A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL
O CÁLICE E A ESPADA
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O CÁLICE E A ESPADA
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O CÁLICE E A ESPADA
A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL
O CÁLICE E A ESPADA
A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL
O CÁLICE E A ESPADA
A ESCUTA ATIVA E SEUS REFLEXOS NOS RELACIONAMENTOS
A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL
O CÁLICE E A ESPADA
A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL
O CÁLICE E A ESPADA
A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL
O CÁLICE E A ESPADA
A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL
O CÁLICE E A ESPADA
A ESCUTA ATIVA E SEUS REFLEXOS NOS RELACIONAMENTOS
Reflexões sobre Coerência, Relações e Sentido©[1]
Quando utilizo a expressão “esquizofrenia organizacional”, não me refiro a um diagnóstico clínico, mas a uma metáfora poderosa para descrever o desencontro entre o que se proclama e o que se pratica. É um hiato que separa valores anunciados de condutas efetivas; um descompasso que se manifesta tanto em instituições quanto em pessoas. No fundo, é a incoerência como modo de existência: uma vida em que se defende a ética no discurso e se pratica a transgressão nos bastidores, em que se fala de cuidado mas se age com descaso, em que se promete inclusão mas se reproduz exclusão. Essa incoerência, embora muitas vezes silenciosa e imperceptível no início, vai corroendo os alicerces da confiança, minando a credibilidade e desestruturando os vínculos que sustentam toda forma de convivência. Como se isso não bastasse, a esquizofrenia organizacional bloqueia as ações de longo prazo, minando o propósito das instituições. Isso porque constrói uma agenda oculta. Coisas são ditas “nos bastidores” e não sustentadas na vida pública; onde “sinceridade” é confundida com agressividade, questões pessoais disfarçados de “compromissos”, solidariedade encobrindo conflitos de interesse.
A esquizofrenia, em seu conceito técnico, é um transtorno mental, marcado por uma profunda dissociação entre percepção, pensamento, emoção e comportamento. Quem vive com essa condição experimenta uma ruptura na integração da realidade: acredita em coisas que não existem, ideias que não encontram base no mundo objetivo, sente afetos que não se ajustam às circunstâncias. Suas consequências traduzem um empobrecimento da vida emocional e social. A esquizofrenia é antes de tudo uma fragmentação da percepção, da razão, da afetividade e da conduta.
Quando transporto essa conceituação para o universo das organizações, encontro um paralelo inquietante. Vejo instituições que, como sujeitos em sofrimento psíquico, vivem uma cisão interna entre o que percebem, dizem, o que sentem e o que fazem. O discurso institucional, como um delírio socialmente aceito, anuncia valores elevados: ética, sustentabilidade, inclusão, bem-estar. Mas a prática cotidiana revela outra realidade, muitas vezes contraditória: ciúmes, invejas, comportamento “bate-assopra”, exploração de pessoas, descaso ambiental, exclusão velada, sobrecarga de trabalho. É como se a organização tivesse suas próprias alucinações, vendo-se como algo que não é, projetando uma imagem que não se sustenta na experiência real de quem a habita.
Nesse sentido, a esquizofrenia organizacional não é apenas incoerência. É uma ruptura do vínculo entre palavra e gesto, entre intenção e ação, entre identidade proclamada e vida concreta. Tal como no indivíduo em sofrimento, a organização perde a unidade de seu “eu” coletivo.
Costumo dizer que essa esquizofrenia é como uma rachadura em uma grande parede. No começo, quase invisível, não incomoda. Mas, com o tempo, se amplia, e toda a estrutura começa a se fragilizar. Uma organização pode continuar erguida por algum tempo, sustentada por aparências, slogans ou marketing, mas inevitavelmente essa rachadura se tornará visível e colocará tudo em risco. O problema não é apenas institucional; ele se infiltra nas relações entre as pessoas que compõem a organização. Cada líder ou colaborador, cada cliente, cada fornecedor sente, mesmo que inconscientemente, o peso da incoerência.
Tenho acompanhado organizações que falam de resultados e futuros com entusiasmo em seus relatórios anuais, mas cujas práticas diárias revelam desperdício, poluição e desordem na gestão. Outras que proclamam a diversidade como bandeira, mas mantêm em seus conselhos e diretorias apenas perfis homogêneos, fechados à diferença. Propósitos louváveis e práticas corrosivas. Vejo empresas que se dizem defensoras da ética, mas convivem naturalmente com pequenas corrupções cotidianas, justificadas em nome da sobrevivência do negócio. Também encontro instituições que defendem publicamente o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas que esperam que seus colaboradores se sacrifiquem em jornadas intermináveis, respondendo e-mails de madrugada ou abrindo mão de finais de semana.
O curioso é que muitas vezes essa incoerência não nasce da má-fé, mas de um conjunto de concessões aparentemente inocentes. Surge quando se diz: “vamos abrir uma exceção só desta vez”, “todos fazem assim, não podemos ficar para trás”, “precisamos bater a meta a qualquer custo”. Essa repetição de pequenas justificativas acaba criando uma cultura em que o discurso e a prática se divorciam. O resultado é uma vida organizacional esquizofrênica: proclama-se um valor para fora, pratica-se outro para dentro. Mas o pior da esquizofrenia organizacional é a dificuldade das pessoas de conversarem amigavelmente sobre as “coisas que discorrem”. Tudo acaba sendo um grande “ringue” de exercício do poder, tentativa de manipulação, ameaças veladas.
As consequências são devastadoras. A confiança se desfaz, e sem confiança não há vínculo que sobreviva. A motivação se dilui, porque ninguém se sente mobilizado por discursos vazios. Os conflitos internos aumentam, porque os valores deixam de ser referência compartilhada e passam a ser apenas retórica. A reputação, que leva anos para ser construída, pode ser destruída rapidamente quando incoerências vêm à tona. Mas talvez a consequência mais dolorosa seja a perda de sentido: quando uma pessoa ou organização deixa de alinhar discurso e prática, perde também a razão pela qual existe, porque os valores deixam de ser bússola e se tornam apenas enfeite.
A origem dessa esquizofrenia é multifacetada. Na maior parte das vezes ela nasce da liderança. Um líder incoerente, que não encarna os valores que proclama, cria descrédito em cascata. Mas também pode nascer de falhas de comunicação, quando mensagens se perdem e a prática vai em direção oposta ao discurso. Outras vezes é fruto do excesso de foco em resultados, em que o número vale mais que a dignidade. Há também a cultura da aparência, que prioriza a imagem externa e descuida da prática interna, criando um teatro de valores que nunca se tornam realidade. Em muitos contextos, a causa é ainda mais sutil: o medo do conflito. As pessoas percebem incoerências, mas calam-se, receosas de desagradar ou de colocar em risco sua posição. O silêncio, nesse caso, se torna cúmplice da fragmentação. Mas também há o caso dos “ultra comprometidos”; ou seja, pessoas que se julgam detentores das “verdades do negócio” e, em nome disso, perdem a elegância e o trato cortes com os demais.
Superar a esquizofrenia organizacional exige coragem e humildade. Coragem para enfrentar-se a si mesmo em um processo de autoconhecimento, como também para enfrentar dilemas éticos e para recusar atalhos convenientes que traem os valores fundamentais. Humildade para admitir erros, assumir vulnerabilidades e abrir espaço para conversas sinceras. A coerência não se constrói com discursos apenas, mas com gestos cotidianos, às vezes simples, mas sempre consistentes. Um pedido de desculpas sincero pode reconstruir mais confiança do que uma campanha de marketing milionária. Uma decisão difícil, tomada em nome de um valor ético, pode inspirar mais lealdade do que qualquer incentivo financeiro. A competência de atuar em grupo, buscando o consenso, vale mais do que a arbitrariedade de uma ação isolada, ainda que legítima. Entendendo que às vezes “posso fazer, mas não devo”. Esse discernimento nos conduz à saúde organizacional.
Nesse ponto, percebo como a Inteligência Relacional se apresenta como um verdadeiro antídoto contra a esquizofrenia. Ela nos lembra que o valor de nossas ações não está apenas no que pretendemos, mas no que o outro percebe, sente e experimenta em contato conosco. Não refere a como atuo na minha “boa vontade”, mas como o outro percebe isso e como o “meu modo de ser” impacta os outros. Somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo efeito que causamos. Isso significa que não basta ter boas intenções: é preciso alinhar o discurso às práticas de forma que o outro possa experimentar a coerência em cada gesto.
A coerência, nesse sentido, é mais que uma virtude: é a garantia de segurança relacional. Quando ajo em consonância com aquilo que proclamo, ofereço ao outro um espaço previsível e confiável. A confiança nasce dessa previsibilidade. A incoerência, ao contrário, gera incerteza, porque nunca se sabe qual versão da organização “está funcionando”: a do discurso ou a da prática. E a incerteza é corrosiva para qualquer vínculo.
A vida me mostrou que a coerência não significa perfeição. Significa autenticidade. Implica mostrar-se vulnerável, assumir limites, pedir desculpas quando necessário e entender que é na qualidade das relações que construímos o futuro. É justamente na vulnerabilidade que a humanidade se manifesta, e isso não fragiliza os vínculos; pelo contrário, fortalece-os. Quando um líder reconhece que errou e se dispõe a corrigir o rumo, inspira mais confiança do que quando julga estar sempre certo.
As aplicações práticas dessa reflexão são inúmeras. No campo da convivência humana corporativa, coerência significa transformar o discurso de cuidado em políticas concretas de bem-estar. No marketing, significa que as promessas feitas devem corresponder à experiência entregue, sob pena de transformar as relações em engodos. Na governança, significa alinhar relatórios de desempenho e sustentabilidade às práticas diárias, evitando o risco da “maquiagem verde”. De fato, refere-se à prática de uma empresa ou instituição que divulga(interna ou externamente) uma imagem de sustentabilidade, responsabilidade e coerência que não correspondem às suas ações reais (internas ou externas). Ou seja, usa-se um discurso ou marketing apenas para melhorar a reputação, sem mudanças consistentes na suas ações cotidianas. Na educação corporativa, significa ensinar que ética e coerência não são acessórios, mas fundamentos. Até mesmo nas relações familiares, coerência significa viver aquilo que se ensina, para que os filhos aprendam mais com o exemplo do que com as palavras. Para a liderança, significa também ser exemplo de fato.
Percebo que a coerência é um processo “terapêutico” contínuo contra a esquizofrenia organizacional, e nunca um estado acabado. Ela nasce do autocuidado, porque não posso ser coerente se vivo em contradição comigo mesmo. Ela se alimenta da escuta ativa, porque é ouvindo o outro que percebo minhas incoerências. Ela cresce na responsabilidade compartilhada, porque a cultura de uma organização não é obra apenas da liderança, mas de todos. E ela se consolida na coragem ética, quando assumimos a decisão de permanecer fiéis aos nossos valores, mesmo quando isso custa caro.
Gosto de pensar na esquizofrenia organizacional como um espelho incômodo. Ela nos mostra nossas contradições, expõe nossas feridas, mas também nos convida à transformação. Onde há incoerência, há possibilidade de aprendizado. Onde há fragmentação, pode nascer reconciliação. Cada contradição é um chamado à coerência, cada falha é um convite à responsabilidade. O risco é real, mas a oportunidade também é.
No fim, acredito que a coerência é o maior patrimônio que uma pessoa ou organização pode possuir. Não se conquista de uma vez por todas, mas se cultiva em pequenas escolhas diárias. É ela que sustenta reputações, que fortalece vínculos e que dá sentido ao trabalho. Quando penso no legado que desejo deixar, não me interessa ser lembrado pelas palavras bonitas que escrevi ou pronunciei, mas pela coerência entre o que disse e o que pratiquei. Porque, no fundo, é isso que permanece: a confiança que inspirei, os vínculos que construí, o sentido que ajudei a semear.
E se a esquizofrenia organizacional é um risco constante, ela também é um chamado à vigilância permanente. Cada gesto incoerente é um lembrete de que precisamos ajustar o rumo. Cada contradição percebida é uma oportunidade de recomeço. Ser coerente é um exercício de humanidade, uma escolha diária de alinhar discurso e prática, palavra e gesto, valor e conduta. É nesse alinhamento que se constrói a verdadeira grandeza das pessoas e das instituições.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília,outubro/2025

Da Violência à Paz
by Homero Reis©
O Cálice e a Espada (Riane Eisler)[1], é um livro essencial. A partir de uma pesquisa longitudinal de dez anos, o que ela nos oferece não é apenas uma interpretação da história humana, mas uma proposta para o porvir. Lê-lo fez-me sentir como se tivesse em mãos, duas chaves simbólicas. Uma abre a porta da violência que atravessa nossa história; a outra abre a possibilidade de um futuro tecido pela paz.
Ela nos desafia a reconhecer que a forma como estruturamos a vida em sociedade não é a única possível. Somos filhos de escolhas, e podemos escolher de novo. De fato, como gosto de dizer, “o futuro não existe como tal. Somos frutos de nossas escolhas”.
A pergunta desafiadora que me atravessa ao ler Eisler é simples e poderosa: existiram sociedades pacíficas em nossa história? Se a resposta for “sim”, então a violência que naturalizamos como destino é evitável. Ela é apenas uma narrativa dominante. E se houve outras narrativas de parceria, cuidado e respeito, então nós podemos, hoje, recontar a nossa história e reescrevê-la no presente a partir de outras perspectivas.
O que lhes quero trazer nesse texto é minha visão e algumas reflexões sobre o trabalho de Eisler.
A metáfora central é luminosa. O cálice simboliza culturas matrísticas, voltadas ao acolhimento, à nutrição, à vida que se renovam no ventre e no vínculo. É um recipiente sagrado que guarda e compartilha; é a taça que une, não a lâmina que separa. Em contrapartida, a espada representa as culturas patriarcais, fundadas na violência, na guerra e na exploração. A espada corta, fere, divide. É o símbolo da dominação que sustenta a crença de que só pela força se constrói um mundo melhor.
Durante trinta mil anos, as sociedades patriarcais nos ensinaram que a guerra e a exploração eram os motores do progresso. Esse conceito nasce do discurso de que a violência pode ser legitimada em macro ou micro escala. É a ideia do mais forte contra o mais fraco, do “olho por olho e do dente por dente”. A lógica é simples e brutal: se não posso explorar, eu guerreio para conquistar. E assim consolidamos a ideia de que dominar é a única forma legítima de nos relacionarmos. Mas Eisler nos lembra: isso não é destino, é escolha. E escolhas podem ser revistas.
O nascimento das perguntas humanas
Se voltarmos à pré-história, percebemos que a narrativa hostórico-social nasce de três perguntas fundantes: De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos?
Essas questões ecoam desde as pinturas rupestres até as filosofias contemporâneas. Não temos respostas definitivas. O que temos são narrativas, crenças, mitos. E esses mitos moldam a forma como nos relacionamos.
O fato incontornável que as primeiras sociedades puderam observar era simples: todos nós viemos da mulher. O vínculo entre ato sexual e gravidez era invisível ao olhar imediato. O tempo entre o coito e os sinais da gestação era longo demais para ser percebido. Por isso, os povos primitivos só podiam concluir uma coisa: a vida nasce da mulher, assim como todo animal nasce de sua mãe. Mas, como não era visível a relação entre coito e gravidez, as comunidades primitivas acreditavam na ideia de que a fecundação era um “ato dos deuses”, e, portanto, a mulher era o caminho pelo qual a divindade entrava na história humana. Tanto é que as narrativas das concepções divinas são comuns na história. As mais conhecidas são: o nascimento de Hércules, filho de Zeus com a mortal Alcmena; e o nascimento de Jesus, filho de Jeová com Maria. No entanto, há várias outras histórias semelhantes. Essa percepção fundou uma forma de organização relacional: a cultura matrística, baseada no acolhimento, no cuidado e na integração, tendo por centralidade a figura feminina.
Nessas culturas, havia luta, competição, conflitos, mas não havia a violência como princípio. Divergir não era destruir; disputar não era exterminar. O ventre materno era metáfora de comunidade: nele cabiam todos, sem distinção. Esse modelo ainda existe entre nós. Os jogos olímpicos, por exemplo, são expressões de competição, luta e disputa, mas não de inimizades ou violência.
A transição para a dominação
Com o tempo, a humanidade percebeu o papel masculino na concepção. O esperma passou a ser visto como a semente indispensável da vida. E a narrativa mudou: do ventre da mulher para a “semente” do homem. A sacralidade feminina foi sendo substituída pela supremacia masculina. E com ela nasceram estruturas patriarcais que subjugaram e extinguiram sociedades matrísticas inteiras.
Essa mudança não foi apenas biológica, foi política. A dominação masculina não se impôs pela persuasão, mas pela violência, pela criação de mitos aterrorizantes e pela manipulação da ignorância. Se uma colheita queimava, era porque a divindade masculina exigia submissão. Se uma doença devastava, era punição por não obedecer. Surgiu a figura dos intermediários, sacerdotes que não apenas cuidavam da espiritualidade, mas a usavam para impor medo e controle. Criou-se o inferno como ameaça e a salvação como barganha. A espada substituiu o cálice. O medo passou a reger o vínculo. A relação deixou de ser parceria e tornou-se hierarquia.
