AMIZADE© – Entre A Experiência E O Conceito

por Homero Reis

CAPÍTULO I

I. Introdução: entre a experiência e o conceito

Ao longo da minha trajetória pessoal e profissional, percebo que poucas palavras são tão frequentemente usadas, e tão pouco examinadas, quanto “amizade”. Fala-se muito sobre amigos, multiplica-se sua presença nas redes sociais, comemora-se o Dia do Amigo com imagens carinhosas, áudios improvisados e postagens festivas. Contudo, o que efetivamente significa ser amigo? Qual é o protocolo ou o estatuto filosófico, emocional e existencial desse vínculo tão cotidiano quanto misterioso?

A Inteligência Relacional, matriz conceitual que venho desenvolvendo há décadas, parte de uma premissa simples e exigente: não existem relacionamentos perfeitos; existem relacionamentos possíveis. Esse princípio, aparentemente óbvio, altera completamente a forma como percebo os laços humanos. Ele me convidou a reconhecer que a amizade não é um dom espontâneo, nem uma espécie de acidente afortunado: ela é construção, processo, escolha, trabalho ético e, sobretudo, vontade de presença.

Quando escrevi, anos atrás, um breve texto que posteriormente serviu de inspiração para este ensaio, eu apenas intuía a profundidade do tema. Hoje, com leituras ampliadas, conversas vividas, perdas sofridas e amizades amadurecidas, e setenta anos, percebo que falar de amizade é falar do modo como habitamos o mundo. É refletir sobre nossa condição humana mais profunda e essencial. Como afirmou Hannah Arendt, “nada do que o homem faz é possível isoladamente, porque a condição humana é a pluralidade”. A amizade encarna essa pluralidade: somos muitos, somos diferentes, e é nesse encontro de diferenças que nos tornamos possíveis.

Por isso, mais do que oferecer definições, quero convidar você, como faço sempre com meus clientes, estudantes e interlocutores, a lembrar-se de suas próprias experiências nesse campo. Como tem sido a sua vida no território da amizade? Quem lhe acompanha nos dias luminosos? E quem permanece no silêncio dos dias sombrios? Quem vê você quando você mesmo não se vê?

Esse ensaio é, portanto, uma reflexão sobre a amizade enquanto caminho de crescimento, enquanto força ética, enquanto exercício da alteridade e enquanto antídoto à solidão, talvez a mais grave doença relacional do nosso século.

II. A incompletude humana: um ponto de partida

Uma das convicções mais fortes que carrego, nutrida pela filosofia, pela psicologia e pela teologia, é que somos seres psiquicamente incompletos. Somos plenos enquanto sistemas biológicos, mas somos ontologicamente inacabados como seres humanos.

A literatura bíblica, ao narrar poeticamente a criação, afirma: “Não é bom que o homem esteja só.” (Gên. 2:18). Independente de leituras literais ou metafóricas desse texto, há nele uma verdade antropológica profunda: somos seres de relação, e nossa saúde depende dessa relacionalidade.

Viktor Frankl, sobrevivente dos campos de concentração e um dos pensadores que mais me inspiram, dizia que “a essência do ser humano é ser voltado para algo ou alguém além de si mesmo”. Freud, por sua vez, reconhecia que o eu é sempre atravessado pelo outro, e que nossa subjetividade é constituída num jogo delicado entre pulsões, vínculos e interdições. Kierkegaard, ao falar do desespero, apontava que o isolamento do “eu fechado sobre si” gera adoecimento espiritual. E é diante dessas vozes bíblicas, filosóficas, psicológicas, que eu compreendo: precisamos do outro não por carência, mas por natureza.

Meu pai costumava dizer algo que guardo como uma herança viva: “Quem afia um ser humano é outro ser humano.” Ele tinha razão. É no atrito das relações que nossas arestas se revelam, e é no cuidado mútuo que aprendemos a apará-las.

Essa incompletude funda a possibilidade da amizade. Se fôssemos autossuficientes, não haveria motivo para criar laços. Mas como não somos, a amizade torna-se não apenas possível, mas necessária.

III. A solidão como punição e adoecimento

A sociedade compreendeu, intuitivamente e, depois, juridicamente, que a solidão é uma forma de punição. Por exemplo: o sistema prisional funciona como metáfora radical desse princípio. O primeiro castigo que se aplica a um “criminoso” é retirar o indivíduo do convívio social; o segundo, aplicado quando a convivência mínima também falha, é colocá-lo na solitária.

Isso diz algo assustador: a falta de relacionamentos (sejam eles quais forem), produz sofrimento profundo. Byung-Chul Han observa que a sociedade contemporânea, marcada pela hiperconexão e pela lógica do desempenho, gera indivíduos exaustos e solitários. Vivemos conectados a tudo, mas pertencendo a quase nada.

Quando escolhemos a solidão estruturante, não o isolamento saudável, não o recolhimento criativo, mas a solidão como modelo de vida, adoecemos. A pandemia invisível do século XXI não é apenas a ansiedade, nem a depressão, nem o burnout, embora todas estejam relacionadas. A grande pandemia é a solidão, expressão máxima da perda dos vínculos significativos. Nesse cenário, a amizade não é luxo: é recurso de sobrevivência emocional, porque sem ela perdemos a possibilidade de ter o melhor de nós enquanto ainda temos tempo.

IV. O encontro entre diferentes: a arte relacional

A amizade nasce do encontro entre seres diferentes, diferentes histórias, diferentes expectativas, diferentes vulnerabilidades. O poeta Vinícius de Moraes, no Samba da Benção, disse com sabedoria: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”

Eu mesmo poderia enumerar inúmeros encontros que transformaram minha trajetória; alguns marcados pela leveza imediata, outros atravessados por conflitos necessários. Mas houve também inúmeros desencontros: amizades possíveis que a imaturidade não permitiu florescer. A amizade, em todos esses casos, exigiu gestão das diferenças, competência que considero um dos pilares da Inteligência Relacional.

