral. “Não sois máquina! Homens é que sois!” é a sua resposta. A crítica de Chaplin ao modelo capitalista industrial foi tão veemente que foi acusado de “atividades antiamericanas” (ser comunista), e em 1952 seu visto foi revogado mantendo-o “exilado” na Inglaterra. O discurso épico que finaliza o filme sintetiza o que criamos e o quanto nos desviamos dos relacionamentos inteligentes. Segue a íntegra de sua fala, em 1940:
Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício.
Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja.
Gostaria de ajudar – se possível – judeus, gentios… negros… brancos.
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio.
Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros?
Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens…
levantou no mundo as muralhas do ódio…
e tem-nos feito marchar a passos de gigante para a miséria e os morticínios.
Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela.
A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis!
A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia… da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo.
E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… que vos desprezam… que vos escravizam… que arregimentam as vossas vidas… que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão!
Não sois máquina! Homens é que sois!
E com o amor da humanidade em vossas almas, não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!
Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós.
Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos!
Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo das trevas para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade.
Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!
A denuncia de Chaplin antecipa o mundo racionalista, relativista, imediatista e descartável que se começou a construir no sec. XVI e que acabou por modelar o sec. XXI. A vida caminhou célere para o que Zygmunt Bauman chama de mundos líquidos. A pós-modernidade abriu espaço para o que chamo de “a vida pós-verdade” e os pessoalismos subjetivos reduziram os relacionamentos ao espaço restrito das conveniências pessoais.
Muitas perguntas clamam por respostas. Se não as conseguimos, que reflitamos sobre elas como ponto de partida para o desenvolvimento da inteligência de nossas relações. Por que caçamos e perseguimos os outros? Por que construímos relacionamentos nitidamente desumanos? O que nos faz agir de modo tão brutal nas relações mais simples do cotidiano? Por que vivemos em constante estado de competição? O que nos faz legitimar o modo como vivemos julgando a nossa forma de ser, “normal”? O que nos faz pender cronicamente para o conflito e para a necessidade de superar o outro? Por que não somos capazes de atos concretos de solidariedade global? Por que não conseguimos realizar o que temos intensão? Essas são algumas boas perguntas que precisamos enfrentar.
É isso aí! Agora não tem mais jeito. A inteligência relacional deve ser entendida para sermos capazes de reverter o que estamos fazendo conosco mesmos. Vamos começar a fazê-lo entendendo o nosso mundo pós-verdade.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025