Quando penso no que significa viver em uma cultura patriarcal, vejo diante de mim um espelho que, por séculos, refletiu apenas um lado da humanidade. É como se tivéssemos aprendido a caminhar usando apenas uma perna: conseguimos nos mover, mas de forma manquitola, instável, sempre desequilibrada. A cultura patriarcal nos fez acreditar que a força, a dominação e a hierarquia eram os únicos instrumentos capazes de sustentar a vida em sociedade.
Essa cultura se estrutura em dois eixos principais: a guerra e a exploração. Se não é possível explorar, guerreia-se para conquistar e explorar depois. Ao longo da história, povos foram dominados, riquezas expropriadas, culturas inteiras sufocadas por esse modelo. A espada se tornou metáfora e prática: ela corta, divide, subjuga. Aprendemos a acreditar que sem espada não haveria ordem, progresso, futuro. Daí para o conceito de supremacia do homem, foi fácil. E dessa facilidade para se “legitimar” uma narrativa da “submissão” da mulher foi mais fácil ainda. Com isso “aceitamos” relações tóxicas, comportamentos abusivos. O feminicidio e a violência de gênero estão por todos os lados.
Mas o patriarcado não se limita a campos de batalha ou tratados políticos. Ele se infiltra no cotidiano. Está na maneira como famílias foram organizadas sob o mando do homem, no modo como religiões ergueram deuses masculinos guerreiros, na ideia de que obediência é mais importante que diálogo. Está na crença de que a violência é inevitável e até necessária. Crescemos naturalizando isso, como se fosse a ordem das coisas.
A cultura patriarcal, no fundo, é uma narrativa de poder. É a manipulação da ignorância para manter a dominação. Foi assim quando povos inteiros foram convencidos de que um deus vingativo exigia submissão sob pena de castigo e sacríficos. Foi assim quando se construiu o medo do inferno como ferramenta de controle. É assim ainda hoje, quando líderes se apresentam como salvadores da pátria, sustentando-se na lógica da força e da intimidação.
O preço dessa narrativa é alto. Perdemos a capacidade de nos indignar com o absurdo. Aceitamos fome em meio à abundância, exclusão em meio à tecnologia, guerras em meio a tantas alternativas de diálogo. É como se a cultura patriarcal tivesse anestesiado nossa sensibilidade, tornando normal o que deveria nos escandalizar.
O patriarcado nos ensina a ver diferenças como ameaças e não como riquezas. Ele nos faz acreditar que o outro só pode existir sob minha condição: ou se submete, ou é inimigo. A diversidade, que poderia ser um mosaico vivo de possibilidades humanas, é reduzida a fronteiras rígidas. Quem pensa diferente vira adversário; quem é vulnerável vira descartável.
Ao refletir sobre isso, percebo que a cultura patriarcal é como uma lente que distorce o real. Ao invés de enxergar o mundo como uma teia interdependente, ela o apresenta como um campo de batalha. Ao invés de percebermos a vida como dom compartilhado, passamos a vê-la como território a ser conquistado.
Desmontar essa lente não é fácil, porque crescemos dentro dela. Mas é necessário e urgente. Se quisermos um futuro sustentável, justo e humano, precisamos questionar a herança patriarcal que ainda orienta nossas escolhas. Precisamos reaprender a caminhar com as duas pernas: força e cuidado, razão e afeto, masculino e feminino, convivendo sem hierarquia. Só assim, talvez, possamos reencontrar o equilíbrio perdido e devolver à humanidade a capacidade de florescer em parceria, e não em dominação.
A perda da indignação
Eisler nos convida a observar como, nessa transição, perdemos a capacidade de nos indignar. Como explicar Hiroshima e Nagasaki? Como justificar o Holocausto? Que racionalidade pode sustentar tamanha barbárie? A cultura patriarcal, baseada na dominação, naturaliza absurdos e constrói o discurso de que “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. O intolerável se torna rotina. Aceitamos a exclusão, a fome, a exploração, como se fossem leis da natureza. E quando perdemos a capacidade de dizer “isso é absurdo”, nos tornamos cúmplices do silêncio que legitima a barbárie.
Rastros da cultura matrística
Quando mergulho no conceito de cultura matrística, percebo que não se trata apenas de uma forma de organizar a sociedade, mas de uma forma de sentir o mundo. É como se o coração fosse colocado no centro da vida comunitária, orientando gestos, decisões e vínculos. A cultura matrística nasce do reconhecimento de que a vida é um dom que brota do ventre e que deve ser cuidado como um tesouro coletivo.
Ao contrário da lógica da imposição, a matriz dessa cultura é o acolhimento. Não o acolhimento condescendente, mas aquele que nasce da certeza de que cada ser tem um lugar legítimo no tecido da vida. É como uma árvore: seus galhos se abrem em direções distintas, mas todos encontram alimento na mesma seiva. Nas comunidades matrísticas, a diferença não era ameaça, mas variedade de cores dentro de um mesmo quadro.
O eixo não estava no poder de submeter, mas no poder de nutrir. Nutrir a vida, os vínculos, a diversidade. Nessa perspectiva, não se precisava de intermediários que ditassem o medo; bastava a experiência cotidiana do cuidado para compreender a espiritualidade. A mãe que amamenta, o grupo que partilha a colheita, os anciãos que transmitem sabedoria: tudo isso formava uma rede de significados que fortalecia o sentido de pertencimento.
É claro que nessas sociedades também havia conflitos e disputas. Mas o conflito não era tratado como sentença de destruição, e sim como ocasião para recompor os laços. Penso nisso como um vaso de cerâmica: quando trinca, não é descartado, é reparado com cuidado. A vida coletiva era vista como esse vaso comum, que precisa ser preservado porque todos bebem dele.
A espiritualidade matrística também reflete esse horizonte. Não haviam deuses distantes, imponentes e punitivos, mas representações do sagrado ligadas à terra, à fertilidade, ao ciclo da vida. O sagrado não era usado para amedrontar, mas para celebrar. A morte não aparecia como condenação, e sim como retorno ao todo. A existência era entendida como círculo, não como linha de chegada.
Minha tradução dessa visão para o presente está gesto de abraçar. O abraço não elimina a diferença de altura, peso, idade ou origem, mas integra as diferenças em um espaço de proximidade. A cultura matrística é esse abraço social: nela cabem as tensões, mas sem expulsar; cabem as divergências, mas sem anular.
No nosso tempo, marcado por tantas urgências, recuperar a inspiração matrística é reconhecer que não há futuro possível sem cooperação. Significa redescobrir que a vida floresce mais quando é partilhada, e que o cuidado é força transformadora, não sinal de fraqueza. É admitir que somos todos viajantes de uma mesma travessia e que, sem confiança mútua, não chegaremos a lugar algum.
A cultura matrística, portanto, não é utopia distante. É memória viva e possibilidade concreta. É um convite para reorganizar nossas relações sob o signo do vínculo e não da hierarquia. Minha filha Thirza Reis usa uma metáfora muito sutil para isso. No seu livro BASTA[2], ela diz que a cultura matrística “é como acender uma lamparina em meio à noite: talvez sua luz não afaste toda a escuridão, mas torna possível enxergar uns aos outros e continuar caminhando juntos”.
Vestígios da cultura matrística ainda sobrevivem. Eisler nos mostra exemplos contemporâneos. As Olimpíadas, por exemplo: competimos, disputamos medalhas, mas não transformamos o outro em inimigo. No fim, atletas se abraçam, reconhecendo-se como parte de uma mesma humanidade. É o espírito do jogo, não da guerra. Outro vestígio é a relação de muitas mães com seus filhos: acolhimento sem distinção, cuidado sem cálculo. Esses são ecos de um modo de ser que insiste em permanecer.
Patriarcal x Matrístico: dois modos de organizar a vida
A cultura patriarcal estrutura-se na lógica da dominação. Seu alicerce é a crença de que a força garante ordem e que a hierarquia é necessária para manter a sociedade unida. Guerra e exploração tornam-se instrumentos de progresso, e o outro é visto como ameaça ou recurso a ser controlado. A diversidade é percebida com desconfiança, e a diferença tende a ser anulada ou subjugada. O sagrado assume feições punitivas, legitimando a obediência pelo medo. Nessa lente, a vida é campo de batalha, e a vitória de uns exige a derrota de outros.
Em contraste, a cultura matrística organiza-se pelo cuidado e pela integração. O vínculo é o centro: nutrir, proteger, celebrar e reparar são gestos que mantêm a comunidade viva. O conflito não é sentença de exclusão, mas ocasião para recompor laços. O sagrado é próximo, ligado à fertilidade, à terra, ao ciclo da vida. A diversidade é vista como riqueza, e a morte não é castigo, mas retorno ao todo.
Enquanto o patriarcado corta como espada, o matrístico acolhe como cálice. Um modelo fragmenta, o outro integra. A escolha entre eles revela não apenas estruturas políticas, mas visões de mundo. O que lhes convido a fazer é aprender com ambos e a construir um novo horizonte.
A Cultura da Parceria: o horizonte possível
Creio que não precisamos ficar presos entre os extremos da espada patriarcal e do cálice matrístico. Podemos escolher uma terceira via: a cultura da parceria. Nela, não se trata de eliminar a força ou negar o cuidado, mas de integrá-los em uma nova forma de convivência.
A parceria reconhece que a vida é uma teia de interdependências. Cada pessoa é singular, mas essa singularidade ganha sentido quando colocada em relação com os outros. Diferente do patriarcado, não há hierarquia de dominação; diferente do matrístico, não há idealização da harmonia absoluta. O que existe é a construção cotidiana de equilíbrio, feita de respeito, reciprocidade e dignidade compartilhada.
Essa cultura valoriza a educação não violenta, que desperta talentos em vez de padronizar. Valoriza redes de ajuda, que sustentam a vida coletiva com solidariedade e não com exploração. Valoriza a diversidade como fonte de criatividade, e não como ameaça.
A parceria é, acima de tudo, uma escolha. É decidir que a paz não é ausência de conflito, mas presença de vínculos fortes o suficiente para enfrentar tensões sem romper. É o horizonte que nos convida a trocar a lógica do medo pela lógica do cuidado e, assim, escrever um futuro mais humano.
Mas o que significa viver matrísticamente hoje?
Viver matrísticamente não é voltar à pré-história. É atualizar valores de respeito, parceria, cuidado amoroso, sustentabilidade e inclusão. É reconhecer que diferenças não são ameaça, mas riqueza. É trocar a lógica do “ou eu ou você” pela lógica do “eu com você”.
Para isso, proponho três caminhos práticos:
- Educação não violenta. A escola que massifica é como um moedor de carne: diferentes cortes, alcatra, filé, pernil, entram distintos na máquina e saem todos iguais, transformados em carne moída. Essa homogeneização mata a singularidade. Precisamos de uma educação que reconheça talentos únicos, que cuide das diferenças em vez de esmagá-las. Educar não é padronizar, é cultivar.
- Redes de ajuda. Somos autônomos, mas ninguém é autossuficiente. Eu posso estar aqui escrevendo, mas alguém garante a energia elétrica, alguém colhe os alimentos que comi, alguém pavimenta a rua por onde andei, alguém me ajudou a chegar até aqui. Somos parte de uma grande rede de interdependência. Reconhecer isso desperta gratidão e responsabilidade. É como perceber que cada fio invisível sustenta uma teia: ao cuidar de um, sustento a todos.
- Revisão da racionalidade. A razão que justifica bombas e genocídios não é verdadeira razão, é delírio. Precisamos resgatar os afetos como parte do pensar. Razão sem afeto é cálculo frio; afeto sem razão é impulso cego. Só juntos podem gerar sabedoria. Acolher a emoção como parte legítima da vida é abrir espaço para soluções pacíficas.
A paz como escolha cotidiana
Eisler insiste: a paz não é política de Estado, é escolha pessoal. Gandhi mostrou que a revolução pode ser não violenta. Jesus escolheu a paz mesmo diante da cruz. A paz não é ausência de conflito, mas decisão de não responder com violência. É como um rio que, diante da pedra, não a quebra, mas a contorna. A água não deixa de ser água; segue fluindo até o mar.
Podemos cultivar essa paz em gestos simples: aprender a conversar sem agressão; reconhecer o outro como legítimo em sua diferença; praticar ajuda não monetizada, baseada na necessidade e não no mérito; escolher não se deixar contaminar pela lógica da violência.
A convivência pacífica nasce quando descubro que ninguém pode me agredir sem meu consentimento interior. Posso rejeitar a violência com coração aberto, como quem segura a espada do outro e a transforma em arado.
O desafio do nosso tempo
Vivemos um século de paradoxos. De um lado, temos tecnologia que nos conecta instantaneamente; de outro, seguimos isolados em bolhas de intolerância. Produzimos alimento para todos, mas aceitamos a fome de milhões. Construímos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos desarmar o coração. É como se tivéssemos avançado no poder de multiplicar, mas regredido na sabedoria de compartilhar.
A cultura patriarcal nos ensinou a confundir força com grandeza, dominação com ordem, medo com obediência. O desafio agora é reaprender outra gramática: a da parceria, da ternura, da reciprocidade. Eisler chama isso de “cultura da parceria”.
Eu gosto de pensar como uma música em que cada instrumento é diferente, mas juntos criam harmonia. A diversidade não ameaça, enriquece.
Um fecho reflexivo
Por isso tudo, quero enfatizar o que estou propondo. Quando me aproximo do pensamento de Riane Eisler, encontro a chave que abre novos horizontes para compreender a vida em sociedade e justificar o que creio e defendo: o conceito de parceria. Não de uma parceria como um arranjo estratégico ou como um contrato entre partes que buscam benefícios mútuos. Falo de algo mais profundo, quase ontológico: uma maneira de organizar a vida que se opõe radicalmente ao modelo de dominação.
Por milhares de anos, fomos ensinados a acreditar na violência, na hierarquia e no controle como inevitáveis. Herdamos a lógica da espada: quem pode mais, manda; quem não pode (ou tem juízo), obedece. Essa visão estruturou nossas instituições, nossas economias e até nossas famílias. Mas quero crer que existe outro caminho: o caminho da cultura matrística, do cálice, que simboliza a nutrição, o cuidado e a partilha. Nesse contexto o conceito de parceria nasce exatamente na contra cultura, nos mostrando que não precisamos escolher entre ser dominadores ou dominados, podemos escolher ser parceiros.
Parceria, para mim, significa reconhecer que a vida é uma rede interdependente. É entender que a minha dignidade está ligada à dignidade do outro, que o meu florescimento só se cumpre quando o outro também floresce. É como uma orquestra: cada instrumento é diferente, com seu timbre e sua potência, mas só juntos produzem harmonia. Quando um tenta se impor sobre os demais, o resultado é ruído. A parceria é a música que só existe quando há escuta, reciprocidade e cuidado.
Ao longo da história, as culturas matrísticas viveram sob esse paradigma da parceria. Não eram sociedades perfeitas, mas estruturavam-se em torno de valores de respeito, inclusão e acolhimento. Não se tratava de negar conflitos, mas de resolvê-los sem violência como princípio. Essa herança nos lembra que o modelo da dominação não é natural nem inevitável: é apenas uma escolha histórica.
Trazer o conceito de parceria para os dias de hoje é um desafio urgente. Em um mundo que ainda insiste em medir valor pelo poder de dominar, falar de parceria soa quase revolucionário. É dizer que a verdadeira grandeza não está em impor, mas em compartilhar; não em vencer, mas em conviver. É afirmar que paz não é ausência de conflito, mas a ausência de confronto e na escolha consciente de viver sem violência.
Na prática, parceria se traduz em pequenas e grandes ações: educar de forma não violenta, construir redes de ajuda, respeitar as diferenças, aprender a conversar sem agredir. É decidir, todos os dias, que a vida vale mais quando é partilhada. É optar pelo cálice em vez da espada.
No fundo, parceria é um ato de fé: fé de que a humanidade pode aprender a se reconhecer não como inimigos em guerra, mas como companheiros de jornada. E é também um ato de coragem: coragem de desarmar a mão e abrir o coração. A realidade atual de nossa história é um alerta mais que urgente para que comecemos essa travessia. Eu aceito o convite, porque acredito que o futuro só será possível se for um futuro de parceria.
O cálice e a espada continuam diante de nós. Podemos escolher qual símbolo guiará nossas relações. A espada é rápida, cortante, sedutora. O cálice exige paciência, cuidado, tempo. A espada promete vitória, mas deixa rastros de sangue. O cálice não promete domínio, mas oferece comunhão. Entre cortar e nutrir, entre dividir e integrar, está a encruzilhada da humanidade.
A história nos mostrou o poder destrutivo da espada. Talvez seja hora de experimentar a sabedoria do cálice. Se o mundo for uma mesa, a espada a corta em pedaços; o cálice a reúne em torno do vinho partilhado. Se o mundo for um corpo, a espada o fere; o cálice o cura. Se o mundo for uma canção, a espada silencia; o cálice canta.
Escolher o cálice é escolher a vida. É olhar para o outro não como ameaça, mas como parte da mesma travessia. É aceitar que não somos donos do futuro, mas guardiões da possibilidade de futuro. É abrir espaço para que a próxima geração encontre não ruínas, mas sementes.
Ao trocar a lâmina pelo gesto, o medo pelo cuidado, a dominação pela parceria. Que sejamos capazes de transformar a violência em memória e a paz em prática. Que o cálice volte a ocupar nossas mãos, não como nostalgia de um passado perdido, mas como profecia de um futuro ainda possível.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025
[1] Riane Tennenhaus Eisler (Viena 1931/xx) sobrevivente do nazismo, é uma acadêmica austríaca, historiadora cultural, escritora e ativista social.