Bauman chamou nossa época de “modernidade líquida”: vínculos frágeis, laços descartáveis, afetos substituíveis. Nesse contexto, construir amizade torna-se ato de resistência. É como nadar contra a corrente de um mundo que prefere relações rápidas, superficiais e utilitaristas.

A verdadeira amizade, ao contrário, requer trabalho, paciência, vulnerabilidade, habitação do tempo, como o vinho que precisa maturar para revelar sua profundidade.

V. A etimologia como janela para a experiência

Os linguistas propõem diversas origens para a palavra “amizade”. Gosto especialmente da hipótese grega associada à literatura homérica, segundo a qual a palavra amigo deriva da junção de a (negação) com ego, indicando a experiência do sem-ego: uma relação na qual não preciso defender-me, justificar-me, provar-me. É como se a amizade fosse o espaço onde minha identidade pode, finalmente, respirar.

Essa noção dialoga profundamente com Erich Fromm, que afirma, em A Arte de Amar, que o amor e a amizade como sua modalidade, implica uma postura ativa de cuidado, responsabilidade e respeito, e não a posse ou a fusão das identidades.

Quando chamo alguém de amigo, digo implicitamente: “Com você, não preciso ser máscara; posso ser pessoa.” Essa compreensão etimológica ilumina a experiência: a amizade não é fuga para um mundo fantasioso, mas o lugar onde o mundo  “real” pode ser habitado sem medo.

VI. A pergunta fundamental: você tem amigos?

Em muitos processos de mentoria, uma das primeiras perguntas que faço é simples e desarmadora: “Você tem amigos?” A resposta costuma vir rápida: “Sim, claro.” Mas quando aprofundamos a conversa, percebemos que muitos confundem amizade com coleguismo, convivência circunstancial ou proximidade familiar.

Um dos momentos mais emblemáticos dessa pergunta ocorreu com um executivo brilhante, bem-sucedido, que me respondeu: “Sim, tenho amigos.” Mas ao explorar sua experiência, ele começou a chorar. Percebeu que chamava de “amigos” apenas pessoas com quem trocava interesses profissionais. Ele não tinha com quem ser vulnerável. Não tinha com quem dividir seu medo mais íntimo e suas inseguranças mais simples.

Essa cena tem se repetido tanto que hoje reconheço: a quantidade e a qualidade dos amigos revelam mais sobre a saúde relacional de alguém do que qualquer outro indicador relacional que eu conheça.

VII. A vontade e o hábito: dois pilares da amizade

Ao investigar a dinâmica relacional, percebi que a amizade nasce da combinação entre vontade e hábito. A vontade é o desejo de voltar-se ao outro. O hábito é a disciplina de cultivar essa aproximação ao longo do tempo. C.S. Lewis dizia que a amizade “não é necessária como o sol, a água ou o pão; mas ela lhes confere valor”. A amizade é o que dá densidade existencial ao cotidiano.

Com o tempo, percebi que meus amigos são aqueles com quem partilho presença, mesmo quando discordamos. Tenho amigos com quem já discuti duramente, amigos com quem briguei, amigos que me feriram e que eu feri. E ainda assim, há entre nós uma força de atração, quase um chamado, que nos devolve o diálogo.

Nietzsche, em sua provocação habitual, dizia que o amigo deve ser “o inimigo mais próximo”, no sentido de ser aquele que não nos quer mal, que nos confronta com honestidade e nos impede de viver uma vida medíocre. Aprendi a valorizar profundamente esses confrontos amorosos.

VIII. A virtude como eixo ético da amizade

A amizade exige virtude, não no sentido moralista, mas como disposição permanente para o bem mútuo. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, dizia que a amizade é uma excelência ética, pois só floresce entre pessoas que desejam o bem umas das outras pelo que cada uma é.

Isso dialoga com Paul Tillich, teólogo e filósofo, quando define amor como “a força que aceita o outro e que o impulsiona a realizar seu próprio ser”. A amizade, portanto, é prática de aceitação e impulsão.

Quando escolho estar com alguém, não é por utilidade, prestígio ou conveniência. É porque naquela presença sinto algo que Fromm chamou de “experiência de união preservando a integridade”. A amizade não me anula, não me absorve, não me substitui: me integra.

IX. Amizade, tempo e risco: um caso pessoal

Lembro-me de um amigo de juventude, com quem tive uma ruptura significativa após um conflito mal administrado. Passamos anos sem nos falar. Mas algo em mim, e nele, continuava inquieto.

Um dia, após refletir sobre essa relação, enviei-lhe uma mensagem simples:
“Eu não quero terminar minha vida sem que conversemos novamente.” Ele respondeu imediatamente. Retomamos a conversa, revisitamos feridas, pedimos perdão, rimos do passado. Hoje, ele é um dos vínculos mais sólidos que cultivo.

Essa história, entre tantas que vivi, reforça em mim a convicção de que a amizade é um investimento afetivo sustentado pelo tempo. E que, como dizia Frankl, “o amor vê aquilo que é essencial, invisível aos olhos de quem se defende demais”.

X. A amizade como cura da solidão: diálogo com Heidegger

Heidegger, em “Ser e Tempo”, descreve o fenômeno do “todos-nós-ninguém”: vivemos cercados por muitos, mas muitas vezes sem pertencer a ninguém. Esse estado gera a sensação paradoxal de uma “multidão solitária”.

