AS HISTÓRIAS QUE CONTAMOS

by Homero Reis ©

 

Sempre me perguntei por que conto as histórias que conto a meu respeito. Essa pergunta aparentemente simples é, na verdade, um portal para reflexões profundas sobre identidade, liberdade e sentido. Não foram poucas as vezes em que percebi que, ao selecionar algum episódio de minha história e oferecê-lo em forma de narrativa, escolhia não apenas o fato em si, mas a lente pela qual desejava que seja visto. Contar histórias é mais do que relatar acontecimentos: é escolher quem eu sou, quem fui e quem desejo ser.

 

Desde cedo aprendi que a realidade não é um objeto sólido que se oferece a todos da mesma forma. Ao contrário, como diria Humberto Maturana, o ser humano é um ser interpretativo; vivemos num mundo de linguagens e emoções, e é a interpretação que dá forma ao que chamamos de real. O que me acontece não é o acontecimento em si, mas aquilo que sou capaz de compreender dele e o modo como o significo. Essa constatação já bastaria para dizer que cada narrativa é sempre parcial, seletiva e impregnada daquilo que sou no instante em que a conto.

 

Recordo-me, por exemplo, do dia em que machuquei meu joelho numa queda de bicicleta, ainda menino, junto com meu pai. Posso recontar essa cena de mil formas diferentes. Posso dizer que foi azar, que foi negligência de meu pai, que foi “profecia” de minha mãe, vontade de Deus ou que foi a oportunidade que tive de aprender a lidar com a dor. Qual dessas versões é a verdadeira? Talvez todas, talvez nenhuma. O fato cru é que machuquei muito meu joelho; o resto são interpretações. E é nessas interpretações que me reconheço, pois sou, em grande medida, as histórias que escolho contar.

 

A psicanálise chamou minha atenção para isso. Freud dizia que a memória não é um arquivo, mas uma reconstrução, e cada lembrança é sempre reescrita à luz do presente. É como se o passado fosse uma massa maleável, pronta para ser moldada pelo olhar de hoje. Não existe neutralidade em nossas narrativas. Nossas conversas não são “inocentes”. Há sempre uma intenção, um desejo de justificar, obter consolo, provocar empatia, receber aprovação ou até mesmo desafiar o outro.

 

Hannah Arendt dizia que narrar é dar sentido ao que, de outra forma, permaneceria como um amontoado de eventos sem lógica. Ao organizar minha vida em histórias, consigo compreender melhor quem sou. Mas, ao mesmo tempo, corro o risco de cristalizar-me em papéis fixos: a vítima injustiçada, o herói incompreendido, o sábio que tudo sabe ou o humilde que nada ousa dizer. Esses papéis, quando repetidos demais, tornam-se prisões invisíveis, armaduras existenciais e acabam por afastar-me de mim mesmo.

 

Foi observando minhas próprias narrativas que percebi o quanto, por vezes, vitimizo-me. Ao dizer que fui azarado, que a vida foi injusta, que o outro falhou comigo, obtenho do interlocutor o consolo que desejo. Ele me dirá: “não é assim, você não está só, isso acontece com todos.” E é exatamente isso que eu queria ouvir, consciente ou não. Mas, ao mesmo tempo, é nesse jogo que corro o risco de perpetuar uma visão limitada de mim mesmo. 

 

Viktor Frankl, sobrevivente de campos de concentração, ensinava que mesmo na mais extrema condição o homem conserva a liberdade de escolher sua atitude diante do sofrimento. Se ele, entre arames farpados e cercado pela morte, pôde reinterpretar sua história, por que eu não poderia?

 

Outro exemplo que guardo vem da sala de aula. Durante muitos anos, confesso, fui um professor tirano. Fechava a porta e ninguém entrava depois de mim; saía apenas quando eu autorizava. Havia em mim uma ânsia de controle, talvez nascida de minhas memórias de infância, quando nunca era escolhido para os times de futebol (de fato eu jogava muito mal), e me escondia no banheiro para não enfrentar a humilhação de ser preterido. Tornar-me professor era, de algum modo, reverter aquele destino: agora era eu quem escolhia, quem decidia quem podia falar, quem detinha o poder. Foi somente anos depois, depois de muita terapia, ao recontar essa história para mim mesmo, percebi a tirania escondida na justificativa da escolha do comportamento. Por fim entendi que podia manter meus alunos atentos não pela força, mas pela inspiração. Essa mudança de narrativa me tornou um professor melhor, menos agressivo, mais relacional. E isso alterou em muito minha forma de lidar com a vida, como meu passado e com as perspectivas de futuro.