É presidente do centro para “Estudos sobre Parceria”, na Califórnia/USA.
[2] REIS, Thirza; BASTA; Ed. Literare Books, SP/SP, 2025 – thirzar@gmail.com

Sempre que penso sobre a força dos relacionamentos humanos, volto ao poder de uma atitude aparentemente simples, mas profundamente transformadora: a escuta ativa. Escutar o outro é mais do que captar palavras; é entrar em sintonia com sua experiência, acolher suas emoções, perceber seus silêncios. É um gesto que, na superfície, pode parecer óbvio, mas que, em sua profundidade, revela-se como um dos pilares da convivência ética, da inteligência relacional e da gestão de vínculos duradouros.
Falo na primeira pessoa porque esse tema não é teórico, é visceral. Tenho experimentado, em minha vida e em minha prática profissional, os efeitos da escuta ativa como ferramenta de transformação individual e coletiva. Sinto que, quando escuto ativamente, eu não apenas compreendo o outro; eu me deixo tocar por ele. Isso me lembra Martin Buber, filósofo do diálogo, que dizia que o encontro autêntico se dá quando nos dispomos ao “Eu-Tu”, e não ao “Eu-Isso”. Na escuta ativa, coloco o outro no centro da relação, não como objeto de análise, mas como sujeito de dignidade.
A psicologia humanista, especialmente na obra de Carl Rogers, nos lembra que a escuta ativa é condição essencial para que o outro possa florescer. Rogers falava da “consideração positiva incondicional” como abertura para que o outro se revele sem medo de julgamento. Eu me identifico profundamente com isso. Quando escuto ativamente, sinto que ofereço ao outro uma espécie de solo fértil, onde sua palavra pode brotar sem ser arrancada ou sufocada. Por outro lado, quando percebo que alguém é capaz de escutar o outro, as distâncias se encurtam, o diálogo floresce, as soluções são encontradas, os acordos são feitos e os resultados desejados aparecem com mais vigor e perenidade.
Escutar não é apenas de uma técnica de comunicação. A escuta ativa é, para mim, uma postura existencial. É decidir estar presente no aqui e agora, com atenção plena, com empatia e respeito. É a antítese do automatismo que marca tantas conversas cotidianas, onde falamos mais para responder do que para compreender.
O filósofo Hans-Georg Gadamer, em sua hermenêutica, dizia que compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. Essa fusão só acontece se eu estiver disposto a sair de meu próprio horizonte para me abrir ao do outro. A escuta ativa é justamente esse movimento de deslocamento: eu amplio meus limites para que o horizonte do outro encontre espaço em mim.
Muitas vezes, penso que escutar ativamente é como abrir as janelas de uma casa que há muito tempo está fechada. O ar novo entra, a luz se espalha, e eu descubro que havia cantos esquecidos. Assim também é na relação: a escuta areja, renova, expande.
Mas, por que temos tanta dificuldade em escutar o outro ou os outros? Escutar os outros deveria ser um gesto natural, mas na prática é um dos atos mais difíceis que realizamos. Muitas vezes carregamos conosco a ilusão de que estamos escutando, quando na verdade apenas esperamos a pausa alheia para introduzir a nossa própria fala. Esse comportamento nasce de diferentes causas. Uma delas é o ego inflado, que não aceita ser deslocado do centro da cena. O desejo de protagonismo nos leva a disputar espaço em cada conversa, como se o diálogo fosse uma arena em que importa mais vencer do que compreender.
Há também a influência da ansiedade e da pressa que marcam nossa época. Vivemos em um ritmo que não tolera o silêncio e que exige respostas rápidas. Escutar, no entanto, exige tempo, paciência e disposição para permanecer diante da palavra do outro sem antecipar conclusões. Muitas vezes a pressa nos leva a interromper frases, a completar pensamentos alheios, a reduzir a complexidade do que está sendo dito apenas para que possamos voltar a falar.
Outro fator relevante é a ausência de uma cultura de escuta. Desde a infância somos ensinados a falar, argumentar, defender ideias, apresentar trabalhos. A oratória é valorizada, mas a escuta raramente é cultivada como habilidade essencial. Crescemos em ambientes em que escutar não é sinal de maturidade, mas de passividade, como se o silêncio fosse sinônimo de submissão. Assim, não aprendemos a sustentar com dignidade o lugar de receptores da palavra alheia.
Há ainda o medo de se deixar afetar. Escutar verdadeiramente é perigoso, porque nos coloca diante da dor, da diferença e da vulnerabilidade do outro. Quem escuta com profundidade pode ser transformado, pode ter de rever certezas, pode perceber fissuras em suas próprias convicções. Muitos evitam a escuta justamente para não enfrentar esse espelho. É mais seguro manter-se na bolha das próprias opiniões do que permitir que a alteridade nos desestabilize.
Além disso, cada um carrega consigo uma multidão de ruídos internos. Preocupações, preconceitos, julgamentos e ansiedades funcionam como filtros que distorcem ou abafam o que o outro diz. Mesmo presentes fisicamente em uma conversa, às vezes estamos ausentes por dentro, mergulhados em nossas vozes internas. Essa sobreposição de pensamentos nos impede de receber plenamente a mensagem alheia.
O contexto também interfere. Em ambientes hierárquicos ou tóxicos, escutar é visto como fraqueza. Quem detém poder sente que precisa falar para manter sua autoridade, enquanto quem ocupa posições subordinadas acredita que não será escutado de qualquer forma. A estrutura da organização inibe a prática da escuta e reforça a lógica do monólogo.
As consequências dessa dificuldade são muitas e profundas. A primeira delas é o empobrecimento das relações. Sem escuta, os vínculos se tornam superficiais, reduzidos a trocas utilitárias. Pessoas convivem lado a lado, mas não se encontram de verdade. Cada uma vive em seu universo particular, sem ponte com o mundo interno do outro.
Outra consequência frequente é o aumento dos conflitos. Muitas divergências não nascem de grandes diferenças, mas de pequenos mal-entendidos que poderiam ser evitados se houvesse uma escuta atenta. Quando não escutamos, interpretamos mal, alimentamos suposições e reforçamos ressentimentos. O diálogo se rompe e o que poderia ser uma diferença criativa se converte em disputa hostil.
A falta de escuta também gera isolamento emocional. Aquele que nunca é escutado tende a se retrair, a acreditar que sua voz não importa, que sua existência não é reconhecida. Esse silêncio imposto pelo desinteresse do outro é uma das formas mais cruéis de solidão. Ser ignorado mina a autoestima e enfraquece a confiança básica de que valemos a pena.
Nas organizações, a ausência de escuta corrói a confiança. Uma liderança que não escuta sua equipe perde credibilidade. As pessoas deixam de se engajar, escondem problemas, evitam trazer ideias. Em contextos mais amplos, como no espaço social ou político, instituições que não escutam seus públicos tornam-se irrelevantes, incapazes de dialogar com as transformações do tempo.
Também há um impacto direto na capacidade de inovar. Quando não escutamos clientes, colaboradores, familiares ou parceiros, deixamos escapar sinais importantes do ambiente. Ficamos presos em nossas próprias narrativas, repetindo padrões, sem perceber oportunidades de mudança. A escuta ativa, ao contrário, é fonte de adaptação e de criação, porque revela perspectivas que sozinhos jamais alcançaríamos.
Talvez a consequência mais profunda, no entanto, seja o empobrecimento humano. Quem não escuta fecha-se em suas certezas, priva-se da riqueza do outro, perde a oportunidade de aprender e de crescer. A escuta é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que acolhe, também ensina. Negar-se a escutar é recusar-se à transformação que todo encontro humano traz.
No fundo, a dificuldade em escutar revela o medo de deixar o outro existir em nós. É como se houvesse receio de que a palavra alheia ocupe espaço demais, ou que sua dor se infiltre em nossas frestas. Mas quando não escutamos, pagamos caro: relações frágeis, conflitos recorrentes, isolamento, falta de confiança e estagnação. Aprender a escutar, portanto, não é apenas um gesto de bondade, mas um imperativo de sobrevivência relacional. É nesse exercício que se decide a qualidade das nossas conexões e, em última instância, a qualidade da nossa própria humanidade.
Quando penso em gestão de relacionamentos, seja no âmbito pessoal, profissional ou institucional, vejo que a escuta ativa é um divisor de águas. Empresas, famílias, comunidades, todas são atravessadas pela qualidade de suas conversas. E é pela escuta que construímos confiança.
Confiança não nasce de palavras bonitas, mas da experiência reiterada de ser escutado e respeitado. Quando uma equipe percebe que sua liderança escuta genuinamente, abre-se um campo de reciprocidade. As pessoas sentem-se autorizadas a trazer suas inquietações, suas ideias, suas vulnerabilidades. E é nesse espaço que surge a inovação, a coesão e a corresponsabilidade.
Lembro-me de Anthony Giddens, sociólogo, que fala da reflexividade da vida moderna: vivemos em um mundo onde precisamos constantemente justificar nossas ações e decisões diante dos outros. Nesse contexto, a escuta ativa não é luxo, mas necessidade. Só por meio dela conseguimos sustentar relações transparentes e evitar que a comunicação se torne apenas formalidade vazia.
Na prática da Inteligência Relacional, percebo que escutar é um dos modos mais potentes de cuidar. Escutar não é passividade, é ato ativo de sustentação do vínculo. Quando escuto, assumo responsabilidade compartilhada: reconheço que o outro existe, que tem voz, que sua narrativa é tão legítima quanto a minha. Isso cria um pacto silencioso de dignidade.
A psicologia contemporânea reforça o impacto da escuta ativa no bem-estar emocional. Estudos da psicologia positiva apontam que ser escutado é uma das experiências mais gratificantes que alguém pode ter. O simples ato de narrar uma dificuldade, e perceber que o outro realmente escutou, já diminui a carga de estresse, amplia a resiliência e fortalece a autoestima.
Também na terapia cognitivo-comportamental, percebe-se que a qualidade da escuta do terapeuta é decisiva para que o paciente consiga reestruturar suas crenças. Sem escuta, não há espaço para a reorganização da narrativa pessoal. E mesmo em contextos de mediação de conflitos, a escuta ativa se revela essencial: é quando as partes se sentem ouvidas que se abre a possibilidade de diálogo e resolução.
Na minha vivência, como conselheiro corporativo, mentor e psicanalista, noto como muitas vezes as pessoas não pedem soluções, mas apenas espaço para serem escutadas. A escuta, nesses casos, já é terapêutica. É como se o simples fato de alguém sustentar meu discurso com atenção amorosa já fosse suficiente para que eu me reorganize por dentro.
Penso, por exemplo, em reuniões de trabalho onde alguém propõe algum tema difícil, ou abre uma conversa delicada, traz um tema controverso ou aponta uma dificuldade. Muitas vezes, ele não busca um manual pronto de respostas. Busca reconhecimento. Busca sentir-se visto. Quando escuto sem interromper, sem apressar, percebo que sua própria fala já contém as sementes da solução.
Do ponto de vista filosófico, escutar ativamente é um exercício ético. Emmanuel Lévinas fala da alteridade (qualidade do que é diferente e a capacidade de se colocar no lugar do outro), como fundamento da ética: é o rosto do outro que me convoca à responsabilidade. Escutar é atender a esse chamado. É reconhecer que minha liberdade encontra limite no direito do outro de existir plenamente.
Essa dimensão ética da escuta ativa é crucial na gestão de relacionamentos. Pois gerir não é manipular, é cuidar. Não é impor, é dialogar. Não é apenas conduzir pessoas para metas, mas criar ambientes em que a dignidade seja preservada. E a dignidade começa pelo reconhecimento da voz.
Quando escuto, ergo uma ponte entre o eu e o outro. Uma ponte que não apaga diferenças, mas que as torna fecundas. Escutar é aceitar que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. É por isso que digo: a escuta ativa é uma política da convivência inteligente.
Na sociologia, autores como Jürgen Habermas destacam a centralidade da comunicação para a vida democrática. Habermas fala da “ação comunicativa” como horizonte de uma sociedade baseada na razão dialógica. A escuta ativa é a expressão prática desse ideal: sem escuta, não há deliberação democrática, não há comunidade viva, não há coesão social.
Se ampliarmos isso para sistemas complexos (famílias etc.), e organizações corporativas e sociais, percebemos que onde não há escuta de membros, sócios, colaboradores ou clientes, as relações tornam-se frágeis, autorreferenciais, incapazes de se adaptar. Se não há escuta entre os líderes e diretores, a situação fica mais complexa ainda; torna-se “cabo de guerra”, onde os interesses individuais sobrepõem-se às demandas ou necessidades coletivas. Já aquelas que cultivam uma escuta permanente constroem resiliência, porque captam sinais, ajustam rumos e mantêm vínculos de confiança.
Eu vejo que, em tempos de excesso de informação, a escuta ativa se torna estrategicamente necessária. Recebemos e construímos mensagens e estímulos intensos e constantemente, mas nem sempre nos sentimos escutados. Escutar, nesse cenário, é contracultural: é resistir à lógica da pressa, da resposta imediata, da superficialidade.
Na minha trajetória, percebo que a escuta ativa é também um exercício de autoconhecimento. Para escutar o outro, preciso primeiro calar minhas próprias vozes internas. Preciso aquietar meu julgamento, minha ansiedade de resposta, minha ânsia de controle. Escutar é aprender a esperar.
Essa espera, por vezes desconfortável, é também fecunda. Ela me ensina a paciência, a humildade e a coragem de não ter todas as respostas. Aprendo que escutar é um ato de fé: acreditar que o outro tem algo a dizer que pode me enriquecer, mesmo quando não concordo.
Além disso, a escuta ativa me conecta ao sentido da reciprocidade. Quando sou escutado, sinto-me valorizado; e quando escuto, valorizo o outro. É nesse movimento de troca que se edifica a confiança.
Na gestão de equipes ou de grupos, a escuta ativa se traduz em liderança mais humana e eficaz. Líderes que escutam conseguem captar as nuances do ambiente, identificar conflitos latentes, reconhecer talentos ocultos. Mais ainda: líderes que escutam tornam-se referenciais de confiança.
Eu mesmo, em experiências profissionais, já vi equipes e grupos se desestruturarem por ausência de escuta. Palavras ditas em vão, reuniões em que ninguém se sentia escutado, decisões tomadas unilateralmente. O resultado era desmotivação, distanciamento, perda de energia, além de brigas e discussões sem sentido.
Por outro lado, já presenciei transformações impressionantes quando a escuta foi cultivada. Ambientes tensos se tornaram mais leves, rivalidades foram administradas, histórias entendidas, pessoas antes retraídas passaram a contribuir, soluções criativas emergiram do simples fato de alguém ter se sentido escutado.
É curioso notar como a escuta ativa também é motor de inovação. Muitas vezes, pensamos que inovar é apenas criar algo inédito. Mas, na prática, inovar é perceber de modo novo aquilo que já existe. E isso só é possível se escutamos com atenção.
Escutar clientes, escutar diferentes, por exemplo, é fonte inesgotável de insights. Escutar colaboradores revela potenciais ainda não explorados. Escutar parceiros abre portas para colaborações inéditas.
Na era digital, em que tanto se fala de big data e inteligência artificial, acredito que a escuta humana, genuína, continua sendo insubstituível. Pois não há algoritmo que capture o silêncio carregado de sentido, ou o tremor da voz que revela vulnerabilidade.
Desafios da escuta ativa:
Não romantizo a escuta ativa. Sei que ela exige disciplina, presença e, muitas vezes, coragem. Escutar pode ser doloroso, porque o que o outro diz nem sempre é o que eu gostaria de escutar. Pode ser frustrante, porque demanda tempo em um mundo acelerado. Pode ser desafiador, porque me confronta com minhas próprias limitações.
Mas é justamente nesses desafios que reside sua potência. Ao escutar, coloco-me em posição de vulnerabilidade: reconheço que não controlo tudo, que dependo do outro para compreender melhor a realidade. Esse reconhecimento é libertador.
Gosto de pensar a escuta ativa como uma arte. Uma arte relacional, que mistura técnica, sensibilidade e ética. Uma arte que se aprende praticando, errando, recomeçando. Uma arte que nunca se esgota, porque cada encontro é único.
Na prática, escutar ativamente é como afinar um instrumento musical. Preciso ajustar minhas cordas internas (atenção, paciência, empatia), para que a melodia do encontro soe harmônica. E, quando isso acontece, sinto que o relacionamento ganha nova densidade.
Lembro-me de uma situação concreta em que um gestor empresarial enfrentava altos índices de rotatividade em sua equipe. Havia tentado aumentar salários, criar bônus, melhorar a infraestrutura. Nada parecia resolver. Quando nos sentamos para refletir, percebemos que o problema era simples, mas profundo: os colaboradores não se sentiam escutados.
Iniciamos então um processo de encontros de escuta ativa. Em vez de reuniões apenas para repassar tarefas, criamos espaços para que cada voz fosse ouvida. Aos poucos, o clima organizacional mudou. O índice de rotatividade caiu, e os próprios funcionários relataram sentir-se mais motivados.