A amizade, e apenas ela, rompe esse círculo existencial. Porque na amizade encontro o espaço em que posso ser alguém diante de alguém. Como diz Byung-Chul Han, o sujeito contemporâneo está adoecido de excesso de si: hiperprodutivo, hiperperformático, hiperexposto. A amizade corrige esse excesso porque nos obriga a suspender o ego, a escutar, a acolher o ritmo do outro.

XI. Jesus e seus amigos: o gesto que funda uma ética

Entre todas as narrativas sobre amizade, há uma que me toca profundamente: o momento em que Jesus, diante da iminência de sua morte, volta-se aos discípulos e lhes declara: “Já não vos chamo servos, mas de amigos.” Esse gesto, que poderia ser apenas simbólico, carrega um significado revolucionário: na hora mais difícil de sua vida, Jesus escolhe cercar-se de amigos.

Quando penso nisso, faço sempre a mesma pergunta, a mim e aos outros: quem você quer que esteja ao seu lado no momento mais dramático da sua vida? Essa pergunta, simples e poderosa, revela a verdade essencial sobre a amizade: amigo é aquele cuja presença nos sustenta quando todas as outras presenças se ausentam.

XII. A magia da presença

A amizade, portanto, não é um enfeite da vida; é um fundamento. Não é um bônus existencial; é parte do próprio existir. Não é um afeto superficial; é uma prática ética profunda.

Volto ao conceito grego de aego (sem ego), a melhor síntese do que compreendo hoje por amizade: amizade é oferecer ao outro um espaço onde ele não precise se defender. A amizade é, finalmente, magia e trabalho, graça e disciplina, afetividade e ética, risco e proteção.

E se eu pudesse resumir esta primeira parte, numa única frase, diria: amizade é o vínculo que torna a vida possível de ser vivida, não para defini-la, mas para honrá-la.

 

CAPÍTULO II

I. Introdução: a amizade no ciclo longo da vida

Ao encerrar a reflexão anterior, percebi que aquilo que chamo de amizade ainda precisava ser ampliado em outra direção: a da maturidade. Não apenas porque a amizade se transforma com a idade, mas porque também exige, de cada um de nós, uma disposição interior para crescer.

Assim como certos vinhos que só revelam seu perfume, estrutura e complexidade depois de anos amadurecendo na penumbra, a amizade também pede tempo, um tempo que não é cronológico, mas humano. Um tempo tecido de paciência, de recomeços, de negociações silenciosas e de reconhecimento recíproco.

A experiência de amadurecer amizades é, a meu ver, uma das grandes artes da vida e uma das grandes forças “daquilo que é essencialmente humano”. E como toda arte, implica técnica, inspiração, disciplina e uma sensibilidade que se afina com o passar das décadas.

Quero, então, avançar na reflexão: o que distingue a amizade madura da amizade apenas circunstancial? Como ela se sustenta? Como atravessa rupturas? O que ela exige de nós em termos de ética, vulnerabilidade, perdão e coragem?

Essas perguntas acompanham minha jornada pessoal e profissional, há algum tempo. E é a partir delas que vamos prosseguir.

II. A amizade madura: estabilidade sem estagnação

A amizade madura não é a amizade perfeita — esta não existe. Mas é a amizade que aprendeu a atravessar o tempo sem perder o frescor, e a suportar mudanças sem se romper.

Como diria Aristóteles, trata-se de uma amizade fundada na philia virtuosa, onde cada um deseja o bem do outro pelo que o outro é, e não pelas vantagens mútuas que podem surgir.

Numa amizade madura, eu reconheço que o outro não me pertence; ele tem sua própria biografia, seus próprios ritmos, seus próprios silêncios. Há um respeito pelo espaço vital do outro que se expressa, paradoxalmente, em um vínculo mais forte: a historicidade comum refletida na reflexão; ou seja, maturidade.

A maturidade permite que a amizade seja estável, mas nunca estática; profunda, mas nunca possessiva; contínua, mas nunca congelada; afetiva, mas nunca infantil.

Byung-Chul Han observa que a vida contemporânea padece de hiperaceleração: vínculos rápidos, promessas instantâneas, dissoluções abruptas. A amizade madura é o contrário disso: é a arte de permanecer, mesmo quando tudo ao redor se fragmenta. Ela é, de certa forma, um protesto silencioso contra a lógica utilitarista que transforma pessoas em recursos.

III. Vulnerabilidade: o ponto mais alto da coragem

A amizade amadurece quando se torna um espaço onde posso ser vulnerável. Vulnerabilidade, aqui, não é exposição desmedida, nem confissão compulsiva. É a coragem de ser visto. É permitir que o outro entre no território que normalmente escondo até de mim mesmo. Nietzsche dizia que “todo profundo amor é profunda coragem”. O mesmo vale para a amizade.

É fácil ser amigo de alguém apenas no que há de luminoso. Difícil é permanecer quando a fragilidade aparece: o medo, o erro, o fracasso, o luto, o choro. A amizade madura é aquela que não recua diante do desamparo do outro. É aquela que, às vezes, mesmo sem “ter o que dizer”, está presente no silêncio.

No livro de Jó (Jó 2: 11-13), há um texto que diz o seguinte: “Quando três amigos de Jó, Elifaz, de Temã, Bildade, de Suá, e Zofar, de Naamate, souberam de todos os males que o haviam atingido, saíram, cada um da sua terra, combinaram encontrar-se para mostrar a sua solidariedade e consolá-lo. De longe, porém, não o reconheceram, e choraram em alta voz. Rasgaram o manto e atiraram pó ao ar, sobre a cabeça. Sentaram-se no chão, ao seu lado, durante sete dias e sete noites. Ninguém lhe disse uma palavra, pois viam como era grande o seu sofrimento.” Isso é muito inspirador. A amizade madura não recua diante do desamparo do outro.

