Quando completei cinquenta anos, fiquei perplexo. Nunca pensei que chegaria tão longe. Nos meus sonhos de infância, essa idade era atributo dos mais velhos, e eu, certamente, não me imaginava “mais velho”. Mas, fato é, os cinquenta chegaram, e já, já serão cinquenta e “uns”. Hoje sou um “mais velho”, teoricamente mais sábio, mais prudente, mais conhecedor da vida. Teoricamente, porque, de fato, me parece que a única coisa efetiva dessa ideia de idade é que com o tempo a gente aprende a ver as coisas por outro ponto de vista. Não sei se melhor ou pior, mas, certamente, diferente – isso é um dos atributos das idades: fazer a gente ser diferente a cada dia. Particularmente, gosto da ideia. A gente acaba por ver o mundo sobre uma perspectiva talvez mais integral, mais plena. Aprende-se a não ser o centro do universo. No meu caso, pelo menos, tem sido assim. Essa perspectiva, no entanto, tem se apresentado sempre a partir de uma boa recordação das histórias que ouvia na infância: os contos de fadas. Não sei porque, mas tenho me lembrado deles e tenho escrito muito sobre eles. Meus alunos sabem disso. Esse é o caso da história desse texto. Um dia, meu amigo e colega Prof. Pontes passou-me um e-mail falando sobre a Roupa Nova do Rei, um conto de Hans Christian Andersen. Uma história da infância que nos revela muito sobre as relações entre as pessoas. Pois é! Dessa lembrança surgiram algumas reflexões. Aí vão elas.
Pra começo de conversa, é bom fazer um resumo da história para aqueles que não a conhecem.
Era uma vez – toda boa história começa assim – um reino. Um reino governado por um rei muito vaidoso que gastava todas as riquezas do reino com sua vaidade. Carros, joias, viagens, massagens, banhos florais, plásticas e tudo o mais que pudesse fazer algum efeito em sua aparência. Mas, de tudo isso, o que ele mais gostava eram as roupas. Seu guarda-roupa vivia entulhado das mais finas e caras peças da moda.
Aliás, isso era motivo de críticas severas de todos os seus assessores, sem falar dos inimigos políticos, que viam nessa prática bons motivos para desqualificá-lo. O povo sofria com a falta de recursos, porque todas as riquezas eram gastas com a vaidade do rei e as coisas que precisavam ser feitas não o eram. Mas, no fundo, no fundo, ele não era um mau rei. Desorientado, talvez.
Um dia, dois espertalhões, sabedores das loucuras desmedidas do rei por causa de sua vaidade, apresentaram-se no palácio real como sendo grandes costureiros de uma longínqua terra mágica. Diziam-se capazes de fazer a mais bela de todas as roupas, uma roupa tão perfeita que tornava quem a usasse incomparavelmente belo. O rei logo se interessou pelo assunto. Com uma roupa dessas, ele seria muito mais feliz. Assim, sem mais delongas, tratou de contratar os costureiros mágicos, encomendando a mais bela e cara de todas as roupas.
Assim, os costureiros começaram logo a trabalhar. Depois de tirar as medidas reais, passaram a produzir a tal roupa, trabalhando todos os dias com afinco e determinação, numa produção secreta de fazer inveja a qualquer trabalhador. O rei estava ficando ansioso, porque o tempo estava passando e nada da roupa ficar pronta. O reino também estava vivendo a grande expectativa do dia em que o rei haveria de se apresentar vestido de tal beleza.
Tamanha era a ansiedade, que um dia o rei resolveu ver o que faziam os costureiros e em que pé estava a produção de sua roupa.
Foi até o atelier e surpreendeu-se ao ver que nada estava sendo produzido. Não avistara nem um carretel de linha sequer. Não havia nem um botãozinho pra contar história. Imediatamente, cheio de raiva e frustração, foi ter com os costureiros para exigir deles uma explicação para aquilo.
— Senhores, como pode ser isso? Contratei-os para cozer uma roupa real, mágica e bela, mas vejo que nada está sendo feito! – disse o rei,
— Perdoe-nos, Vossa Alteza, mas tudo está sendo feito a seu
tempo. Aliás, estamos adiantados na confecção de sua roupa mágica e podemos lhe assegurar que é a mais bela de todos os tempos. – disseram os costureiros.
— Como, se não encontrei nada no atelier?
— Sim, Excelência, porque a roupa está guardada em local seguro, e, além do mais, por ser uma roupa mágica, só pode ser vista por pessoas inteligentes. Venha, vamos mostrá-la ao Senhor, embora
isso não devesse ser feito antes de concluírmos os trabalhos. Assim, levaram o rei a uma sala onde nada existia, e, com enorme maestria, começaram a mostrar tecido que não se via, linha que não se via, desenhos e modelos que não se viam.
— Veja, Vossa Alteza, que belo recorte temos aqui. Certamente, sendo Vossa Alteza muitíssimo inteligente, pode perceber como ficou bonito esse detalhe nas mangas, esse corte no colarinho,
essa combinação de cores.
O rei, como pessoa inteligente, passou a ver tudo, cores, tecidos, modelos…
Enfim, ficou pronta a roupa. Todo o reino estava ansioso por vê-la. O rei, orgulhoso de sua roupa, mandou que se fizesse uma festa nacional, na qual ele, vestindo a roupa mágica, iria desfilar
para todos os súditos. Também deveria ser explicado que a roupa só poderia ser vista por pessoas que fossem inteligentes.
Os costureiros, depois de receberem uma fortuna pelo trabalho, entregaram a roupa mágica e partiram sem nunca mais serem vistos.