Outro caso, em contexto comunitário, envolveu um grupo em conflito por diferenças religiosas. A tensão era tão grande que já não havia diálogo. Foi pela escuta ativa, mediada com paciência, que surgiram narrativas comuns: todos, no fundo, desejavam segurança para seus filhos, dignidade em suas vidas e respeito às suas crenças. Essa descoberta partilhada foi possível apenas porque alguém decidiu escutar. Esses exemplos me confirmam: a escuta ativa não é retórica. É prática concreta de transformação.
Vivemos hoje em um ambiente em que a comunicação é acelerada por plataformas digitais. Mas, paradoxalmente, a escuta verdadeira parece cada vez mais rara. Nos aplicativos de mensagem, respondemos sem ler com atenção; nas redes sociais, interagimos apenas com fragmentos.
Acredito que a escuta ativa precisa se reinventar nesse cenário. Precisa incluir pausas, feedbacks mais conscientes, tempos de silêncio mesmo em ambientes virtuais. Quando escrevo uma mensagem e recebo uma resposta que mostra que o outro realmente entendeu, sinto o mesmo alívio que numa conversa presencial.
Na gestão de relacionamentos digitais, a escuta ativa é antídoto contra a superficialidade. É ela que distingue um atendimento robótico de uma relação humanizada.
Para resumir tudo o que disse, eu afirmo: a escuta ativa é um caminho de humanização. É ela que dá corpo ao amor como força criadora, que sustenta o dever como pacto de reciprocidade, que transforma o medo em guardião da vida, que orienta a ira para a defesa da dignidade.
Na gestão de relacionamentos, a escuta ativa é o que impede a fragmentação e favorece a integração. É o que transforma grupos em comunidades, equipes em coletivos criativos, organizações em organismos vivos.
Escutar, no fim das contas, é uma escolha. Uma escolha por estar presente, por reconhecer o outro, por apostar no diálogo. É um ato de fé na palavra e no silêncio, na vulnerabilidade e na força, na singularidade e na interdependência.
Assim, sigo aprendendo a escutar. E cada vez que escuto, renovo minha convicção de que não há inteligência mais poderosa do que a relacional. Pois é ela que nos lembra, sempre, que ninguém se humaniza sozinho.
Pense e reflita sobre isso.
HomeroReis.
Curitiba, PR, setembro/25

Reflexões sobre Coerência, Relações e Sentido©[1]
Quando utilizo a expressão “esquizofrenia organizacional”, não me refiro a um diagnóstico clínico, mas a uma metáfora poderosa para descrever o desencontro entre o que se proclama e o que se pratica. É um hiato que separa valores anunciados de condutas efetivas; um descompasso que se manifesta tanto em instituições quanto em pessoas. No fundo, é a incoerência como modo de existência: uma vida em que se defende a ética no discurso e se pratica a transgressão nos bastidores, em que se fala de cuidado mas se age com descaso, em que se promete inclusão mas se reproduz exclusão. Essa incoerência, embora muitas vezes silenciosa e imperceptível no início, vai corroendo os alicerces da confiança, minando a credibilidade e desestruturando os vínculos que sustentam toda forma de convivência. Como se isso não bastasse, a esquizofrenia organizacional bloqueia as ações de longo prazo, minando o propósito das instituições. Isso porque constrói uma agenda oculta. Coisas são ditas “nos bastidores” e não sustentadas na vida pública; onde “sinceridade” é confundida com agressividade, questões pessoais disfarçados de “compromissos”, solidariedade encobrindo conflitos de interesse.
A esquizofrenia, em seu conceito técnico, é um transtorno mental, marcado por uma profunda dissociação entre percepção, pensamento, emoção e comportamento. Quem vive com essa condição experimenta uma ruptura na integração da realidade: acredita em coisas que não existem, ideias que não encontram base no mundo objetivo, sente afetos que não se ajustam às circunstâncias. Suas consequências traduzem um empobrecimento da vida emocional e social. A esquizofrenia é antes de tudo uma fragmentação da percepção, da razão, da afetividade e da conduta.
Quando transporto essa conceituação para o universo das organizações, encontro um paralelo inquietante. Vejo instituições que, como sujeitos em sofrimento psíquico, vivem uma cisão interna entre o que percebem, dizem, o que sentem e o que fazem. O discurso institucional, como um delírio socialmente aceito, anuncia valores elevados: ética, sustentabilidade, inclusão, bem-estar. Mas a prática cotidiana revela outra realidade, muitas vezes contraditória: ciúmes, invejas, comportamento “bate-assopra”, exploração de pessoas, descaso ambiental, exclusão velada, sobrecarga de trabalho. É como se a organização tivesse suas próprias alucinações, vendo-se como algo que não é, projetando uma imagem que não se sustenta na experiência real de quem a habita.
Nesse sentido, a esquizofrenia organizacional não é apenas incoerência. É uma ruptura do vínculo entre palavra e gesto, entre intenção e ação, entre identidade proclamada e vida concreta. Tal como no indivíduo em sofrimento, a organização perde a unidade de seu “eu” coletivo.
Costumo dizer que essa esquizofrenia é como uma rachadura em uma grande parede. No começo, quase invisível, não incomoda. Mas, com o tempo, se amplia, e toda a estrutura começa a se fragilizar. Uma organização pode continuar erguida por algum tempo, sustentada por aparências, slogans ou marketing, mas inevitavelmente essa rachadura se tornará visível e colocará tudo em risco. O problema não é apenas institucional; ele se infiltra nas relações entre as pessoas que compõem a organização. Cada líder ou colaborador, cada cliente, cada fornecedor sente, mesmo que inconscientemente, o peso da incoerência.
Tenho acompanhado organizações que falam de resultados e futuros com entusiasmo em seus relatórios anuais, mas cujas práticas diárias revelam desperdício, poluição e desordem na gestão. Outras que proclamam a diversidade como bandeira, mas mantêm em seus conselhos e diretorias apenas perfis homogêneos, fechados à diferença. Propósitos louváveis e práticas corrosivas. Vejo empresas que se dizem defensoras da ética, mas convivem naturalmente com pequenas corrupções cotidianas, justificadas em nome da sobrevivência do negócio. Também encontro instituições que defendem publicamente o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas que esperam que seus colaboradores se sacrifiquem em jornadas intermináveis, respondendo e-mails de madrugada ou abrindo mão de finais de semana.
O curioso é que muitas vezes essa incoerência não nasce da má-fé, mas de um conjunto de concessões aparentemente inocentes. Surge quando se diz: “vamos abrir uma exceção só desta vez”, “todos fazem assim, não podemos ficar para trás”, “precisamos bater a meta a qualquer custo”. Essa repetição de pequenas justificativas acaba criando uma cultura em que o discurso e a prática se divorciam. O resultado é uma vida organizacional esquizofrênica: proclama-se um valor para fora, pratica-se outro para dentro. Mas o pior da esquizofrenia organizacional é a dificuldade das pessoas de conversarem amigavelmente sobre as “coisas que discorrem”. Tudo acaba sendo um grande “ringue” de exercício do poder, tentativa de manipulação, ameaças veladas.
As consequências são devastadoras. A confiança se desfaz, e sem confiança não há vínculo que sobreviva. A motivação se dilui, porque ninguém se sente mobilizado por discursos vazios. Os conflitos internos aumentam, porque os valores deixam de ser referência compartilhada e passam a ser apenas retórica. A reputação, que leva anos para ser construída, pode ser destruída rapidamente quando incoerências vêm à tona. Mas talvez a consequência mais dolorosa seja a perda de sentido: quando uma pessoa ou organização deixa de alinhar discurso e prática, perde também a razão pela qual existe, porque os valores deixam de ser bússola e se tornam apenas enfeite.
A origem dessa esquizofrenia é multifacetada. Na maior parte das vezes ela nasce da liderança. Um líder incoerente, que não encarna os valores que proclama, cria descrédito em cascata. Mas também pode nascer de falhas de comunicação, quando mensagens se perdem e a prática vai em direção oposta ao discurso. Outras vezes é fruto do excesso de foco em resultados, em que o número vale mais que a dignidade. Há também a cultura da aparência, que prioriza a imagem externa e descuida da prática interna, criando um teatro de valores que nunca se tornam realidade. Em muitos contextos, a causa é ainda mais sutil: o medo do conflito. As pessoas percebem incoerências, mas calam-se, receosas de desagradar ou de colocar em risco sua posição. O silêncio, nesse caso, se torna cúmplice da fragmentação. Mas também há o caso dos “ultra comprometidos”; ou seja, pessoas que se julgam detentores das “verdades do negócio” e, em nome disso, perdem a elegância e o trato cortes com os demais.
Superar a esquizofrenia organizacional exige coragem e humildade. Coragem para enfrentar-se a si mesmo em um processo de autoconhecimento, como também para enfrentar dilemas éticos e para recusar atalhos convenientes que traem os valores fundamentais. Humildade para admitir erros, assumir vulnerabilidades e abrir espaço para conversas sinceras. A coerência não se constrói com discursos apenas, mas com gestos cotidianos, às vezes simples, mas sempre consistentes. Um pedido de desculpas sincero pode reconstruir mais confiança do que uma campanha de marketing milionária. Uma decisão difícil, tomada em nome de um valor ético, pode inspirar mais lealdade do que qualquer incentivo financeiro. A competência de atuar em grupo, buscando o consenso, vale mais do que a arbitrariedade de uma ação isolada, ainda que legítima. Entendendo que às vezes “posso fazer, mas não devo”. Esse discernimento nos conduz à saúde organizacional.
Nesse ponto, percebo como a Inteligência Relacional se apresenta como um verdadeiro antídoto contra a esquizofrenia. Ela nos lembra que o valor de nossas ações não está apenas no que pretendemos, mas no que o outro percebe, sente e experimenta em contato conosco. Não refere a como atuo na minha “boa vontade”, mas como o outro percebe isso e como o “meu modo de ser” impacta os outros. Somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo efeito que causamos. Isso significa que não basta ter boas intenções: é preciso alinhar o discurso às práticas de forma que o outro possa experimentar a coerência em cada gesto.
A coerência, nesse sentido, é mais que uma virtude: é a garantia de segurança relacional. Quando ajo em consonância com aquilo que proclamo, ofereço ao outro um espaço previsível e confiável. A confiança nasce dessa previsibilidade. A incoerência, ao contrário, gera incerteza, porque nunca se sabe qual versão da organização “está funcionando”: a do discurso ou a da prática. E a incerteza é corrosiva para qualquer vínculo.
A vida me mostrou que a coerência não significa perfeição. Significa autenticidade. Implica mostrar-se vulnerável, assumir limites, pedir desculpas quando necessário e entender que é na qualidade das relações que construímos o futuro. É justamente na vulnerabilidade que a humanidade se manifesta, e isso não fragiliza os vínculos; pelo contrário, fortalece-os. Quando um líder reconhece que errou e se dispõe a corrigir o rumo, inspira mais confiança do que quando julga estar sempre certo.
As aplicações práticas dessa reflexão são inúmeras. No campo da convivência humana corporativa, coerência significa transformar o discurso de cuidado em políticas concretas de bem-estar. No marketing, significa que as promessas feitas devem corresponder à experiência entregue, sob pena de transformar as relações em engodos. Na governança, significa alinhar relatórios de desempenho e sustentabilidade às práticas diárias, evitando o risco da “maquiagem verde”. De fato, refere-se à prática de uma empresa ou instituição que divulga(interna ou externamente) uma imagem de sustentabilidade, responsabilidade e coerência que não correspondem às suas ações reais (internas ou externas). Ou seja, usa-se um discurso ou marketing apenas para melhorar a reputação, sem mudanças consistentes na suas ações cotidianas. Na educação corporativa, significa ensinar que ética e coerência não são acessórios, mas fundamentos. Até mesmo nas relações familiares, coerência significa viver aquilo que se ensina, para que os filhos aprendam mais com o exemplo do que com as palavras. Para a liderança, significa também ser exemplo de fato.
Percebo que a coerência é um processo “terapêutico” contínuo contra a esquizofrenia organizacional, e nunca um estado acabado. Ela nasce do autocuidado, porque não posso ser coerente se vivo em contradição comigo mesmo. Ela se alimenta da escuta ativa, porque é ouvindo o outro que percebo minhas incoerências. Ela cresce na responsabilidade compartilhada, porque a cultura de uma organização não é obra apenas da liderança, mas de todos. E ela se consolida na coragem ética, quando assumimos a decisão de permanecer fiéis aos nossos valores, mesmo quando isso custa caro.
Gosto de pensar na esquizofrenia organizacional como um espelho incômodo. Ela nos mostra nossas contradições, expõe nossas feridas, mas também nos convida à transformação. Onde há incoerência, há possibilidade de aprendizado. Onde há fragmentação, pode nascer reconciliação. Cada contradição é um chamado à coerência, cada falha é um convite à responsabilidade. O risco é real, mas a oportunidade também é.
No fim, acredito que a coerência é o maior patrimônio que uma pessoa ou organização pode possuir. Não se conquista de uma vez por todas, mas se cultiva em pequenas escolhas diárias. É ela que sustenta reputações, que fortalece vínculos e que dá sentido ao trabalho. Quando penso no legado que desejo deixar, não me interessa ser lembrado pelas palavras bonitas que escrevi ou pronunciei, mas pela coerência entre o que disse e o que pratiquei. Porque, no fundo, é isso que permanece: a confiança que inspirei, os vínculos que construí, o sentido que ajudei a semear.
E se a esquizofrenia organizacional é um risco constante, ela também é um chamado à vigilância permanente. Cada gesto incoerente é um lembrete de que precisamos ajustar o rumo. Cada contradição percebida é uma oportunidade de recomeço. Ser coerente é um exercício de humanidade, uma escolha diária de alinhar discurso e prática, palavra e gesto, valor e conduta. É nesse alinhamento que se constrói a verdadeira grandeza das pessoas e das instituições.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília,outubro/2025

Da Violência à Paz
by Homero Reis©
O Cálice e a Espada (Riane Eisler)[1], é um livro essencial. A partir de uma pesquisa longitudinal de dez anos, o que ela nos oferece não é apenas uma interpretação da história humana, mas uma proposta para o porvir. Lê-lo fez-me sentir como se tivesse em mãos, duas chaves simbólicas. Uma abre a porta da violência que atravessa nossa história; a outra abre a possibilidade de um futuro tecido pela paz.
Ela nos desafia a reconhecer que a forma como estruturamos a vida em sociedade não é a única possível. Somos filhos de escolhas, e podemos escolher de novo. De fato, como gosto de dizer, “o futuro não existe como tal. Somos frutos de nossas escolhas”.
A pergunta desafiadora que me atravessa ao ler Eisler é simples e poderosa: existiram sociedades pacíficas em nossa história? Se a resposta for “sim”, então a violência que naturalizamos como destino é evitável. Ela é apenas uma narrativa dominante. E se houve outras narrativas de parceria, cuidado e respeito, então nós podemos, hoje, recontar a nossa história e reescrevê-la no presente a partir de outras perspectivas.
O que lhes quero trazer nesse texto é minha visão e algumas reflexões sobre o trabalho de Eisler.
A metáfora central é luminosa. O cálice simboliza culturas matrísticas, voltadas ao acolhimento, à nutrição, à vida que se renovam no ventre e no vínculo. É um recipiente sagrado que guarda e compartilha; é a taça que une, não a lâmina que separa. Em contrapartida, a espada representa as culturas patriarcais, fundadas na violência, na guerra e na exploração. A espada corta, fere, divide. É o símbolo da dominação que sustenta a crença de que só pela força se constrói um mundo melhor.
Durante trinta mil anos, as sociedades patriarcais nos ensinaram que a guerra e a exploração eram os motores do progresso. Esse conceito nasce do discurso de que a violência pode ser legitimada em macro ou micro escala. É a ideia do mais forte contra o mais fraco, do “olho por olho e do dente por dente”. A lógica é simples e brutal: se não posso explorar, eu guerreio para conquistar. E assim consolidamos a ideia de que dominar é a única forma legítima de nos relacionarmos. Mas Eisler nos lembra: isso não é destino, é escolha. E escolhas podem ser revistas.
O nascimento das perguntas humanas
Se voltarmos à pré-história, percebemos que a narrativa hostórico-social nasce de três perguntas fundantes: De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos?
Essas questões ecoam desde as pinturas rupestres até as filosofias contemporâneas. Não temos respostas definitivas. O que temos são narrativas, crenças, mitos. E esses mitos moldam a forma como nos relacionamos.
O fato incontornável que as primeiras sociedades puderam observar era simples: todos nós viemos da mulher. O vínculo entre ato sexual e gravidez era invisível ao olhar imediato. O tempo entre o coito e os sinais da gestação era longo demais para ser percebido. Por isso, os povos primitivos só podiam concluir uma coisa: a vida nasce da mulher, assim como todo animal nasce de sua mãe. Mas, como não era visível a relação entre coito e gravidez, as comunidades primitivas acreditavam na ideia de que a fecundação era um “ato dos deuses”, e, portanto, a mulher era o caminho pelo qual a divindade entrava na história humana. Tanto é que as narrativas das concepções divinas são comuns na história. As mais conhecidas são: o nascimento de Hércules, filho de Zeus com a mortal Alcmena; e o nascimento de Jesus, filho de Jeová com Maria. No entanto, há várias outras histórias semelhantes. Essa percepção fundou uma forma de organização relacional: a cultura matrística, baseada no acolhimento, no cuidado e na integração, tendo por centralidade a figura feminina.