Recordo-me de um período da minha vida em que estava atravessando alguns dramas familiares e profissionais. Uma daquelas crises que parecem pequenas para o mundo, mas gigantescas para quem as vive. Tive a sensação de que estava desaprendendo quem eu era e sem coragem de agir.

Nessa época, um amigo me disse: “Você não precisa ser forte agora. Estamos juntos e entendo sua dor”. Essa frase, tão simples, foi um ponto de inflexão. Ela transformou não apenas minha crise, mas meu modo de compreender a amizade. A vulnerabilidade compartilhada e acolhida é um dos lugares onde a amizade amadurece plenamente.

IV. O perdão como eixo de continuidade dos vínculos

Não há amizade madura sem perdão. Não falo aqui do perdão heroico ou religioso, mas como competência relacional. Um amigo, por melhor que seja, inevitavelmente vai me ferir; e eu também o ferirei. Somos seres imperfeitos tentando construir algo precioso.

Erich Fromm afirma que amar é um ato de vontade que se renova todos os dias. A amizade é assim: uma decisão renovada de permanecer, mesmo após o tropeço. Hannah Arendt, refletindo sobre “os relacionamento sociais, dizia que o perdão é a única ação capaz de interromper a cadeia das consequências desastrosas e inevitáveis. Quando aplico essa ideia ao cotidiano de minhas relações, compreendo que o perdão é aquilo que abre a possibilidade de futuro. Sem perdão, só resta passado. Com perdão, recomeça o presente.

Já contei essa história: Lembro-me de um amigo com quem tive um conflito duro, quase irreversível. Durante meses, falei comigo mesmo que seria melhor deixá-lo ir. Mas havia algo em mim, talvez uma combinação de memória, afeto e honestidade, que dizia: “Essa história não terminou”.

Quando conversamos, não houve explicações longas. Houve uma frase dele que me comoveu: “Eu senti sua falta.” Foi o suficiente para reconstruir a ponte. A amizade madura sabe que pontes valem mais que muros.

V. Amizade e distância: presença que não depende do espaço

Uma das características mais paradoxais da amizade adulta é que ela não depende da proximidade física.

Há amigos que vejo com pouca frequência, mas cuja presença em minha vida é constante. Com eles, a distância não diminui a intensidade; ao contrário, às vezes a realça. É que a amizade não está baseada no encontro constante, mas na fidelidade silenciosa. É possível ficar meses sem conversar e, ao reencontrar-se, retomar exatamente de onde se parou.

Essa experiência é descrita por C.S. Lewis como “a alegria surpreendente de reconhecer uma alma que caminha na mesma direção que você”. A amizade madura, portanto, desafia a tirania do tempo e do espaço. Ela é uma presença contínua, mesmo quando ausente. Uma espécie de eco que nos acompanha.

VI. Rupturas e reconstruções: o aprendizado do limite

Algumas amizades se rompem. Outras se esvaziam. Algumas se transformam de tal forma que precisamos deixá-las descansar. Falar de amizade madura também significa aceitar que há vínculos que se completam e que honrar uma amizade pode significar deixá-la ir.

Mas mesmo nesses casos, carrego comigo a convicção de que nenhuma amizade verdadeira é perdida: ela cumpre sua função, deixa marcas, ensina algo.
Nietzsche dizia que “aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. Eu diria que aquilo que se faz na amizade está sempre além do útil e do inútil. Uma amizade que se encerra pode, ainda assim, ter sido preciosa.  E uma amizade que retorna, como tantas que já vi renascerem, costuma voltar mais sábia.

VII. A amizade como intimidade ética

A amizade madura cria uma intimidade ética, não uma intimidade invasiva.
É o espaço onde posso falar a verdade, inclusive a verdade que dói. Kierkegaard lembrava que “a ferida infligida pelo amigo é fiel”, no sentido de que há conversas que só um amigo pode ter conosco. Há alertas que só um amigo pode nos dar. Há limites que só um amigo pode apontar sem nos destruir. Em tempos de discursos superficiais e respostas automáticas, a amizade torna-se um espaço de pensamento crítico e de cuidado mútuo.

VIII. A amizade e o sagrado: dimensão espiritual do vínculo

A amizade, em sua forma mais profunda, toca o território do sagrado. Não importa se alguém é religioso, espiritualizado, agnóstico ou ateu, há algo transcendental na experiência de encontrar um outro que, livremente, escolhe caminhar ao meu lado.

Quando Jesus disse aos seus discípulos: “Já não vos chamo servos, mas amigos”; ali o sagrado não se expressou na autoridade, mas na intimidade, na partilha da vida; no desejo de presença em meio ao sofrimento. Amizade é, portanto, uma forma de espiritualidade encarnada, uma liturgia da convivência.

IX. A amizade como vocação humana

Se a primeira parte deste ensaio buscou compreender a amizade como fenômeno relacional e antropológico, esta segunda parte procura situá-la como vocação humana, como prática de maturidade, como ética da presença, como caminho de cura e como espaço de transcendência.

A amizade madura é o lugar onde a vida se revela em sua forma mais humana. É onde descobrimos que não estamos destinados à solidão. É onde somos reconhecidos, acolhidos, confrontados e sustentados.

Na amizade, aprendemos, talvez pela primeira vez na vida, que podemos ser amados não porque somos úteis, brilhantes ou fortes, mas simplesmente porque somos.

Se eu pudesse sintetizar esta segunda parte numa só frase, diria: a amizade é a arte de permanecer, e permanecer é o gesto mais humano que existe.