Dia da festa. Povo reunido, o rei vestindo a roupa que não se via, sai pelas ruas da cidade ostentando sua mais nova aquisição. Todos aplaudem e comentam sobre a beleza da roupa.
— Como ficou bem, diziam uns; que belas cores, afirmavam outros; que bom gosto, comentava-se aqui e ali. E transcorria a festa, repleta de gente e de comentários “inteligentes”. Até que, de repente, um súdito menos avisado, insurge na multidão e, percebendo toda a trama, grita: «O REI ESTÁ NU!»
Imediatamente, todos percebem o papel ridículo que estavam fazendo, e o rei, ao contemplar sua nudez, descobre quão insensato estava sendo em sua vaidade.
Bom, essa é a história, contada do meu jeito a partir das lembranças. História que me faz pensar em muitas coisas.
Primeiro, revela que nossa autoimagem é construída sobre alicerces pouco consistentes. Estamos mais preocupados com o que pensam de nós do que com aquilo que somos. Geramos mais ações para construir imagens do que para ganharmos consistência. Fazemos o jogo do poder constituído. Somos capazes de “ver roupas mágicas” apenas para sermos “inteligentes” aos olhos dos outros, mesmo que isso nos torne ridículos. Essa enorme necessidade de sermos aceitos a qualquer custo torna-nos vulneráveis e incapazes a um honesto processo de autoconhecimento.
Segundo, denuncia a tirania do poder. “Veja o que o rei quer que seja visto”, assim você continuará sendo amigo do rei e, obviamente, usufruindo os benefícios da Corte. Submetemo-nos ao senso comum porque é mais fácil transitar pelo caminho da aquiescência do que sugerir um novo caminhar. O poder sabe disso. As estruturas de comando instaladas na sociedade usam desse artifício para manter os “súditos” em total estado de alienação. Vive-se das aparências, mesmo sabendo que estamos nus. O medo de ser diferente paralisa a criatividade, inibe o desenvolvimento, impede uma honesta construção das novidades, nos aprisiona ao óbvio, nos impede de sermos honestos.
Terceiro, a história nos conta de um rei que não foi capaz de encarar suas próprias limitações. A associação de fragilidades com o poder socialmente constituído faz de nós tiranos. O professor Rubem Alves dá a receita para se fazer tiranos. Diz ele: “pegue alguém com certezas plenas, verdades
absolutas, convicções definitivas e lhe dê poder. Está pronto o tirano”. Pessoas que não se veem, que não identificam suas fragilidades, que não percebem suas fraquezas, que não entendem suas limitações, são pessoas incapazes de pedir ajuda. Isso as torna solitárias e defensivas. Porque a capacidade de pedir ajuda é uma das maiores ferramentas na construção dos processos de aprendizagem social, e a solidão, o maior de todos os males. Só aprendo quando reconheço que não sei e que preciso daquele conhecimento. Reconhecer a necessidade é o primeiro passo, descobrir que o outro pode ajudar é o segundo, o terceiro é pedir ajuda. Isso nos envolve com o outro, torna-nos participantes, cria interação, desenvolve o senso de identidade.
Quarto passo, o de que há sempre alguém à espreita de um vaidoso. Somos presas fáceis na medida em que não vemos nossa própria vaidade. O rei acredita no absurdo porque necessita do absurdo para alimentar sua própria vaidade. Acredita na magia barata, seja ela qual for, porque não suporta sua própria contingência. Aí está o terreno fértil para o surgimento dos “salvadores da pátria”, dos curandeiros de ocasião, dos leitores do futuro, dos profetas de plantão. Quando não se compreende a própria limitação, transfere-se a gestão da vida para quem não tem nenhuma responsabilidade para com ela. O rei dilapida o reino para se satisfazer. Os “costureiros mágicos” partem antes que se constate que o rei está nu e a sociedade, perplexa, se vê cúmplice de sua própria mazela.
Quinto passo, sempre tem alguém lúcido por perto. O súdito “menos avisado” é alguém que revela o que todos podem ver, mas que não querem ou não se interessam em ver. Essa denúncia revela que é possível desmontar a trama em que nos envolvemos se optarmos por um compartilhamento honesto de nossas próprias percepções. Não no sentido da competição por ser o mais certo, por se ter a palavra final, para ser a nova referência do grupo ou coisa assim. Mas um honesto compartilhar, no sentido de se apresentar novas possibilidades como simples possibilidades. De propor uma nova via para o conhecimento e para a ação.
O rei está nu, essa é a visão fatal. Ela expõe nossa condição ao revelar a superficialidade das relações. Se por um lado é doloroso saber que o rei está nu, por outro é condição necessária para, de fato, se vestir. Portanto, a denúncia não se torna um fim em si mesmo, mas, antes, uma possibilidade
de solução real. O rei está nu, todos estão nus. A vergonha do rei é a expressão da vergonha do reino. Nada há no poder que não emane de quem o constituiu. Portanto, a história nos leva a refletir sobre as coisas às quais atribuímos valor. O que é relevante para mim? Como gasto meu tempo? O que tem prioridade em minhas decisões? Como escolho em quem votar? Em que invisto minhas competências? Essas e outras perguntas de mesma natureza podem nos levar a descobrir o que “está nu em nós”.
Ser capaz de entrar nesse processo de autoconhecimento descortina muito de nossa natureza, gerando uma real possibilidade de intervenção criativa na composição dos relacionamentos. Ser capaz de entrar nesse processo possibilita uma integração maior entre os membros de um grupo, de modo que as diferenças existentes passam a ser vistas como possibilidades e não como ameaças. Por fim, ter os olhos atentos ao que está acontecendo no contexto nos faz entender que o rei está nu, mas que ainda é rei.