Nessas culturas, havia luta, competição, conflitos, mas não havia a violência como princípio. Divergir não era destruir; disputar não era exterminar. O ventre materno era metáfora de comunidade: nele cabiam todos, sem distinção. Esse modelo ainda existe entre nós. Os jogos olímpicos, por exemplo, são expressões de competição, luta e disputa, mas não de inimizades ou violência.
A transição para a dominação
Com o tempo, a humanidade percebeu o papel masculino na concepção. O esperma passou a ser visto como a semente indispensável da vida. E a narrativa mudou: do ventre da mulher para a “semente” do homem. A sacralidade feminina foi sendo substituída pela supremacia masculina. E com ela nasceram estruturas patriarcais que subjugaram e extinguiram sociedades matrísticas inteiras.
Essa mudança não foi apenas biológica, foi política. A dominação masculina não se impôs pela persuasão, mas pela violência, pela criação de mitos aterrorizantes e pela manipulação da ignorância. Se uma colheita queimava, era porque a divindade masculina exigia submissão. Se uma doença devastava, era punição por não obedecer. Surgiu a figura dos intermediários, sacerdotes que não apenas cuidavam da espiritualidade, mas a usavam para impor medo e controle. Criou-se o inferno como ameaça e a salvação como barganha. A espada substituiu o cálice. O medo passou a reger o vínculo. A relação deixou de ser parceria e tornou-se hierarquia.
Quando penso no que significa viver em uma cultura patriarcal, vejo diante de mim um espelho que, por séculos, refletiu apenas um lado da humanidade. É como se tivéssemos aprendido a caminhar usando apenas uma perna: conseguimos nos mover, mas de forma manquitola, instável, sempre desequilibrada. A cultura patriarcal nos fez acreditar que a força, a dominação e a hierarquia eram os únicos instrumentos capazes de sustentar a vida em sociedade.
Essa cultura se estrutura em dois eixos principais: a guerra e a exploração. Se não é possível explorar, guerreia-se para conquistar e explorar depois. Ao longo da história, povos foram dominados, riquezas expropriadas, culturas inteiras sufocadas por esse modelo. A espada se tornou metáfora e prática: ela corta, divide, subjuga. Aprendemos a acreditar que sem espada não haveria ordem, progresso, futuro. Daí para o conceito de supremacia do homem, foi fácil. E dessa facilidade para se “legitimar” uma narrativa da “submissão” da mulher foi mais fácil ainda. Com isso “aceitamos” relações tóxicas, comportamentos abusivos. O feminicidio e a violência de gênero estão por todos os lados.
Mas o patriarcado não se limita a campos de batalha ou tratados políticos. Ele se infiltra no cotidiano. Está na maneira como famílias foram organizadas sob o mando do homem, no modo como religiões ergueram deuses masculinos guerreiros, na ideia de que obediência é mais importante que diálogo. Está na crença de que a violência é inevitável e até necessária. Crescemos naturalizando isso, como se fosse a ordem das coisas.
A cultura patriarcal, no fundo, é uma narrativa de poder. É a manipulação da ignorância para manter a dominação. Foi assim quando povos inteiros foram convencidos de que um deus vingativo exigia submissão sob pena de castigo e sacríficos. Foi assim quando se construiu o medo do inferno como ferramenta de controle. É assim ainda hoje, quando líderes se apresentam como salvadores da pátria, sustentando-se na lógica da força e da intimidação.
O preço dessa narrativa é alto. Perdemos a capacidade de nos indignar com o absurdo. Aceitamos fome em meio à abundância, exclusão em meio à tecnologia, guerras em meio a tantas alternativas de diálogo. É como se a cultura patriarcal tivesse anestesiado nossa sensibilidade, tornando normal o que deveria nos escandalizar.
O patriarcado nos ensina a ver diferenças como ameaças e não como riquezas. Ele nos faz acreditar que o outro só pode existir sob minha condição: ou se submete, ou é inimigo. A diversidade, que poderia ser um mosaico vivo de possibilidades humanas, é reduzida a fronteiras rígidas. Quem pensa diferente vira adversário; quem é vulnerável vira descartável.
Ao refletir sobre isso, percebo que a cultura patriarcal é como uma lente que distorce o real. Ao invés de enxergar o mundo como uma teia interdependente, ela o apresenta como um campo de batalha. Ao invés de percebermos a vida como dom compartilhado, passamos a vê-la como território a ser conquistado.
Desmontar essa lente não é fácil, porque crescemos dentro dela. Mas é necessário e urgente. Se quisermos um futuro sustentável, justo e humano, precisamos questionar a herança patriarcal que ainda orienta nossas escolhas. Precisamos reaprender a caminhar com as duas pernas: força e cuidado, razão e afeto, masculino e feminino, convivendo sem hierarquia. Só assim, talvez, possamos reencontrar o equilíbrio perdido e devolver à humanidade a capacidade de florescer em parceria, e não em dominação.
A perda da indignação
Eisler nos convida a observar como, nessa transição, perdemos a capacidade de nos indignar. Como explicar Hiroshima e Nagasaki? Como justificar o Holocausto? Que racionalidade pode sustentar tamanha barbárie? A cultura patriarcal, baseada na dominação, naturaliza absurdos e constrói o discurso de que “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. O intolerável se torna rotina. Aceitamos a exclusão, a fome, a exploração, como se fossem leis da natureza. E quando perdemos a capacidade de dizer “isso é absurdo”, nos tornamos cúmplices do silêncio que legitima a barbárie.
Rastros da cultura matrística
Quando mergulho no conceito de cultura matrística, percebo que não se trata apenas de uma forma de organizar a sociedade, mas de uma forma de sentir o mundo. É como se o coração fosse colocado no centro da vida comunitária, orientando gestos, decisões e vínculos. A cultura matrística nasce do reconhecimento de que a vida é um dom que brota do ventre e que deve ser cuidado como um tesouro coletivo.
Ao contrário da lógica da imposição, a matriz dessa cultura é o acolhimento. Não o acolhimento condescendente, mas aquele que nasce da certeza de que cada ser tem um lugar legítimo no tecido da vida. É como uma árvore: seus galhos se abrem em direções distintas, mas todos encontram alimento na mesma seiva. Nas comunidades matrísticas, a diferença não era ameaça, mas variedade de cores dentro de um mesmo quadro.
O eixo não estava no poder de submeter, mas no poder de nutrir. Nutrir a vida, os vínculos, a diversidade. Nessa perspectiva, não se precisava de intermediários que ditassem o medo; bastava a experiência cotidiana do cuidado para compreender a espiritualidade. A mãe que amamenta, o grupo que partilha a colheita, os anciãos que transmitem sabedoria: tudo isso formava uma rede de significados que fortalecia o sentido de pertencimento.
É claro que nessas sociedades também havia conflitos e disputas. Mas o conflito não era tratado como sentença de destruição, e sim como ocasião para recompor os laços. Penso nisso como um vaso de cerâmica: quando trinca, não é descartado, é reparado com cuidado. A vida coletiva era vista como esse vaso comum, que precisa ser preservado porque todos bebem dele.
A espiritualidade matrística também reflete esse horizonte. Não haviam deuses distantes, imponentes e punitivos, mas representações do sagrado ligadas à terra, à fertilidade, ao ciclo da vida. O sagrado não era usado para amedrontar, mas para celebrar. A morte não aparecia como condenação, e sim como retorno ao todo. A existência era entendida como círculo, não como linha de chegada.
Minha tradução dessa visão para o presente está gesto de abraçar. O abraço não elimina a diferença de altura, peso, idade ou origem, mas integra as diferenças em um espaço de proximidade. A cultura matrística é esse abraço social: nela cabem as tensões, mas sem expulsar; cabem as divergências, mas sem anular.
No nosso tempo, marcado por tantas urgências, recuperar a inspiração matrística é reconhecer que não há futuro possível sem cooperação. Significa redescobrir que a vida floresce mais quando é partilhada, e que o cuidado é força transformadora, não sinal de fraqueza. É admitir que somos todos viajantes de uma mesma travessia e que, sem confiança mútua, não chegaremos a lugar algum.
A cultura matrística, portanto, não é utopia distante. É memória viva e possibilidade concreta. É um convite para reorganizar nossas relações sob o signo do vínculo e não da hierarquia. Minha filha Thirza Reis usa uma metáfora muito sutil para isso. No seu livro BASTA[2], ela diz que a cultura matrística “é como acender uma lamparina em meio à noite: talvez sua luz não afaste toda a escuridão, mas torna possível enxergar uns aos outros e continuar caminhando juntos”.
Vestígios da cultura matrística ainda sobrevivem. Eisler nos mostra exemplos contemporâneos. As Olimpíadas, por exemplo: competimos, disputamos medalhas, mas não transformamos o outro em inimigo. No fim, atletas se abraçam, reconhecendo-se como parte de uma mesma humanidade. É o espírito do jogo, não da guerra. Outro vestígio é a relação de muitas mães com seus filhos: acolhimento sem distinção, cuidado sem cálculo. Esses são ecos de um modo de ser que insiste em permanecer.
Patriarcal x Matrístico: dois modos de organizar a vida
A cultura patriarcal estrutura-se na lógica da dominação. Seu alicerce é a crença de que a força garante ordem e que a hierarquia é necessária para manter a sociedade unida. Guerra e exploração tornam-se instrumentos de progresso, e o outro é visto como ameaça ou recurso a ser controlado. A diversidade é percebida com desconfiança, e a diferença tende a ser anulada ou subjugada. O sagrado assume feições punitivas, legitimando a obediência pelo medo. Nessa lente, a vida é campo de batalha, e a vitória de uns exige a derrota de outros.
Em contraste, a cultura matrística organiza-se pelo cuidado e pela integração. O vínculo é o centro: nutrir, proteger, celebrar e reparar são gestos que mantêm a comunidade viva. O conflito não é sentença de exclusão, mas ocasião para recompor laços. O sagrado é próximo, ligado à fertilidade, à terra, ao ciclo da vida. A diversidade é vista como riqueza, e a morte não é castigo, mas retorno ao todo.
Enquanto o patriarcado corta como espada, o matrístico acolhe como cálice. Um modelo fragmenta, o outro integra. A escolha entre eles revela não apenas estruturas políticas, mas visões de mundo. O que lhes convido a fazer é aprender com ambos e a construir um novo horizonte.
A Cultura da Parceria: o horizonte possível
Creio que não precisamos ficar presos entre os extremos da espada patriarcal e do cálice matrístico. Podemos escolher uma terceira via: a cultura da parceria. Nela, não se trata de eliminar a força ou negar o cuidado, mas de integrá-los em uma nova forma de convivência.
A parceria reconhece que a vida é uma teia de interdependências. Cada pessoa é singular, mas essa singularidade ganha sentido quando colocada em relação com os outros. Diferente do patriarcado, não há hierarquia de dominação; diferente do matrístico, não há idealização da harmonia absoluta. O que existe é a construção cotidiana de equilíbrio, feita de respeito, reciprocidade e dignidade compartilhada.
Essa cultura valoriza a educação não violenta, que desperta talentos em vez de padronizar. Valoriza redes de ajuda, que sustentam a vida coletiva com solidariedade e não com exploração. Valoriza a diversidade como fonte de criatividade, e não como ameaça.
A parceria é, acima de tudo, uma escolha. É decidir que a paz não é ausência de conflito, mas presença de vínculos fortes o suficiente para enfrentar tensões sem romper. É o horizonte que nos convida a trocar a lógica do medo pela lógica do cuidado e, assim, escrever um futuro mais humano.
Mas o que significa viver matrísticamente hoje?
Viver matrísticamente não é voltar à pré-história. É atualizar valores de respeito, parceria, cuidado amoroso, sustentabilidade e inclusão. É reconhecer que diferenças não são ameaça, mas riqueza. É trocar a lógica do “ou eu ou você” pela lógica do “eu com você”.
Para isso, proponho três caminhos práticos:
- Educação não violenta. A escola que massifica é como um moedor de carne: diferentes cortes, alcatra, filé, pernil, entram distintos na máquina e saem todos iguais, transformados em carne moída. Essa homogeneização mata a singularidade. Precisamos de uma educação que reconheça talentos únicos, que cuide das diferenças em vez de esmagá-las. Educar não é padronizar, é cultivar.
- Redes de ajuda. Somos autônomos, mas ninguém é autossuficiente. Eu posso estar aqui escrevendo, mas alguém garante a energia elétrica, alguém colhe os alimentos que comi, alguém pavimenta a rua por onde andei, alguém me ajudou a chegar até aqui. Somos parte de uma grande rede de interdependência. Reconhecer isso desperta gratidão e responsabilidade. É como perceber que cada fio invisível sustenta uma teia: ao cuidar de um, sustento a todos.
- Revisão da racionalidade. A razão que justifica bombas e genocídios não é verdadeira razão, é delírio. Precisamos resgatar os afetos como parte do pensar. Razão sem afeto é cálculo frio; afeto sem razão é impulso cego. Só juntos podem gerar sabedoria. Acolher a emoção como parte legítima da vida é abrir espaço para soluções pacíficas.
A paz como escolha cotidiana
Eisler insiste: a paz não é política de Estado, é escolha pessoal. Gandhi mostrou que a revolução pode ser não violenta. Jesus escolheu a paz mesmo diante da cruz. A paz não é ausência de conflito, mas decisão de não responder com violência. É como um rio que, diante da pedra, não a quebra, mas a contorna. A água não deixa de ser água; segue fluindo até o mar.
Podemos cultivar essa paz em gestos simples: aprender a conversar sem agressão; reconhecer o outro como legítimo em sua diferença; praticar ajuda não monetizada, baseada na necessidade e não no mérito; escolher não se deixar contaminar pela lógica da violência.
A convivência pacífica nasce quando descubro que ninguém pode me agredir sem meu consentimento interior. Posso rejeitar a violência com coração aberto, como quem segura a espada do outro e a transforma em arado.
O desafio do nosso tempo
Vivemos um século de paradoxos. De um lado, temos tecnologia que nos conecta instantaneamente; de outro, seguimos isolados em bolhas de intolerância. Produzimos alimento para todos, mas aceitamos a fome de milhões. Construímos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos desarmar o coração. É como se tivéssemos avançado no poder de multiplicar, mas regredido na sabedoria de compartilhar.
A cultura patriarcal nos ensinou a confundir força com grandeza, dominação com ordem, medo com obediência. O desafio agora é reaprender outra gramática: a da parceria, da ternura, da reciprocidade. Eisler chama isso de “cultura da parceria”.
Eu gosto de pensar como uma música em que cada instrumento é diferente, mas juntos criam harmonia. A diversidade não ameaça, enriquece.
Um fecho reflexivo
Por isso tudo, quero enfatizar o que estou propondo. Quando me aproximo do pensamento de Riane Eisler, encontro a chave que abre novos horizontes para compreender a vida em sociedade e justificar o que creio e defendo: o conceito de parceria. Não de uma parceria como um arranjo estratégico ou como um contrato entre partes que buscam benefícios mútuos. Falo de algo mais profundo, quase ontológico: uma maneira de organizar a vida que se opõe radicalmente ao modelo de dominação.
Por milhares de anos, fomos ensinados a acreditar na violência, na hierarquia e no controle como inevitáveis. Herdamos a lógica da espada: quem pode mais, manda; quem não pode (ou tem juízo), obedece. Essa visão estruturou nossas instituições, nossas economias e até nossas famílias. Mas quero crer que existe outro caminho: o caminho da cultura matrística, do cálice, que simboliza a nutrição, o cuidado e a partilha. Nesse contexto o conceito de parceria nasce exatamente na contra cultura, nos mostrando que não precisamos escolher entre ser dominadores ou dominados, podemos escolher ser parceiros.
Parceria, para mim, significa reconhecer que a vida é uma rede interdependente. É entender que a minha dignidade está ligada à dignidade do outro, que o meu florescimento só se cumpre quando o outro também floresce. É como uma orquestra: cada instrumento é diferente, com seu timbre e sua potência, mas só juntos produzem harmonia. Quando um tenta se impor sobre os demais, o resultado é ruído. A parceria é a música que só existe quando há escuta, reciprocidade e cuidado.
Ao longo da história, as culturas matrísticas viveram sob esse paradigma da parceria. Não eram sociedades perfeitas, mas estruturavam-se em torno de valores de respeito, inclusão e acolhimento. Não se tratava de negar conflitos, mas de resolvê-los sem violência como princípio. Essa herança nos lembra que o modelo da dominação não é natural nem inevitável: é apenas uma escolha histórica.
Trazer o conceito de parceria para os dias de hoje é um desafio urgente. Em um mundo que ainda insiste em medir valor pelo poder de dominar, falar de parceria soa quase revolucionário. É dizer que a verdadeira grandeza não está em impor, mas em compartilhar; não em vencer, mas em conviver. É afirmar que paz não é ausência de conflito, mas a ausência de confronto e na escolha consciente de viver sem violência.
Na prática, parceria se traduz em pequenas e grandes ações: educar de forma não violenta, construir redes de ajuda, respeitar as diferenças, aprender a conversar sem agredir. É decidir, todos os dias, que a vida vale mais quando é partilhada. É optar pelo cálice em vez da espada.
No fundo, parceria é um ato de fé: fé de que a humanidade pode aprender a se reconhecer não como inimigos em guerra, mas como companheiros de jornada. E é também um ato de coragem: coragem de desarmar a mão e abrir o coração. A realidade atual de nossa história é um alerta mais que urgente para que comecemos essa travessia. Eu aceito o convite, porque acredito que o futuro só será possível se for um futuro de parceria.