 

CAPÍTULO III

I. Introdução: a hospitalidade do ser – o aprofundamento necessário

Ao escrever as duas primeiras partes deste ensaio, percebi outros territórios essenciais a percorrer. A amizade, enquanto experiência humana radical, não se esgota nos temas da presença, da maturidade, do perdão ou da vulnerabilidade. Ela atravessa e é atravessada pelos dilemas mais profundos da existência: a morte, o tempo, o dissenso, a tecnologia, as gerações, as escolhas éticas.

A amizade, quando levada a sério, revela-se como uma espécie de hospitalidade ontológica, expressão que tomo emprestada de Paul Ricoeur: acolher o outro é acolher uma parte de mim que eu ainda desconheço.

Quero, portanto, avançar em direção a essas zonas de complexidade, não como quem pretende domesticar o tema, mas como quem reconhece que a amizade é inesgotável, sempre maior do que aquilo que consigo dizer.

II. Amizade e morte: a travessia que revela o essencial

Nada testa mais a substância de uma amizade do que a proximidade da morte. Quando a vida se contrai e tudo se reduz ao essencial, a amizade aparece como última fortaleza de sentido.

Tenho visto isso inúmeras vezes: – no hospital onde um amigo segura a mão do outro em silêncio; – no velório onde alguém chega discretamente, não para consolar, mas para simplesmente estar; – na doença prolongada, em que a presença continuada substitui qualquer discurso. Viktor Frankl dizia que “quem tem um porquê enfrenta quase qualquer como”. Na proximidade da morte, muitas vezes o “porquê” é um amigo.

Em certo momento da minha vida, acompanhei um amigo querido em seus dias finais. Ele me disse, numa tarde de pouca luz em que fui visita-lo: “Ter você aqui não muda o destino, mas muda o caminho até ele.” Entendi ali que a amizade não nos salva da morte,  mas nos salva de morrer sozinhos. E isso, de certo modo, é uma salvação.

Pessoalmente, tive há pouco tempo, alguns problemas de saúde, inesperados e atordoantes. Isso fragilizou-me muito: instalou o medo da morte e a insegurança de ficar só. Foi quando um amigo veio visitar-me. Eu estava só em casa com todos as angústias que nos habitam nessas horas. Esse amigo sentou-se comigo durante um bom tempo, escutou minhas fragilidades, acolheu meus medos. Sua presença tornou aquele tempo um refrigério para minha vida. Quando terminou aquela visita, senti-me confortado e restaurado para seguir a vida.

C.S. Lewis, após perder seu grande amigo J.R.R.Tolkien, escreveu que a amizade é o único tipo de amor que jamais tenta nos possuir. Por isso, quando um amigo morre, não perdemos apenas a pessoa: perdemos o modo daquele amigo olhar o mundo, perdemos o ângulo de vida que ele nos oferecia.

A morte, paradoxalmente, revela a dimensão teológica da amizade: ela nos faz desejar que a vida continue para além de nós, porque a presença do outro se torna parte da nossa esperança. Por isso Jesus, no final de seus dias, disse aos amigos: “…e eis que estarei com vocês todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28:20).

III. Amizade e dissenso: o desafio da diferença moral e política

Vivemos tempos polarizados, em que opiniões políticas, valores morais e crenças se tornaram linhas divisórias quase intransponíveis. Nessa arena, a amizade parece frequentemente ameaçada. Mas a amizade madura, aquela sobre a qual já discorri anteriormente, não é afinidade ideológica. É capacidade de ver o outro para além do que ele pensa.

Hannah Arendt dizia que o pensamento nasce da capacidade de conversar consigo mesmo. Eu acrescento: a amizade nasce da capacidade de conversar com o outro. E a amizade madura nasce da capacidade de sustentar conversas difíceis sem destruir o vínculo.

Tenho amigos que pensam radicalmente diferente de mim sobre temas fundamentais. Com alguns deles aprendi mais do que com pessoas que concordavam comigo em tudo. O dissenso, quando atravessado com ética, gera crescimento mútuo.

Nietzsche afirmava que “a verdadeira amizade exige certa tensão”. Discordar não é ruptura; é reconhecimento da alteridade. No entanto, existe um limite. A amizade não sobrevive onde há desumanização. É possível ter um amigo com quem discordo profundamente, mas não é possível ter amizade onde o outro nega minha dignidade ou minha humanidade. A amizade madura, portanto, não apaga diferenças, as ilumina sem permitir que se tornem abismos.

IV. Amizade na era digital: presença sem corpo, vínculo sem densidade?

A digitalidade transformou completamente o cenário dos relacionamentos humanos. Nunca estivemos tão conectados e, paradoxalmente, tão sozinhos.

Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço, afirma que a hiperconexão cria contato contínuo, mas não gera encontro porque confunde conexão com vínculo. Para que haja amizade, é preciso encontro, mesmo que este encontro não seja físico, mas deve ser sempre simbólico, emocional, epistolar.

Tenho amizades que nasceram no digital e se tornaram fontes profundas de sentido. Mas também vejo relações esvaziadas pela superficialidade da troca rápida, pelos “likes” que substituem conversas, pelas notificações que criam a ilusão de vínculo.

A questão não é demonizar o digital (ou o online), mas discernir: quando a tecnologia aproxima, ela é ponte; quando substitui a profundidade, ela é ruído. A amizade verdadeira resiste ao digital, mas não se satisfaz com ele, porque exige a densidade que nenhuma tecnologia consegue simular.

V. Amizade e poder: a delicada ética dos lugares assimétricos

Nem todas as relações começam em igualdade. Há amizades que nascem entre mestre e aprendiz, líder e liderado, terapeuta e paciente, professor e aluno. É possível uma amizade nesses contextos? Sim; mas é preciso maturidade ética.