 

Jean-Paul Sartre escreveu que o homem está condenado a ser livre. Essa frase, que soa tão dura, é na verdade libertadora. Estou condenado porque não há como escapar: mesmo quando não escolho, escolho. E a liberdade pesa, porque exige responsabilidade. A narrativa que construo sobre meus atos é também uma forma de escapar da angústia dessa liberdade. Se digo que fracassei porque o outro me prejudicou, alivio-me do peso da responsabilidade. Mas quando reconheço que também tive parte, que poderia ter agido de outro modo, assumo o peso da minha liberdade que proporcionou minha escolha.

 

Muitas vezes, ao atender casais em crise, percebi esse mecanismo em ação. Perguntava a um dos cônjuges quem era o responsável pela separação e ouvia: “ela (ou ele) é a culpada, se fosse diferente estaríamos bem.” Essa resposta revela não apenas ressentimento, mas também incapacidade de assumir a própria responsabilidade na coparticipação histórica da vida. É mais fácil culpar o outro do que admitir que nossa interpretação dos fatos também constrói o desfecho.

 

Goffman, em “A Representação do Eu na Vida Cotidiana”, dizia que cada um de nós é um ator em cena, desempenhando papéis para obter reconhecimento. Quando me apresento como vítima, busco consolo; quando me apresento como herói, busco admiração; quando me apresento como sábio, busco reverência. Mas nenhum desses papéis esgota quem sou. No fundo, todos são máscaras que, de tanto usa-las, fazem-me acreditar que são meu rosto verdadeiro.

Santo Agostinho também me ajuda nessa reflexão. Em suas Confissões, relatava como recontava incessantemente sua juventude pecadora não para se condenar, mas para mostrar a graça transformadora de Deus. Ele compreendia que a narrativa tem um poder pedagógico: iluminar as sombras do presente com as luzes do passado. Também eu, ao recontar minhas histórias, não busco apenas justificar-me, mas aprender, converter, reinventar; reafirmar o que me torna essencialmente humano.

 

Há sete anos adotei um cachorro chamado Aslan. Brinco que ele é meu filho canino. Lembro-me de uma frase que dizia aos meus filhos: “se um dia vocês me virem catando coco de cachorro na rua, me internem, porque enlouqueci.” Pois bem, hoje passeio todos os dias com Aslan e recolho com alegria seus dejetos. Quem me viu e quem me vê! Essa pequena cena doméstica é, na verdade, uma metáfora poderosa: mudei de opinião, mudei de postura, mudei de narrativa. O que antes seria sinal de loucura tornou-se sinal de cuidado e afeto. E isso não é contradição, é evolução. Como diria Heráclito, ninguém se banha duas vezes no mesmo rio; somos fluxo, mudança, processo.

 

Do ponto de vista familiar também o fenômeno ocorre da mesma forma. As histórias que as famílias contam funcionam como uma herança invisível. Não são apenas bens ou tradições que passam de geração em geração, mas também enredos: frases como “na nossa família sempre foi assim”, “somos fortes”, “aqui ninguém desiste”, moldam identidades, criam relacionamentos, estabelecem critérios de avaliação uns dos outros e projetam horizontes. Dentro delas, surgem roteiros silenciosos, que atribuem papéis a cada um: o filho responsável, a filha rebelde, o pai provedor, a mãe cuidadora, a “ovelha negra”. Esses roteiros tanto podem aprisionar quanto servir de ponto de partida para novas leituras. Quando alguém ousa narrar a família de outro modo, lembrando, por exemplo, a avó não apenas como sofredora, mas também como visionária, o tio “incorrigível” como o amigo brincalhão, abre-se um espaço inesperado: todos são convidados a revisitar as próprias narrativas. Nesse movimento, até as feridas podem encontrar reconciliação. Uma memória de conflito, quando contada de novo, não deixa de ser dolorosa, mas pode se converter em lição, em oportunidade ou mesmo em gratidão. Ao escutar ativamente novas versões de antigos discursos diferentes de uma mesma história, a família deixa de se prender a uma narrativa única e rígida e passa a se enxergar como um mosaico vivo, onde cada voz tem valor.