O cálice e a espada continuam diante de nós. Podemos escolher qual símbolo guiará nossas relações. A espada é rápida, cortante, sedutora. O cálice exige paciência, cuidado, tempo. A espada promete vitória, mas deixa rastros de sangue. O cálice não promete domínio, mas oferece comunhão. Entre cortar e nutrir, entre dividir e integrar, está a encruzilhada da humanidade.
A história nos mostrou o poder destrutivo da espada. Talvez seja hora de experimentar a sabedoria do cálice. Se o mundo for uma mesa, a espada a corta em pedaços; o cálice a reúne em torno do vinho partilhado. Se o mundo for um corpo, a espada o fere; o cálice o cura. Se o mundo for uma canção, a espada silencia; o cálice canta.
Escolher o cálice é escolher a vida. É olhar para o outro não como ameaça, mas como parte da mesma travessia. É aceitar que não somos donos do futuro, mas guardiões da possibilidade de futuro. É abrir espaço para que a próxima geração encontre não ruínas, mas sementes.
Ao trocar a lâmina pelo gesto, o medo pelo cuidado, a dominação pela parceria. Que sejamos capazes de transformar a violência em memória e a paz em prática. Que o cálice volte a ocupar nossas mãos, não como nostalgia de um passado perdido, mas como profecia de um futuro ainda possível.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025
[1] Riane Tennenhaus Eisler (Viena 1931/xx) sobrevivente do nazismo, é uma acadêmica austríaca, historiadora cultural, escritora e ativista social.
É presidente do centro para “Estudos sobre Parceria”, na Califórnia/USA.
[2] REIS, Thirza; BASTA; Ed. Literare Books, SP/SP, 2025 – thirzar@gmail.com

Sempre que penso sobre a força dos relacionamentos humanos, volto ao poder de uma atitude aparentemente simples, mas profundamente transformadora: a escuta ativa. Escutar o outro é mais do que captar palavras; é entrar em sintonia com sua experiência, acolher suas emoções, perceber seus silêncios. É um gesto que, na superfície, pode parecer óbvio, mas que, em sua profundidade, revela-se como um dos pilares da convivência ética, da inteligência relacional e da gestão de vínculos duradouros.
Falo na primeira pessoa porque esse tema não é teórico, é visceral. Tenho experimentado, em minha vida e em minha prática profissional, os efeitos da escuta ativa como ferramenta de transformação individual e coletiva. Sinto que, quando escuto ativamente, eu não apenas compreendo o outro; eu me deixo tocar por ele. Isso me lembra Martin Buber, filósofo do diálogo, que dizia que o encontro autêntico se dá quando nos dispomos ao “Eu-Tu”, e não ao “Eu-Isso”. Na escuta ativa, coloco o outro no centro da relação, não como objeto de análise, mas como sujeito de dignidade.
A psicologia humanista, especialmente na obra de Carl Rogers, nos lembra que a escuta ativa é condição essencial para que o outro possa florescer. Rogers falava da “consideração positiva incondicional” como abertura para que o outro se revele sem medo de julgamento. Eu me identifico profundamente com isso. Quando escuto ativamente, sinto que ofereço ao outro uma espécie de solo fértil, onde sua palavra pode brotar sem ser arrancada ou sufocada. Por outro lado, quando percebo que alguém é capaz de escutar o outro, as distâncias se encurtam, o diálogo floresce, as soluções são encontradas, os acordos são feitos e os resultados desejados aparecem com mais vigor e perenidade.
Escutar não é apenas de uma técnica de comunicação. A escuta ativa é, para mim, uma postura existencial. É decidir estar presente no aqui e agora, com atenção plena, com empatia e respeito. É a antítese do automatismo que marca tantas conversas cotidianas, onde falamos mais para responder do que para compreender.
O filósofo Hans-Georg Gadamer, em sua hermenêutica, dizia que compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. Essa fusão só acontece se eu estiver disposto a sair de meu próprio horizonte para me abrir ao do outro. A escuta ativa é justamente esse movimento de deslocamento: eu amplio meus limites para que o horizonte do outro encontre espaço em mim.
Muitas vezes, penso que escutar ativamente é como abrir as janelas de uma casa que há muito tempo está fechada. O ar novo entra, a luz se espalha, e eu descubro que havia cantos esquecidos. Assim também é na relação: a escuta areja, renova, expande.
Mas, por que temos tanta dificuldade em escutar o outro ou os outros? Escutar os outros deveria ser um gesto natural, mas na prática é um dos atos mais difíceis que realizamos. Muitas vezes carregamos conosco a ilusão de que estamos escutando, quando na verdade apenas esperamos a pausa alheia para introduzir a nossa própria fala. Esse comportamento nasce de diferentes causas. Uma delas é o ego inflado, que não aceita ser deslocado do centro da cena. O desejo de protagonismo nos leva a disputar espaço em cada conversa, como se o diálogo fosse uma arena em que importa mais vencer do que compreender.
Há também a influência da ansiedade e da pressa que marcam nossa época. Vivemos em um ritmo que não tolera o silêncio e que exige respostas rápidas. Escutar, no entanto, exige tempo, paciência e disposição para permanecer diante da palavra do outro sem antecipar conclusões. Muitas vezes a pressa nos leva a interromper frases, a completar pensamentos alheios, a reduzir a complexidade do que está sendo dito apenas para que possamos voltar a falar.
Outro fator relevante é a ausência de uma cultura de escuta. Desde a infância somos ensinados a falar, argumentar, defender ideias, apresentar trabalhos. A oratória é valorizada, mas a escuta raramente é cultivada como habilidade essencial. Crescemos em ambientes em que escutar não é sinal de maturidade, mas de passividade, como se o silêncio fosse sinônimo de submissão. Assim, não aprendemos a sustentar com dignidade o lugar de receptores da palavra alheia.
Há ainda o medo de se deixar afetar. Escutar verdadeiramente é perigoso, porque nos coloca diante da dor, da diferença e da vulnerabilidade do outro. Quem escuta com profundidade pode ser transformado, pode ter de rever certezas, pode perceber fissuras em suas próprias convicções. Muitos evitam a escuta justamente para não enfrentar esse espelho. É mais seguro manter-se na bolha das próprias opiniões do que permitir que a alteridade nos desestabilize.
Além disso, cada um carrega consigo uma multidão de ruídos internos. Preocupações, preconceitos, julgamentos e ansiedades funcionam como filtros que distorcem ou abafam o que o outro diz. Mesmo presentes fisicamente em uma conversa, às vezes estamos ausentes por dentro, mergulhados em nossas vozes internas. Essa sobreposição de pensamentos nos impede de receber plenamente a mensagem alheia.
O contexto também interfere. Em ambientes hierárquicos ou tóxicos, escutar é visto como fraqueza. Quem detém poder sente que precisa falar para manter sua autoridade, enquanto quem ocupa posições subordinadas acredita que não será escutado de qualquer forma. A estrutura da organização inibe a prática da escuta e reforça a lógica do monólogo.
As consequências dessa dificuldade são muitas e profundas. A primeira delas é o empobrecimento das relações. Sem escuta, os vínculos se tornam superficiais, reduzidos a trocas utilitárias. Pessoas convivem lado a lado, mas não se encontram de verdade. Cada uma vive em seu universo particular, sem ponte com o mundo interno do outro.
Outra consequência frequente é o aumento dos conflitos. Muitas divergências não nascem de grandes diferenças, mas de pequenos mal-entendidos que poderiam ser evitados se houvesse uma escuta atenta. Quando não escutamos, interpretamos mal, alimentamos suposições e reforçamos ressentimentos. O diálogo se rompe e o que poderia ser uma diferença criativa se converte em disputa hostil.
A falta de escuta também gera isolamento emocional. Aquele que nunca é escutado tende a se retrair, a acreditar que sua voz não importa, que sua existência não é reconhecida. Esse silêncio imposto pelo desinteresse do outro é uma das formas mais cruéis de solidão. Ser ignorado mina a autoestima e enfraquece a confiança básica de que valemos a pena.
Nas organizações, a ausência de escuta corrói a confiança. Uma liderança que não escuta sua equipe perde credibilidade. As pessoas deixam de se engajar, escondem problemas, evitam trazer ideias. Em contextos mais amplos, como no espaço social ou político, instituições que não escutam seus públicos tornam-se irrelevantes, incapazes de dialogar com as transformações do tempo.
Também há um impacto direto na capacidade de inovar. Quando não escutamos clientes, colaboradores, familiares ou parceiros, deixamos escapar sinais importantes do ambiente. Ficamos presos em nossas próprias narrativas, repetindo padrões, sem perceber oportunidades de mudança. A escuta ativa, ao contrário, é fonte de adaptação e de criação, porque revela perspectivas que sozinhos jamais alcançaríamos.
Talvez a consequência mais profunda, no entanto, seja o empobrecimento humano. Quem não escuta fecha-se em suas certezas, priva-se da riqueza do outro, perde a oportunidade de aprender e de crescer. A escuta é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que acolhe, também ensina. Negar-se a escutar é recusar-se à transformação que todo encontro humano traz.
No fundo, a dificuldade em escutar revela o medo de deixar o outro existir em nós. É como se houvesse receio de que a palavra alheia ocupe espaço demais, ou que sua dor se infiltre em nossas frestas. Mas quando não escutamos, pagamos caro: relações frágeis, conflitos recorrentes, isolamento, falta de confiança e estagnação. Aprender a escutar, portanto, não é apenas um gesto de bondade, mas um imperativo de sobrevivência relacional. É nesse exercício que se decide a qualidade das nossas conexões e, em última instância, a qualidade da nossa própria humanidade.
Quando penso em gestão de relacionamentos, seja no âmbito pessoal, profissional ou institucional, vejo que a escuta ativa é um divisor de águas. Empresas, famílias, comunidades, todas são atravessadas pela qualidade de suas conversas. E é pela escuta que construímos confiança.
Confiança não nasce de palavras bonitas, mas da experiência reiterada de ser escutado e respeitado. Quando uma equipe percebe que sua liderança escuta genuinamente, abre-se um campo de reciprocidade. As pessoas sentem-se autorizadas a trazer suas inquietações, suas ideias, suas vulnerabilidades. E é nesse espaço que surge a inovação, a coesão e a corresponsabilidade.
Lembro-me de Anthony Giddens, sociólogo, que fala da reflexividade da vida moderna: vivemos em um mundo onde precisamos constantemente justificar nossas ações e decisões diante dos outros. Nesse contexto, a escuta ativa não é luxo, mas necessidade. Só por meio dela conseguimos sustentar relações transparentes e evitar que a comunicação se torne apenas formalidade vazia.
Na prática da Inteligência Relacional, percebo que escutar é um dos modos mais potentes de cuidar. Escutar não é passividade, é ato ativo de sustentação do vínculo. Quando escuto, assumo responsabilidade compartilhada: reconheço que o outro existe, que tem voz, que sua narrativa é tão legítima quanto a minha. Isso cria um pacto silencioso de dignidade.
A psicologia contemporânea reforça o impacto da escuta ativa no bem-estar emocional. Estudos da psicologia positiva apontam que ser escutado é uma das experiências mais gratificantes que alguém pode ter. O simples ato de narrar uma dificuldade, e perceber que o outro realmente escutou, já diminui a carga de estresse, amplia a resiliência e fortalece a autoestima.
Também na terapia cognitivo-comportamental, percebe-se que a qualidade da escuta do terapeuta é decisiva para que o paciente consiga reestruturar suas crenças. Sem escuta, não há espaço para a reorganização da narrativa pessoal. E mesmo em contextos de mediação de conflitos, a escuta ativa se revela essencial: é quando as partes se sentem ouvidas que se abre a possibilidade de diálogo e resolução.
Na minha vivência, como conselheiro corporativo, mentor e psicanalista, noto como muitas vezes as pessoas não pedem soluções, mas apenas espaço para serem escutadas. A escuta, nesses casos, já é terapêutica. É como se o simples fato de alguém sustentar meu discurso com atenção amorosa já fosse suficiente para que eu me reorganize por dentro.
Penso, por exemplo, em reuniões de trabalho onde alguém propõe algum tema difícil, ou abre uma conversa delicada, traz um tema controverso ou aponta uma dificuldade. Muitas vezes, ele não busca um manual pronto de respostas. Busca reconhecimento. Busca sentir-se visto. Quando escuto sem interromper, sem apressar, percebo que sua própria fala já contém as sementes da solução.
Do ponto de vista filosófico, escutar ativamente é um exercício ético. Emmanuel Lévinas fala da alteridade (qualidade do que é diferente e a capacidade de se colocar no lugar do outro), como fundamento da ética: é o rosto do outro que me convoca à responsabilidade. Escutar é atender a esse chamado. É reconhecer que minha liberdade encontra limite no direito do outro de existir plenamente.
Essa dimensão ética da escuta ativa é crucial na gestão de relacionamentos. Pois gerir não é manipular, é cuidar. Não é impor, é dialogar. Não é apenas conduzir pessoas para metas, mas criar ambientes em que a dignidade seja preservada. E a dignidade começa pelo reconhecimento da voz.
Quando escuto, ergo uma ponte entre o eu e o outro. Uma ponte que não apaga diferenças, mas que as torna fecundas. Escutar é aceitar que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. É por isso que digo: a escuta ativa é uma política da convivência inteligente.
Na sociologia, autores como Jürgen Habermas destacam a centralidade da comunicação para a vida democrática. Habermas fala da “ação comunicativa” como horizonte de uma sociedade baseada na razão dialógica. A escuta ativa é a expressão prática desse ideal: sem escuta, não há deliberação democrática, não há comunidade viva, não há coesão social.
Se ampliarmos isso para sistemas complexos (famílias etc.), e organizações corporativas e sociais, percebemos que onde não há escuta de membros, sócios, colaboradores ou clientes, as relações tornam-se frágeis, autorreferenciais, incapazes de se adaptar. Se não há escuta entre os líderes e diretores, a situação fica mais complexa ainda; torna-se “cabo de guerra”, onde os interesses individuais sobrepõem-se às demandas ou necessidades coletivas. Já aquelas que cultivam uma escuta permanente constroem resiliência, porque captam sinais, ajustam rumos e mantêm vínculos de confiança.
Eu vejo que, em tempos de excesso de informação, a escuta ativa se torna estrategicamente necessária. Recebemos e construímos mensagens e estímulos intensos e constantemente, mas nem sempre nos sentimos escutados. Escutar, nesse cenário, é contracultural: é resistir à lógica da pressa, da resposta imediata, da superficialidade.
Na minha trajetória, percebo que a escuta ativa é também um exercício de autoconhecimento. Para escutar o outro, preciso primeiro calar minhas próprias vozes internas. Preciso aquietar meu julgamento, minha ansiedade de resposta, minha ânsia de controle. Escutar é aprender a esperar.
Essa espera, por vezes desconfortável, é também fecunda. Ela me ensina a paciência, a humildade e a coragem de não ter todas as respostas. Aprendo que escutar é um ato de fé: acreditar que o outro tem algo a dizer que pode me enriquecer, mesmo quando não concordo.
Além disso, a escuta ativa me conecta ao sentido da reciprocidade. Quando sou escutado, sinto-me valorizado; e quando escuto, valorizo o outro. É nesse movimento de troca que se edifica a confiança.
Na gestão de equipes ou de grupos, a escuta ativa se traduz em liderança mais humana e eficaz. Líderes que escutam conseguem captar as nuances do ambiente, identificar conflitos latentes, reconhecer talentos ocultos. Mais ainda: líderes que escutam tornam-se referenciais de confiança.
Eu mesmo, em experiências profissionais, já vi equipes e grupos se desestruturarem por ausência de escuta. Palavras ditas em vão, reuniões em que ninguém se sentia escutado, decisões tomadas unilateralmente. O resultado era desmotivação, distanciamento, perda de energia, além de brigas e discussões sem sentido.
Por outro lado, já presenciei transformações impressionantes quando a escuta foi cultivada. Ambientes tensos se tornaram mais leves, rivalidades foram administradas, histórias entendidas, pessoas antes retraídas passaram a contribuir, soluções criativas emergiram do simples fato de alguém ter se sentido escutado.
É curioso notar como a escuta ativa também é motor de inovação. Muitas vezes, pensamos que inovar é apenas criar algo inédito. Mas, na prática, inovar é perceber de modo novo aquilo que já existe. E isso só é possível se escutamos com atenção.
Escutar clientes, escutar diferentes, por exemplo, é fonte inesgotável de insights. Escutar colaboradores revela potenciais ainda não explorados. Escutar parceiros abre portas para colaborações inéditas.
Na era digital, em que tanto se fala de big data e inteligência artificial, acredito que a escuta humana, genuína, continua sendo insubstituível. Pois não há algoritmo que capture o silêncio carregado de sentido, ou o tremor da voz que revela vulnerabilidade.
Desafios da escuta ativa:
Não romantizo a escuta ativa. Sei que ela exige disciplina, presença e, muitas vezes, coragem. Escutar pode ser doloroso, porque o que o outro diz nem sempre é o que eu gostaria de escutar. Pode ser frustrante, porque demanda tempo em um mundo acelerado. Pode ser desafiador, porque me confronta com minhas próprias limitações.
Mas é justamente nesses desafios que reside sua potência. Ao escutar, coloco-me em posição de vulnerabilidade: reconheço que não controlo tudo, que dependo do outro para compreender melhor a realidade. Esse reconhecimento é libertador.