Michel Foucault lembrava que todo relacionamento humano envolve uma disputa de forças. A amizade madura, porém, não elimina essa tensão: ela a reconhece e a regula.

Em minha trajetória, desenvolvi amizades verdadeiras com pessoas que inicialmente estavam em posições assimétricas em relação a mim. O que fez a amizade emergir foi a ética: ausência de manipulação; honestidade das intenções; transparência; respeito pela autonomia.

A amizade só floresce onde o poder não se torna instrumento de controle, mas de serviço, como Jesus fez quando chamou seus discípulos de amigos e lavou-lhes os pés. O poder que serve possibilita amizade. O poder que domina a impede.

VI. Amizade Inter geracional: legados que se cruzam

Uma das experiências mais belas da vida adulta é construir amizades com pessoas de diferentes gerações. Amizades com quem vem antes de nós carregam memória, sabedoria e chão. Amizades com quem vem depois carregam frescor, futuro e reinvenção.

Lembro-me de um jovem que se aproximou de mim certa vez, durante uma palestra, dizendo: “Vejo o senhor como um amigo que ainda não conheço bem.” Rimos juntos, mas depois percebi que havia verdade ali. A amizade inter geracional é isso: uma ponte entre tempos.

Agostinho dizia que “o tempo é distensão da alma”. Se é assim, a amizade inter geracional é a alma se distendendo para caber mais vida do que poderia caber sozinha. Essas amizades não apenas ampliam nossa experiência do mundo; ampliam também nossa responsabilidade. Somos, ao mesmo tempo, herdeiros e mentores, jardineiros e sementes. Tive muitas amizades profundas com pessoas bem mais velhas do que eu; e hoje, estou tendo a oportunidade de ser honrado com a amizade de pessoas bem mais jovens. Como isso me nutre, me alegra e me salva de mim mesmo!

VII. Amizade como legado: aquilo que deixamos nos outros

Penso com recorrência sobre o que significa deixar um legado. Frequentemente, imaginamos legado como algo que fazemos: livros, obras, projetos, instituições.
Mas, quanto mais envelheço, mais percebo que o maior legado que deixamos é aquilo que plantamos nas pessoas, especialmente nos amigos.

Os amigos são testemunhas de quem fomos. São arquivos vivos da nossa biografia emocional. São guardiões das nossas melhores intenções e dos nossos piores erros, e ainda assim permanecem. A amizade, nesse sentido, é memória compartilhada. E essa memória, quando transmitida, se torna parte da história de alguém.

Nietzsche dizia que “somente aquele que constrói o futuro tem direito de julgar o passado”. Eu diria que somente aquele que vive amizade verdadeira deixa um legado que realmente toca o futuro do outro. Sim, porque amizades verdadeiras criam possibilidades que jamais seriam possíveis para alguém sem amigos. Tantas  histórias confirmam isso: Mahatma Gandhi e Hermann Kallenbach; Winston Churchill e Frederick Lindemann; Martin Luther King Jr. e Bayard Rustin; Isaac Newton e John Flamsteed; Cleópatra e Mardiano; Theodore Roosevelt e Gifford Pinchot; Carlos Magno e Alcuíno de York; Frida Kahlo e Chavela Vargas; e tantos outros. Você tem amizades que lhe deixaram legados? Você tem amizades para quem você será o legado? Que tal pensar nisso?

VIII. A amizade como hospitalidade do ser

Minha síntese para esta terceira parte, em uma imagem, seria a da hospitalidade.A amizade é o lugar onde somos recebidos, não porque somos perfeitos, mas porque somos humanos. É o espaço onde nossa existência encontra acolhimento e espelho. Onde nossas dores encontram repouso. Onde nossos medos encontram tradução. Onde nossa morte encontra companhia. Onde nossa vida encontra significado. Onde nossa história permanece viva porque toca a eternidade.

A amizade, afinal, é a forma mais concreta, humana e cotidiana de transcendência. É onde Deus está, para quem crê; onde o sentido se aflora, para quem busca; onde o outro permanece, para quem sofre; onde o futuro encanta, para quem espera; onde tudo se torna presença e encantamento. A amizade é, por fim, a hospitalidade do ser: recebo o outro e, ao recebê-lo, descubro que também fui recebido.

 

CAPÍTULO IV

I. Retorno ao núcleo do conceito

Ao longo das partes anteriores deste ensaio, percorri diferentes dimensões da amizade: sua profundidade existencial, sua maturidade, sua relação com a vulnerabilidade, seu papel diante da morte, do tempo, da política e das gerações.

Contudo, para finalizar (e não para concluir), quero retornar ao núcleo originário do conceito e de minhas reflexões sobre ele, como quem retorna à nascente de um rio para entender sua força. Os capítulos anteriores convidaram-me a revisitar três dimensões fundamentais: A origem gregária e filosófica do conceito de amizade (A-Ego); A ética relacional — respeito, cordialidade, limites, não comparação; A amizade como espelho ontológico — o outro como possibilidade de mim mesmo.

Estas três dimensões, aparentemente simples, ajudaram-me a estruturar toda a arquitetura afetiva da amizade. A partir delas, pude aprofundar em mim e para mim mesmo a sua análise existencial, a partir de minha própria história, sem perder a delicadeza reflexiva que caracteriza meu estilo autoral.

II. A-Ego: a amizade como suspensão do eu

O ponto de partida é o termo grego que tanto gosto de evocar: A-Ego, o “sem-ego”. Essa negação não significa anulação do eu, mas sua abertura. Na amizade, o ego não desaparece, ele apenas deixa de ser soberano.