 

Mudar de narrativa é mudar de vida. E é aqui que entra a Inteligência Relacional, caminho que aprendi a cultivar, além de estudar, escrever e trabalhar com ela. A inteligência para as relações me ensina que é nos relacionamentos que encontro  o lugar onde me descubro, e que a narrativa que crio sobre mim e sobre o outro molda a qualidade de nossos vínculos. Se conto sempre histórias críticas, é porque meu olhar se habituou a enxergar falhas. Se conto histórias esperançosas, é porque cultivei a fé de que o mundo pode ser melhor. De fato são escolhas possíveis e não categóricas. Mas, toda escolha ancora um comportamento que produz resultados, nem sempre controláveis, mas que decorrem das escolhas que fiz. Isso vale igualmente para as histórias familiares. Revisitar as conversas históricas da família, com honestidade intelectual e coragem emocional, cria um novo cenário para as relações.

 

Paulo Freire lembrava que ninguém liberta ninguém, mas todos podem, juntos, se libertar. O mesmo se aplica às histórias: ninguém reconta minha vida por mim, mas posso, em diálogo, descobrir novas versões que me libertam. Ao separar fato e interpretação, descubro que sempre há outras leituras possíveis. É como olhar para a história da Branca de Neve (p.ex.): posso vê-la como conto romântico, como narrativa patriarcal ou como metáfora de invejas e desejos. Nenhuma leitura esgota a história, e todas dizem mais sobre quem as conta do que sobre a história em si.

 

Nesse ponto Michel Foucault se torna relevante. Ele me ensinou que o discurso é atravessado por relações de poder. As histórias que conto de mim mesmo não nascem no vácuo, mas dentro de estruturas sociais que valorizam certos enredos e silenciam outros. Quando, por exemplo, a Bíblia descreve, sob a lavra de Salomão, a “mulher virtuosa” (Pv:31), como alguém que trabalha sem cessar enquanto o marido conversa à porta da cidade, percebo que há ali mais do que um elogio: há também um reflexo de uma cultura patriarcal que reduz a mulher a uma máquina de produção. Recontar essa história hoje, a partir de um viés mais inclusivo, é também um ato político, uma forma de resistir às narrativas de opressão. Uma nova narrativa pode questionar os papeis que ali estão.

 

Mas o recontar não é apenas denúncia. É sobretudo oportunidade de criação. Carl Rogers dizia que quando somos aceitos incondicionalmente podemos florescer. O mesmo acontece com as narrativas: quando me permito contar minha vida de outra forma, sem medo de julgamento, abro espaço para que novas possibilidades surjam. A cada nova versão descubro facetas que estavam escondidas, a cada nova narrativa descubro outros pedaços de mim.

 

Gosto de pensar na vida como um rio, tal como descreve Barry Stevens no livro Não apresse o rio, ele corre sozinho. Stevens foi uma psicoterapeuta ligada à Gestalt-terapia, e nesse livro ela combina reflexões existenciais, relatos de experiências pessoais e metáforas da natureza (como a imagem do rio), para falar sobre autoconhecimento e fluxo da vida. É uma obra muito usada em contextos terapêuticos, de desenvolvimento humano e espiritualidade, onde a base de todo processo se sustenta pela análise da interpretação que fazemos de nossa própria jornada. Isso me ajudou muito, e a pergunta continua reverberando em minha mente: por que conto as histórias que conto?

 

 O rio não enfrenta os obstáculos, contorna-os. Há momentos em que se torna cachoeira, em outros se acalma em remansos. Ora profundo, ora raso, ora violento, ora tranquilo. Assim também sou eu: múltiplo, contraditório, em movimento. E ao final, como todos os rios, desaguo no mar. Essa imagem me consola porque me lembra que a história que conto hoje é apenas um trecho do curso do rio; amanhã posso narrá-la de outro modo, de acordo com as curvas que a vida me apresentar.