Gosto de pensar a escuta ativa como uma arte. Uma arte relacional, que mistura técnica, sensibilidade e ética. Uma arte que se aprende praticando, errando, recomeçando. Uma arte que nunca se esgota, porque cada encontro é único.
Na prática, escutar ativamente é como afinar um instrumento musical. Preciso ajustar minhas cordas internas (atenção, paciência, empatia), para que a melodia do encontro soe harmônica. E, quando isso acontece, sinto que o relacionamento ganha nova densidade.
Lembro-me de uma situação concreta em que um gestor empresarial enfrentava altos índices de rotatividade em sua equipe. Havia tentado aumentar salários, criar bônus, melhorar a infraestrutura. Nada parecia resolver. Quando nos sentamos para refletir, percebemos que o problema era simples, mas profundo: os colaboradores não se sentiam escutados.
Iniciamos então um processo de encontros de escuta ativa. Em vez de reuniões apenas para repassar tarefas, criamos espaços para que cada voz fosse ouvida. Aos poucos, o clima organizacional mudou. O índice de rotatividade caiu, e os próprios funcionários relataram sentir-se mais motivados.
Outro caso, em contexto comunitário, envolveu um grupo em conflito por diferenças religiosas. A tensão era tão grande que já não havia diálogo. Foi pela escuta ativa, mediada com paciência, que surgiram narrativas comuns: todos, no fundo, desejavam segurança para seus filhos, dignidade em suas vidas e respeito às suas crenças. Essa descoberta partilhada foi possível apenas porque alguém decidiu escutar. Esses exemplos me confirmam: a escuta ativa não é retórica. É prática concreta de transformação.
Vivemos hoje em um ambiente em que a comunicação é acelerada por plataformas digitais. Mas, paradoxalmente, a escuta verdadeira parece cada vez mais rara. Nos aplicativos de mensagem, respondemos sem ler com atenção; nas redes sociais, interagimos apenas com fragmentos.
Acredito que a escuta ativa precisa se reinventar nesse cenário. Precisa incluir pausas, feedbacks mais conscientes, tempos de silêncio mesmo em ambientes virtuais. Quando escrevo uma mensagem e recebo uma resposta que mostra que o outro realmente entendeu, sinto o mesmo alívio que numa conversa presencial.
Na gestão de relacionamentos digitais, a escuta ativa é antídoto contra a superficialidade. É ela que distingue um atendimento robótico de uma relação humanizada.
Para resumir tudo o que disse, eu afirmo: a escuta ativa é um caminho de humanização. É ela que dá corpo ao amor como força criadora, que sustenta o dever como pacto de reciprocidade, que transforma o medo em guardião da vida, que orienta a ira para a defesa da dignidade.
Na gestão de relacionamentos, a escuta ativa é o que impede a fragmentação e favorece a integração. É o que transforma grupos em comunidades, equipes em coletivos criativos, organizações em organismos vivos.
Escutar, no fim das contas, é uma escolha. Uma escolha por estar presente, por reconhecer o outro, por apostar no diálogo. É um ato de fé na palavra e no silêncio, na vulnerabilidade e na força, na singularidade e na interdependência.
Assim, sigo aprendendo a escutar. E cada vez que escuto, renovo minha convicção de que não há inteligência mais poderosa do que a relacional. Pois é ela que nos lembra, sempre, que ninguém se humaniza sozinho.
Pense e reflita sobre isso.
HomeroReis.
Curitiba, PR, setembro/25

Reflexões sobre Coerência, Relações e Sentido©[1]
Quando utilizo a expressão “esquizofrenia organizacional”, não me refiro a um diagnóstico clínico, mas a uma metáfora poderosa para descrever o desencontro entre o que se proclama e o que se pratica. É um hiato que separa valores anunciados de condutas efetivas; um descompasso que se manifesta tanto em instituições quanto em pessoas. No fundo, é a incoerência como modo de existência: uma vida em que se defende a ética no discurso e se pratica a transgressão nos bastidores, em que se fala de cuidado mas se age com descaso, em que se promete inclusão mas se reproduz exclusão. Essa incoerência, embora muitas vezes silenciosa e imperceptível no início, vai corroendo os alicerces da confiança, minando a credibilidade e desestruturando os vínculos que sustentam toda forma de convivência. Como se isso não bastasse, a esquizofrenia organizacional bloqueia as ações de longo prazo, minando o propósito das instituições. Isso porque constrói uma agenda oculta. Coisas são ditas “nos bastidores” e não sustentadas na vida pública; onde “sinceridade” é confundida com agressividade, questões pessoais disfarçados de “compromissos”, solidariedade encobrindo conflitos de interesse.
A esquizofrenia, em seu conceito técnico, é um transtorno mental, marcado por uma profunda dissociação entre percepção, pensamento, emoção e comportamento. Quem vive com essa condição experimenta uma ruptura na integração da realidade: acredita em coisas que não existem, ideias que não encontram base no mundo objetivo, sente afetos que não se ajustam às circunstâncias. Suas consequências traduzem um empobrecimento da vida emocional e social. A esquizofrenia é antes de tudo uma fragmentação da percepção, da razão, da afetividade e da conduta.
Quando transporto essa conceituação para o universo das organizações, encontro um paralelo inquietante. Vejo instituições que, como sujeitos em sofrimento psíquico, vivem uma cisão interna entre o que percebem, dizem, o que sentem e o que fazem. O discurso institucional, como um delírio socialmente aceito, anuncia valores elevados: ética, sustentabilidade, inclusão, bem-estar. Mas a prática cotidiana revela outra realidade, muitas vezes contraditória: ciúmes, invejas, comportamento “bate-assopra”, exploração de pessoas, descaso ambiental, exclusão velada, sobrecarga de trabalho. É como se a organização tivesse suas próprias alucinações, vendo-se como algo que não é, projetando uma imagem que não se sustenta na experiência real de quem a habita.
Nesse sentido, a esquizofrenia organizacional não é apenas incoerência. É uma ruptura do vínculo entre palavra e gesto, entre intenção e ação, entre identidade proclamada e vida concreta. Tal como no indivíduo em sofrimento, a organização perde a unidade de seu “eu” coletivo.
Costumo dizer que essa esquizofrenia é como uma rachadura em uma grande parede. No começo, quase invisível, não incomoda. Mas, com o tempo, se amplia, e toda a estrutura começa a se fragilizar. Uma organização pode continuar erguida por algum tempo, sustentada por aparências, slogans ou marketing, mas inevitavelmente essa rachadura se tornará visível e colocará tudo em risco. O problema não é apenas institucional; ele se infiltra nas relações entre as pessoas que compõem a organização. Cada líder ou colaborador, cada cliente, cada fornecedor sente, mesmo que inconscientemente, o peso da incoerência.
Tenho acompanhado organizações que falam de resultados e futuros com entusiasmo em seus relatórios anuais, mas cujas práticas diárias revelam desperdício, poluição e desordem na gestão. Outras que proclamam a diversidade como bandeira, mas mantêm em seus conselhos e diretorias apenas perfis homogêneos, fechados à diferença. Propósitos louváveis e práticas corrosivas. Vejo empresas que se dizem defensoras da ética, mas convivem naturalmente com pequenas corrupções cotidianas, justificadas em nome da sobrevivência do negócio. Também encontro instituições que defendem publicamente o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas que esperam que seus colaboradores se sacrifiquem em jornadas intermináveis, respondendo e-mails de madrugada ou abrindo mão de finais de semana.
O curioso é que muitas vezes essa incoerência não nasce da má-fé, mas de um conjunto de concessões aparentemente inocentes. Surge quando se diz: “vamos abrir uma exceção só desta vez”, “todos fazem assim, não podemos ficar para trás”, “precisamos bater a meta a qualquer custo”. Essa repetição de pequenas justificativas acaba criando uma cultura em que o discurso e a prática se divorciam. O resultado é uma vida organizacional esquizofrênica: proclama-se um valor para fora, pratica-se outro para dentro. Mas o pior da esquizofrenia organizacional é a dificuldade das pessoas de conversarem amigavelmente sobre as “coisas que discorrem”. Tudo acaba sendo um grande “ringue” de exercício do poder, tentativa de manipulação, ameaças veladas.
As consequências são devastadoras. A confiança se desfaz, e sem confiança não há vínculo que sobreviva. A motivação se dilui, porque ninguém se sente mobilizado por discursos vazios. Os conflitos internos aumentam, porque os valores deixam de ser referência compartilhada e passam a ser apenas retórica. A reputação, que leva anos para ser construída, pode ser destruída rapidamente quando incoerências vêm à tona. Mas talvez a consequência mais dolorosa seja a perda de sentido: quando uma pessoa ou organização deixa de alinhar discurso e prática, perde também a razão pela qual existe, porque os valores deixam de ser bússola e se tornam apenas enfeite.
A origem dessa esquizofrenia é multifacetada. Na maior parte das vezes ela nasce da liderança. Um líder incoerente, que não encarna os valores que proclama, cria descrédito em cascata. Mas também pode nascer de falhas de comunicação, quando mensagens se perdem e a prática vai em direção oposta ao discurso. Outras vezes é fruto do excesso de foco em resultados, em que o número vale mais que a dignidade. Há também a cultura da aparência, que prioriza a imagem externa e descuida da prática interna, criando um teatro de valores que nunca se tornam realidade. Em muitos contextos, a causa é ainda mais sutil: o medo do conflito. As pessoas percebem incoerências, mas calam-se, receosas de desagradar ou de colocar em risco sua posição. O silêncio, nesse caso, se torna cúmplice da fragmentação. Mas também há o caso dos “ultra comprometidos”; ou seja, pessoas que se julgam detentores das “verdades do negócio” e, em nome disso, perdem a elegância e o trato cortes com os demais.
Superar a esquizofrenia organizacional exige coragem e humildade. Coragem para enfrentar-se a si mesmo em um processo de autoconhecimento, como também para enfrentar dilemas éticos e para recusar atalhos convenientes que traem os valores fundamentais. Humildade para admitir erros, assumir vulnerabilidades e abrir espaço para conversas sinceras. A coerência não se constrói com discursos apenas, mas com gestos cotidianos, às vezes simples, mas sempre consistentes. Um pedido de desculpas sincero pode reconstruir mais confiança do que uma campanha de marketing milionária. Uma decisão difícil, tomada em nome de um valor ético, pode inspirar mais lealdade do que qualquer incentivo financeiro. A competência de atuar em grupo, buscando o consenso, vale mais do que a arbitrariedade de uma ação isolada, ainda que legítima. Entendendo que às vezes “posso fazer, mas não devo”. Esse discernimento nos conduz à saúde organizacional.
Nesse ponto, percebo como a Inteligência Relacional se apresenta como um verdadeiro antídoto contra a esquizofrenia. Ela nos lembra que o valor de nossas ações não está apenas no que pretendemos, mas no que o outro percebe, sente e experimenta em contato conosco. Não refere a como atuo na minha “boa vontade”, mas como o outro percebe isso e como o “meu modo de ser” impacta os outros. Somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo efeito que causamos. Isso significa que não basta ter boas intenções: é preciso alinhar o discurso às práticas de forma que o outro possa experimentar a coerência em cada gesto.
A coerência, nesse sentido, é mais que uma virtude: é a garantia de segurança relacional. Quando ajo em consonância com aquilo que proclamo, ofereço ao outro um espaço previsível e confiável. A confiança nasce dessa previsibilidade. A incoerência, ao contrário, gera incerteza, porque nunca se sabe qual versão da organização “está funcionando”: a do discurso ou a da prática. E a incerteza é corrosiva para qualquer vínculo.
A vida me mostrou que a coerência não significa perfeição. Significa autenticidade. Implica mostrar-se vulnerável, assumir limites, pedir desculpas quando necessário e entender que é na qualidade das relações que construímos o futuro. É justamente na vulnerabilidade que a humanidade se manifesta, e isso não fragiliza os vínculos; pelo contrário, fortalece-os. Quando um líder reconhece que errou e se dispõe a corrigir o rumo, inspira mais confiança do que quando julga estar sempre certo.
As aplicações práticas dessa reflexão são inúmeras. No campo da convivência humana corporativa, coerência significa transformar o discurso de cuidado em políticas concretas de bem-estar. No marketing, significa que as promessas feitas devem corresponder à experiência entregue, sob pena de transformar as relações em engodos. Na governança, significa alinhar relatórios de desempenho e sustentabilidade às práticas diárias, evitando o risco da “maquiagem verde”. De fato, refere-se à prática de uma empresa ou instituição que divulga(interna ou externamente) uma imagem de sustentabilidade, responsabilidade e coerência que não correspondem às suas ações reais (internas ou externas). Ou seja, usa-se um discurso ou marketing apenas para melhorar a reputação, sem mudanças consistentes na suas ações cotidianas. Na educação corporativa, significa ensinar que ética e coerência não são acessórios, mas fundamentos. Até mesmo nas relações familiares, coerência significa viver aquilo que se ensina, para que os filhos aprendam mais com o exemplo do que com as palavras. Para a liderança, significa também ser exemplo de fato.
Percebo que a coerência é um processo “terapêutico” contínuo contra a esquizofrenia organizacional, e nunca um estado acabado. Ela nasce do autocuidado, porque não posso ser coerente se vivo em contradição comigo mesmo. Ela se alimenta da escuta ativa, porque é ouvindo o outro que percebo minhas incoerências. Ela cresce na responsabilidade compartilhada, porque a cultura de uma organização não é obra apenas da liderança, mas de todos. E ela se consolida na coragem ética, quando assumimos a decisão de permanecer fiéis aos nossos valores, mesmo quando isso custa caro.
Gosto de pensar na esquizofrenia organizacional como um espelho incômodo. Ela nos mostra nossas contradições, expõe nossas feridas, mas também nos convida à transformação. Onde há incoerência, há possibilidade de aprendizado. Onde há fragmentação, pode nascer reconciliação. Cada contradição é um chamado à coerência, cada falha é um convite à responsabilidade. O risco é real, mas a oportunidade também é.
No fim, acredito que a coerência é o maior patrimônio que uma pessoa ou organização pode possuir. Não se conquista de uma vez por todas, mas se cultiva em pequenas escolhas diárias. É ela que sustenta reputações, que fortalece vínculos e que dá sentido ao trabalho. Quando penso no legado que desejo deixar, não me interessa ser lembrado pelas palavras bonitas que escrevi ou pronunciei, mas pela coerência entre o que disse e o que pratiquei. Porque, no fundo, é isso que permanece: a confiança que inspirei, os vínculos que construí, o sentido que ajudei a semear.
E se a esquizofrenia organizacional é um risco constante, ela também é um chamado à vigilância permanente. Cada gesto incoerente é um lembrete de que precisamos ajustar o rumo. Cada contradição percebida é uma oportunidade de recomeço. Ser coerente é um exercício de humanidade, uma escolha diária de alinhar discurso e prática, palavra e gesto, valor e conduta. É nesse alinhamento que se constrói a verdadeira grandeza das pessoas e das instituições.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília,outubro/2025

Da Violência à Paz
by Homero Reis©
O Cálice e a Espada (Riane Eisler)[1], é um livro essencial. A partir de uma pesquisa longitudinal de dez anos, o que ela nos oferece não é apenas uma interpretação da história humana, mas uma proposta para o porvir. Lê-lo fez-me sentir como se tivesse em mãos, duas chaves simbólicas. Uma abre a porta da violência que atravessa nossa história; a outra abre a possibilidade de um futuro tecido pela paz.
Ela nos desafia a reconhecer que a forma como estruturamos a vida em sociedade não é a única possível. Somos filhos de escolhas, e podemos escolher de novo. De fato, como gosto de dizer, “o futuro não existe como tal. Somos frutos de nossas escolhas”.
A pergunta desafiadora que me atravessa ao ler Eisler é simples e poderosa: existiram sociedades pacíficas em nossa história? Se a resposta for “sim”, então a violência que naturalizamos como destino é evitável. Ela é apenas uma narrativa dominante. E se houve outras narrativas de parceria, cuidado e respeito, então nós podemos, hoje, recontar a nossa história e reescrevê-la no presente a partir de outras perspectivas.
O que lhes quero trazer nesse texto é minha visão e algumas reflexões sobre o trabalho de Eisler.
A metáfora central é luminosa. O cálice simboliza culturas matrísticas, voltadas ao acolhimento, à nutrição, à vida que se renovam no ventre e no vínculo. É um recipiente sagrado que guarda e compartilha; é a taça que une, não a lâmina que separa. Em contrapartida, a espada representa as culturas patriarcais, fundadas na violência, na guerra e na exploração. A espada corta, fere, divide. É o símbolo da dominação que sustenta a crença de que só pela força se constrói um mundo melhor.
Durante trinta mil anos, as sociedades patriarcais nos ensinaram que a guerra e a exploração eram os motores do progresso. Esse conceito nasce do discurso de que a violência pode ser legitimada em macro ou micro escala. É a ideia do mais forte contra o mais fraco, do “olho por olho e do dente por dente”. A lógica é simples e brutal: se não posso explorar, eu guerreio para conquistar. E assim consolidamos a ideia de que dominar é a única forma legítima de nos relacionarmos. Mas Eisler nos lembra: isso não é destino, é escolha. E escolhas podem ser revistas.