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, já advertia: onde houver interesse, utilidade ou cálculo, pode haver convivência, parceria, até afeto, mas não amizade verdadeira. O núcleo da amizade é o prazer de estar com o outro pelo fato dele ser quem é, não pelo que oferece.

É curioso como essa compreensão se harmoniza com a etimologia existencial de Kierkegaard, para quem o EU só se torna si-mesmo diante de outro eu que o vê.  Na amizade, deixo de ser “defesa”, deixo de ser “máscara”, e posso enfim ser presença.

Há, na filosofia ocidental, o relato da experiência da amizade profunda entre Montaigne e La Boétie, relato esse que, de fato, é inspirador. A frase “porque era ele, porque era eu” é talvez a mais perfeita síntese de A-Ego. Nela, o amor-amizade mostra sua natureza misteriosa: não é causal, não é racional, não é objetivável. É reconhecimento. É uma história tão intensa que Montaigne a descreveu como algo “perfeito, absoluto e que não admite explicações”.

Michel de Montaigne e Étienne de La Boétie se conheceram em 1558, quando tinham pouco mais de trinta anos. Ambos eram magistrados do Parlamento de Bordeaux e logo reconheceram um no outro algo extraordinário: uma afinidade imediata, rara e profunda. Essa amizade foi marcada por três características centrais.

(Uma conexão imediata e inexplicável) – Montaigne afirmava que sua amizade com La Boétie não podia ser justificada por razões práticas, políticas ou familiares. Não havia interesse, cálculo ou utilidade. Ele dizia simplesmente: “Se me forçarem a dizer por que eu o amava, sinto que isso não pode ser expresso senão respondendo: porque era ele, porque era eu.” Essa frase se tornou um dos maiores testemunhos de amizade já escritos.

(Reciprocidade total e profunda confiança) – Os dois partilhavam pensamentos, manuscritos, valores e segredos. La Boétie escreveu: “Na verdadeira amizade, dou-me ao meu amigo mais do que dele quero para mim.” Esse movimento, de  entregar-se ao outro sem receio, revela a extraordinária confiança e abertura entre eles.

(A morte de La Boétie e o impacto devastador) – La Boétie morreu jovem, aos 32 anos, provavelmente de peste. A perda do amigo abalou profundamente Montaigne. Ele escreveu que, após a morte do amigo, sentia que havia perdido parte de si mesmo: “Compartilhávamos metade de tudo. Parece-me que eu furtava a parte dele.” E completou: “A vida me parece como uma noite escura desde que o perdi.”

Essa dor levou Montaigne à introspecção que mais tarde se transformaria nos Ensaios, obra que inaugurou a literatura moderna do EU, e cuja origem, em muitos aspectos, está na perda do amigo.

A amizade entre Montaigne e La Boétie foi: imediata, profunda, intelectual e emocional, sem interesse, recíproca, transformadora, e tão marcante que continuou viva na obra de Montaigne mesmo após a morte do amigo. É considerada até hoje um dos modelos mais altos da amizade humana, a expressão mais pura da philia aristotélica e da ideia de A-Ego, a relação onde o ego não se impõe.

III. Jônatas e Davi – A aliança da alma

Outra história inspiradora é a da relação entre Jônatas e Davi (1Sm:18 a 20). É uma das narrativas bíblicas mais belas da literatura antiga, porque revela uma amizade que transcende utilidade, sangue, posição social e expectativa.

A amizade entre Jônatas (o herdeiro natural do trono) e Davi (o futuro rei de Israel escolhido por Deus) floresceu em meio a um contexto de ciúmes políticos e tentativas de assassinato por parte do rei Saul. A lealdade de Jônatas a Davi sobrepôs-se ao seu próprio direito ao trono, e a lealdade de Davi a Jônatas estendeu-se à sua descendência, tornando-se um exemplo eterno de amizade e fidelidade.

A frase “a alma de Jônatas se ligou à alma de Davi” descreve não fusão, mas concordância de essência. Aquilo que Agostinho chamaria de consentire, “sentir com”. O ato de Jônatas entregar a Davi sua capa, seu arco e sua espada é profundamente simbólico. Ele oferece ao amigo aquilo que representa sua identidade social e militar e seu poder. Não há gesto mais radical de confiança do que despir-se diante de alguém, sem medo.

Tal gesto, quando visto pela lente da Inteligência Relacional, revela algo central: amizade é generosidade sem cálculo e, como dizia Fromm, toda generosidade verdadeira nasce da liberdade.

IV. A dança relacional: falar, escutar e edificar

Há três movimentos que sustentam uma amizade: falar, escutar e edificar, temas que trato no meu trabalho como “competências conversacionais”.

Essas competências descrevem a amizade como “dança harmônica entre falar e escutar”, e isso ecoa diretamente do pensamento de Paul Ricoeur: “o si mesmo só se compreende através do outro.” A amizade é, portanto, diálogo que não se esgota.

Mas há um quarto componente: edificação. É Aristóteles novamente quem afirma que o amigo é aquele que nos torna melhores. É Jesus quem diz: “tudo vos dei a conhecer” revelando que o amigo é aquele com quem compartilho o que me constrói.

Na amizade madura, a fala não fere, a escuta não diminui, e o encontro não exige submissão. Há igualdade ontológica mesmo quando há desigualdade biográfica.

V. Os quatro obstáculos que destroem a amizade

Mas, dentre os elementos nocivos à amizade, que a impedem de se desenvolver ou a destroem, listo quatro deles. Quero aprofundá-los conceitualmente, rearticulando-os com a filosofia e a psicologia.

1. A falta de respeito

Respeito é valor absoluto na ética da diferença. Sem respeito, não há alteridade possível. Arendt dizia que a vida em sociedade nasce do espaço entre pessoas que se reconhecem mutuamente. A amizade também. O desrespeito rompe não o vínculo, mas o solo onde o vínculo poderia brotar.