 

Ao longo de meus setenta anos, já escrevi e reescrevi minhas próprias histórias muitas vezes. Já as contei de inúmeras formas: idealizando-a, fantasiando, sofrendo; em fim, houve fases em que me orgulhava de dizer: “sou sempre o mesmo, não mudo.” Hoje vejo que isso não é virtude, mas rigidez. O verdadeiro sinal de vitalidade é poder mudar, mantendo a essência, mas ajustando-me ao compasso aos novos tempos. É como a rocha firme que permanece, mas permite que a água escorra sobre si.

 

Não nego que essa mudança tem exigido uma coragem que nem sempre está disponível. Recontar histórias é abandonar zonas de conforto. É admitir erros, que posso ter sido arrogante, que posso ter sido injusto. Mas é também libertar-me da síndrome de Gabriela: “nasci assim, vou viver assim, morrer assim.” Não, eu não preciso morrer assim. Posso reinventar-me. E é nessa reinvenção que encontro saúde, esperança e profundidade.

 

O teólogo Paul Tillich dizia que a fé é a coragem de aceitar ser aceito apesar de não sermos aceitáveis. Recontar histórias é um exercício semelhante: é aceitar-me apesar de minhas falhas, e confiar que posso ser diferente amanhã. É acreditar que há sempre portas e janelas abertas, se ouso reinterpretar o que antes parecia clausura.

 

Quando olho para trás, vejo que cada mudança de narrativa ampliou meu repertório. Descobri que a ira não precisava ser violência, mas guardiã da dignidade; que o medo não precisava ser carcereiro, mas professor; que o dever não precisava ser imposição, mas pacto silencioso de cuidado mútuo; que o amor podia ser a força integradora que refaz tudo. Esses quatro gigantes da alma, como os descreveu Emilio Mira y López, também são histórias que hoje, escolho contar a meu respeito. E a cada releitura deles, descubro novas dimensões de mim mesmo.

 

Por isso, hoje afirmo: sou responsável pelas histórias que conto. Não é meu pai, nem minha mãe, nem meu chefe, nem meus clientes, nem meus mentores que respondem por elas. Sou eu. E se uma narrativa me pesa demais, posso mudá-la. Não para negar o fato, mas para reinterpretá-lo de modo que me traga vida. Esse é o caminho do autoconhecimento: revisitar, recontar, reinventar.

 

Chego, assim, à convicção de que ninguém é vilão na própria história. Todos, de algum modo, buscam justificar-se, proteger o ego, preservar a autoestima. Comigo não tem sido diferente. Compreender isso me torna mais empático com os outros. Se percebo que cada um carrega uma narrativa que o absolve, posso escutá-lo sem julgar, posso dialogar sem condenar. Isso não significa relativizar tudo, mas compreender que, por trás de cada discurso, há um coração tentando sobreviver, uma dor buscando a cura, uma história buscando sentido.

 

Quando penso no futuro, não sei quais histórias ainda vou contar. Mas sei que tenho o direito e o dever de recontar as antigas histórias sob novas luzes. Essa é minha liberdade. Essa é minha dignidade. Essa é minha fé.

 

E é por isso que, ao final de cada dia, me recolho em solitude, não em solidão, mas em silêncio fecundo, como ensinava Thomas Merton, para dialogar comigo mesmo e com Deus, revisitando minhas histórias. Nesse exercício diário aprendo que a vida não é um roteiro fixo, mas um teatro em que posso improvisar, mudar a cena, reinventar o personagem.

 

Há uma lição que quero deixar registrada aqui: mude sua narrativa e o mundo mudará diante de você. Recontar histórias é lançar luz sobre terrenos sombrios, é abrir portas em muros fechados, é descobrir que a vida é mais ampla do que imaginávamos. Aos setenta anos, percebo que essa é a arte maior: contar e recontar histórias, não para enganar, mas para viver melhor.

 

E assim sigo, autor e ator de minhas histórias, narrador e personagem de minha própria vida, sempre disposto a reescrever, a reinterpretar, a me reinventar. Porque, no fundo, é isso que somos: histórias em movimento, rios que correm, palavras que se refazem.

 

Pensem nisso e reflitam em paz!

 

Homero Reis

Brasília, outubro/2025

Mais artigos