2. A ausência de cordialidade

Cordialidade não é gentileza superficial. É cordis, “do coração”. A ausência de cordialidade abre espaço para a violência simbólica, expressão cara a Pierre Bourdieu, que a usa para expressar o que corrói de forma sutil e até “delicada”, a integridade do outro. Não há amizade onde o afeto é utilizado como desculpa para grosserias.

3. A disponibilidade excessiva

Esse ponto me é especialmente precioso. Na Inteligência Relacional, afirmo e reafirmo sempre: “Quem está sempre disponível, jamais será desejado.” A disponibilidade sufocante impede a oxigenação da relação. Em termos psicanalíticos, cria fusão; em termos filosóficos, impede individuação; em termos sociais, gera saturação. A amizade exige presença, não posse. Exige prontidão, não ubiquidade.

4. A comparação

Comparar-se é envenenar o vínculo. Nietzsche afirmava que “o inferno das relações humanas está no ressentimento”. A comparação é o útero do ressentimento: mata a gratidão e distorce o olhar. A amizade verdadeira só é possível entre pessoas que não querem ser iguais, querem ser apenas próximas.

VI. O incômodo como critério de maturidade

Tenho dito em várias oportunidades algo em que acredito profundamente: “Amigos incomodam.” O incômodo do amigo é diferente do incômodo do inimigo. O incômodo do inimigo destrói; o do amigo revela. O inimigo expõe por maldade; o amigo expõe por cuidado.

A amizade madura inclui momentos de confronto que não arrancam raízes, mas removem ervas daninhas. Kierkegaard chamaria isso de “correção amorosa”; Fromm chamaria de “cuidado ativo”. Eu chamo de integridade relacional: a coragem de dizer o que precisa ser dito sem ferir a dignidade do outro de forma educada, generosa, elegante e gentil. Isso nem sempre á fácil, mas é possível.

Mas há um limite: quando o incômodo se torna maior que o afeto, a amizade se desfaz. A amizade não exige sacrifício sufocante; exige trabalho mútuo.

VII. O mito do Andrógino: amizade como busca da completude não sexual

O mito de Andrógino narrado por Platão em O Banquete, é um mito simbolicamente preciso. No início dos tempos, diz o mito, os seres humanos eram criaturas completas: Cada pessoa tinha duas faces, quatro braços, quatro pernas e uma força extraordinária. Eram chamados andróginos, porque uniam em um só corpo o masculino e o feminino.

Esses seres tornaram-se tão poderosos que desafiaram os deuses. Para contê-los, Zeus os dividiu ao meio, criando seres separados (homens e mulheres). Desde então, cada metade sente uma nostalgia profunda da unidade perdida e passa a vida buscando sua outra parte, não apenas no amor, mas também nas amizades profundas, que restauram simbolicamente a sensação de plenitude. Em essência: o mito diz que buscamos no outro aquilo que um dia fomos, e que a amizade é uma das formas mais elevadas dessa busca.

Platão sugere que buscamos no outro aquilo que nos restaura, ontologicamente. Assim, a amizade torna-se expressão dessa busca pela outra metade da alma, não na forma romântica, mas na forma ética. O amigo é a metade que me lembra que sou inteiro. O amigo me reconcilia comigo mesmo.

VIII. A amizade como “santa esquizofrenia”

Gosto da imagem da amizade como uma “santa esquizofrenia”; porque conversar com o amigo é como conversar comigo mesmo e, ainda assim, continuar sendo outro.

Essa imagem, filosoficamente, sugere que no amigo, encontro aquilo que sou e aquilo que não sou; no amigo, reconheço minha identidade e minha diferença; no amigo, vejo a possibilidade de mim mesmo, não minha repetição.  É por isso que Montaigne dizia que o amigo é “metade de tudo”. A amizade divide o fardo e multiplica o sentido.

IX. Amizade como forma suprema de Inteligência Relacional

A amizade não é apenas um sentimento, é uma competência relacional complexa que se manifesta no equilíbrio entre intimidade e limite; no diálogo entre vulnerabilidade e firmeza; na reciprocidade entre dar e receber; na gestão ética das diferenças; na habilidade de ver e ser visto.

A amizade, no ápice, é aquilo que Jesus sintetiza com impecável clareza: “Tenho chamado vocês de amigos, pois tenho compartilhado tudo com vocês.” A partilha é a essência da Inteligência Relacional. Partilhar não é dividir: é multiplicar.

X. A amizade como vocação adulta

Ao discorrer sobre a amizade nas quatro partes desse ensaio, percebo que, pelo menos em mim, construí uma convicção apaziguadora: Amizade é a forma mais elevada de maturidade humana. Por isso a busco, sempre, como princípio de vida. Nem sempre consigo, mas sempre a desejo.

Ela exige autoconsciência, autodisciplina, ética, responsabilidade, coragem e generosidade. É mais difícil do que o amor romântico, porque não tem rituais, não tem contratos, não tem promessas obrigatórias. E, justamente por isso, é mais livre e mais bela.

 

Amigos:

incomodam sem ferir;

corrigem sem humilhar;

celebram sem invejar;

permanecem sem aprisionar;

cuidam sem controlar;

caminham sem exigir.

E, sobretudo: amigos não vão embora porque permanecem dentro de nós. A amizade é, finalmente, aquilo que resta quando todas as outras formas de relação já deram o que tinham a dar. É o que permanece quando tudo passa. É o que sustenta quando tudo cai. É o que ilumina quando tudo escurece. Amizade é, no fim das contas, a mais perfeita forma da Inteligência Relacional.

Reflitam em paz!

Brasília, dezembro/2025

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