O nascimento das perguntas humanas
Se voltarmos à pré-história, percebemos que a narrativa hostórico-social nasce de três perguntas fundantes: De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos?
Essas questões ecoam desde as pinturas rupestres até as filosofias contemporâneas. Não temos respostas definitivas. O que temos são narrativas, crenças, mitos. E esses mitos moldam a forma como nos relacionamos.
O fato incontornável que as primeiras sociedades puderam observar era simples: todos nós viemos da mulher. O vínculo entre ato sexual e gravidez era invisível ao olhar imediato. O tempo entre o coito e os sinais da gestação era longo demais para ser percebido. Por isso, os povos primitivos só podiam concluir uma coisa: a vida nasce da mulher, assim como todo animal nasce de sua mãe. Mas, como não era visível a relação entre coito e gravidez, as comunidades primitivas acreditavam na ideia de que a fecundação era um “ato dos deuses”, e, portanto, a mulher era o caminho pelo qual a divindade entrava na história humana. Tanto é que as narrativas das concepções divinas são comuns na história. As mais conhecidas são: o nascimento de Hércules, filho de Zeus com a mortal Alcmena; e o nascimento de Jesus, filho de Jeová com Maria. No entanto, há várias outras histórias semelhantes. Essa percepção fundou uma forma de organização relacional: a cultura matrística, baseada no acolhimento, no cuidado e na integração, tendo por centralidade a figura feminina.
Nessas culturas, havia luta, competição, conflitos, mas não havia a violência como princípio. Divergir não era destruir; disputar não era exterminar. O ventre materno era metáfora de comunidade: nele cabiam todos, sem distinção. Esse modelo ainda existe entre nós. Os jogos olímpicos, por exemplo, são expressões de competição, luta e disputa, mas não de inimizades ou violência.
A transição para a dominação
Com o tempo, a humanidade percebeu o papel masculino na concepção. O esperma passou a ser visto como a semente indispensável da vida. E a narrativa mudou: do ventre da mulher para a “semente” do homem. A sacralidade feminina foi sendo substituída pela supremacia masculina. E com ela nasceram estruturas patriarcais que subjugaram e extinguiram sociedades matrísticas inteiras.
Essa mudança não foi apenas biológica, foi política. A dominação masculina não se impôs pela persuasão, mas pela violência, pela criação de mitos aterrorizantes e pela manipulação da ignorância. Se uma colheita queimava, era porque a divindade masculina exigia submissão. Se uma doença devastava, era punição por não obedecer. Surgiu a figura dos intermediários, sacerdotes que não apenas cuidavam da espiritualidade, mas a usavam para impor medo e controle. Criou-se o inferno como ameaça e a salvação como barganha. A espada substituiu o cálice. O medo passou a reger o vínculo. A relação deixou de ser parceria e tornou-se hierarquia.
Quando penso no que significa viver em uma cultura patriarcal, vejo diante de mim um espelho que, por séculos, refletiu apenas um lado da humanidade. É como se tivéssemos aprendido a caminhar usando apenas uma perna: conseguimos nos mover, mas de forma manquitola, instável, sempre desequilibrada. A cultura patriarcal nos fez acreditar que a força, a dominação e a hierarquia eram os únicos instrumentos capazes de sustentar a vida em sociedade.
Essa cultura se estrutura em dois eixos principais: a guerra e a exploração. Se não é possível explorar, guerreia-se para conquistar e explorar depois. Ao longo da história, povos foram dominados, riquezas expropriadas, culturas inteiras sufocadas por esse modelo. A espada se tornou metáfora e prática: ela corta, divide, subjuga. Aprendemos a acreditar que sem espada não haveria ordem, progresso, futuro. Daí para o conceito de supremacia do homem, foi fácil. E dessa facilidade para se “legitimar” uma narrativa da “submissão” da mulher foi mais fácil ainda. Com isso “aceitamos” relações tóxicas, comportamentos abusivos. O feminicidio e a violência de gênero estão por todos os lados.
Mas o patriarcado não se limita a campos de batalha ou tratados políticos. Ele se infiltra no cotidiano. Está na maneira como famílias foram organizadas sob o mando do homem, no modo como religiões ergueram deuses masculinos guerreiros, na ideia de que obediência é mais importante que diálogo. Está na crença de que a violência é inevitável e até necessária. Crescemos naturalizando isso, como se fosse a ordem das coisas.
A cultura patriarcal, no fundo, é uma narrativa de poder. É a manipulação da ignorância para manter a dominação. Foi assim quando povos inteiros foram convencidos de que um deus vingativo exigia submissão sob pena de castigo e sacríficos. Foi assim quando se construiu o medo do inferno como ferramenta de controle. É assim ainda hoje, quando líderes se apresentam como salvadores da pátria, sustentando-se na lógica da força e da intimidação.
O preço dessa narrativa é alto. Perdemos a capacidade de nos indignar com o absurdo. Aceitamos fome em meio à abundância, exclusão em meio à tecnologia, guerras em meio a tantas alternativas de diálogo. É como se a cultura patriarcal tivesse anestesiado nossa sensibilidade, tornando normal o que deveria nos escandalizar.
O patriarcado nos ensina a ver diferenças como ameaças e não como riquezas. Ele nos faz acreditar que o outro só pode existir sob minha condição: ou se submete, ou é inimigo. A diversidade, que poderia ser um mosaico vivo de possibilidades humanas, é reduzida a fronteiras rígidas. Quem pensa diferente vira adversário; quem é vulnerável vira descartável.
Ao refletir sobre isso, percebo que a cultura patriarcal é como uma lente que distorce o real. Ao invés de enxergar o mundo como uma teia interdependente, ela o apresenta como um campo de batalha. Ao invés de percebermos a vida como dom compartilhado, passamos a vê-la como território a ser conquistado.
Desmontar essa lente não é fácil, porque crescemos dentro dela. Mas é necessário e urgente. Se quisermos um futuro sustentável, justo e humano, precisamos questionar a herança patriarcal que ainda orienta nossas escolhas. Precisamos reaprender a caminhar com as duas pernas: força e cuidado, razão e afeto, masculino e feminino, convivendo sem hierarquia. Só assim, talvez, possamos reencontrar o equilíbrio perdido e devolver à humanidade a capacidade de florescer em parceria, e não em dominação.
A perda da indignação
Eisler nos convida a observar como, nessa transição, perdemos a capacidade de nos indignar. Como explicar Hiroshima e Nagasaki? Como justificar o Holocausto? Que racionalidade pode sustentar tamanha barbárie? A cultura patriarcal, baseada na dominação, naturaliza absurdos e constrói o discurso de que “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. O intolerável se torna rotina. Aceitamos a exclusão, a fome, a exploração, como se fossem leis da natureza. E quando perdemos a capacidade de dizer “isso é absurdo”, nos tornamos cúmplices do silêncio que legitima a barbárie.
Rastros da cultura matrística
Quando mergulho no conceito de cultura matrística, percebo que não se trata apenas de uma forma de organizar a sociedade, mas de uma forma de sentir o mundo. É como se o coração fosse colocado no centro da vida comunitária, orientando gestos, decisões e vínculos. A cultura matrística nasce do reconhecimento de que a vida é um dom que brota do ventre e que deve ser cuidado como um tesouro coletivo.
Ao contrário da lógica da imposição, a matriz dessa cultura é o acolhimento. Não o acolhimento condescendente, mas aquele que nasce da certeza de que cada ser tem um lugar legítimo no tecido da vida. É como uma árvore: seus galhos se abrem em direções distintas, mas todos encontram alimento na mesma seiva. Nas comunidades matrísticas, a diferença não era ameaça, mas variedade de cores dentro de um mesmo quadro.
O eixo não estava no poder de submeter, mas no poder de nutrir. Nutrir a vida, os vínculos, a diversidade. Nessa perspectiva, não se precisava de intermediários que ditassem o medo; bastava a experiência cotidiana do cuidado para compreender a espiritualidade. A mãe que amamenta, o grupo que partilha a colheita, os anciãos que transmitem sabedoria: tudo isso formava uma rede de significados que fortalecia o sentido de pertencimento.
É claro que nessas sociedades também havia conflitos e disputas. Mas o conflito não era tratado como sentença de destruição, e sim como ocasião para recompor os laços. Penso nisso como um vaso de cerâmica: quando trinca, não é descartado, é reparado com cuidado. A vida coletiva era vista como esse vaso comum, que precisa ser preservado porque todos bebem dele.
A espiritualidade matrística também reflete esse horizonte. Não haviam deuses distantes, imponentes e punitivos, mas representações do sagrado ligadas à terra, à fertilidade, ao ciclo da vida. O sagrado não era usado para amedrontar, mas para celebrar. A morte não aparecia como condenação, e sim como retorno ao todo. A existência era entendida como círculo, não como linha de chegada.
Minha tradução dessa visão para o presente está gesto de abraçar. O abraço não elimina a diferença de altura, peso, idade ou origem, mas integra as diferenças em um espaço de proximidade. A cultura matrística é esse abraço social: nela cabem as tensões, mas sem expulsar; cabem as divergências, mas sem anular.
No nosso tempo, marcado por tantas urgências, recuperar a inspiração matrística é reconhecer que não há futuro possível sem cooperação. Significa redescobrir que a vida floresce mais quando é partilhada, e que o cuidado é força transformadora, não sinal de fraqueza. É admitir que somos todos viajantes de uma mesma travessia e que, sem confiança mútua, não chegaremos a lugar algum.
A cultura matrística, portanto, não é utopia distante. É memória viva e possibilidade concreta. É um convite para reorganizar nossas relações sob o signo do vínculo e não da hierarquia. Minha filha Thirza Reis usa uma metáfora muito sutil para isso. No seu livro BASTA[2], ela diz que a cultura matrística “é como acender uma lamparina em meio à noite: talvez sua luz não afaste toda a escuridão, mas torna possível enxergar uns aos outros e continuar caminhando juntos”.
Vestígios da cultura matrística ainda sobrevivem. Eisler nos mostra exemplos contemporâneos. As Olimpíadas, por exemplo: competimos, disputamos medalhas, mas não transformamos o outro em inimigo. No fim, atletas se abraçam, reconhecendo-se como parte de uma mesma humanidade. É o espírito do jogo, não da guerra. Outro vestígio é a relação de muitas mães com seus filhos: acolhimento sem distinção, cuidado sem cálculo. Esses são ecos de um modo de ser que insiste em permanecer.
Patriarcal x Matrístico: dois modos de organizar a vida
A cultura patriarcal estrutura-se na lógica da dominação. Seu alicerce é a crença de que a força garante ordem e que a hierarquia é necessária para manter a sociedade unida. Guerra e exploração tornam-se instrumentos de progresso, e o outro é visto como ameaça ou recurso a ser controlado. A diversidade é percebida com desconfiança, e a diferença tende a ser anulada ou subjugada. O sagrado assume feições punitivas, legitimando a obediência pelo medo. Nessa lente, a vida é campo de batalha, e a vitória de uns exige a derrota de outros.
Em contraste, a cultura matrística organiza-se pelo cuidado e pela integração. O vínculo é o centro: nutrir, proteger, celebrar e reparar são gestos que mantêm a comunidade viva. O conflito não é sentença de exclusão, mas ocasião para recompor laços. O sagrado é próximo, ligado à fertilidade, à terra, ao ciclo da vida. A diversidade é vista como riqueza, e a morte não é castigo, mas retorno ao todo.
Enquanto o patriarcado corta como espada, o matrístico acolhe como cálice. Um modelo fragmenta, o outro integra. A escolha entre eles revela não apenas estruturas políticas, mas visões de mundo. O que lhes convido a fazer é aprender com ambos e a construir um novo horizonte.
A Cultura da Parceria: o horizonte possível
Creio que não precisamos ficar presos entre os extremos da espada patriarcal e do cálice matrístico. Podemos escolher uma terceira via: a cultura da parceria. Nela, não se trata de eliminar a força ou negar o cuidado, mas de integrá-los em uma nova forma de convivência.
A parceria reconhece que a vida é uma teia de interdependências. Cada pessoa é singular, mas essa singularidade ganha sentido quando colocada em relação com os outros. Diferente do patriarcado, não há hierarquia de dominação; diferente do matrístico, não há idealização da harmonia absoluta. O que existe é a construção cotidiana de equilíbrio, feita de respeito, reciprocidade e dignidade compartilhada.
Essa cultura valoriza a educação não violenta, que desperta talentos em vez de padronizar. Valoriza redes de ajuda, que sustentam a vida coletiva com solidariedade e não com exploração. Valoriza a diversidade como fonte de criatividade, e não como ameaça.
A parceria é, acima de tudo, uma escolha. É decidir que a paz não é ausência de conflito, mas presença de vínculos fortes o suficiente para enfrentar tensões sem romper. É o horizonte que nos convida a trocar a lógica do medo pela lógica do cuidado e, assim, escrever um futuro mais humano.
Mas o que significa viver matrísticamente hoje?
Viver matrísticamente não é voltar à pré-história. É atualizar valores de respeito, parceria, cuidado amoroso, sustentabilidade e inclusão. É reconhecer que diferenças não são ameaça, mas riqueza. É trocar a lógica do “ou eu ou você” pela lógica do “eu com você”.
Para isso, proponho três caminhos práticos:
- Educação não violenta. A escola que massifica é como um moedor de carne: diferentes cortes, alcatra, filé, pernil, entram distintos na máquina e saem todos iguais, transformados em carne moída. Essa homogeneização mata a singularidade. Precisamos de uma educação que reconheça talentos únicos, que cuide das diferenças em vez de esmagá-las. Educar não é padronizar, é cultivar.
- Redes de ajuda. Somos autônomos, mas ninguém é autossuficiente. Eu posso estar aqui escrevendo, mas alguém garante a energia elétrica, alguém colhe os alimentos que comi, alguém pavimenta a rua por onde andei, alguém me ajudou a chegar até aqui. Somos parte de uma grande rede de interdependência. Reconhecer isso desperta gratidão e responsabilidade. É como perceber que cada fio invisível sustenta uma teia: ao cuidar de um, sustento a todos.
- Revisão da racionalidade. A razão que justifica bombas e genocídios não é verdadeira razão, é delírio. Precisamos resgatar os afetos como parte do pensar. Razão sem afeto é cálculo frio; afeto sem razão é impulso cego. Só juntos podem gerar sabedoria. Acolher a emoção como parte legítima da vida é abrir espaço para soluções pacíficas.
A paz como escolha cotidiana
Eisler insiste: a paz não é política de Estado, é escolha pessoal. Gandhi mostrou que a revolução pode ser não violenta. Jesus escolheu a paz mesmo diante da cruz. A paz não é ausência de conflito, mas decisão de não responder com violência. É como um rio que, diante da pedra, não a quebra, mas a contorna. A água não deixa de ser água; segue fluindo até o mar.
Podemos cultivar essa paz em gestos simples: aprender a conversar sem agressão; reconhecer o outro como legítimo em sua diferença; praticar ajuda não monetizada, baseada na necessidade e não no mérito; escolher não se deixar contaminar pela lógica da violência.
A convivência pacífica nasce quando descubro que ninguém pode me agredir sem meu consentimento interior. Posso rejeitar a violência com coração aberto, como quem segura a espada do outro e a transforma em arado.
O desafio do nosso tempo
Vivemos um século de paradoxos. De um lado, temos tecnologia que nos conecta instantaneamente; de outro, seguimos isolados em bolhas de intolerância. Produzimos alimento para todos, mas aceitamos a fome de milhões. Construímos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos desarmar o coração. É como se tivéssemos avançado no poder de multiplicar, mas regredido na sabedoria de compartilhar.
A cultura patriarcal nos ensinou a confundir força com grandeza, dominação com ordem, medo com obediência. O desafio agora é reaprender outra gramática: a da parceria, da ternura, da reciprocidade. Eisler chama isso de “cultura da parceria”.
Eu gosto de pensar como uma música em que cada instrumento é diferente, mas juntos criam harmonia. A diversidade não ameaça, enriquece.
Um fecho reflexivo
Por isso tudo, quero enfatizar o que estou propondo. Quando me aproximo do pensamento de Riane Eisler, encontro a chave que abre novos horizontes para compreender a vida em sociedade e justificar o que creio e defendo: o conceito de parceria. Não de uma parceria como um arranjo estratégico ou como um contrato entre partes que buscam benefícios mútuos. Falo de algo mais profundo, quase ontológico: uma maneira de organizar a vida que se opõe radicalmente ao modelo de dominação.
Por milhares de anos, fomos ensinados a acreditar na violência, na hierarquia e no controle como inevitáveis. Herdamos a lógica da espada: quem pode mais, manda; quem não pode (ou tem juízo), obedece. Essa visão estruturou nossas instituições, nossas economias e até nossas famílias. Mas quero crer que existe outro caminho: o caminho da cultura matrística, do cálice, que simboliza a nutrição, o cuidado e a partilha. Nesse contexto o conceito de parceria nasce exatamente na contra cultura, nos mostrando que não precisamos escolher entre ser dominadores ou dominados, podemos escolher ser parceiros.
Parceria, para mim, significa reconhecer que a vida é uma rede interdependente. É entender que a minha dignidade está ligada à dignidade do outro, que o meu florescimento só se cumpre quando o outro também floresce. É como uma orquestra: cada instrumento é diferente, com seu timbre e sua potência, mas só juntos produzem harmonia. Quando um tenta se impor sobre os demais, o resultado é ruído. A parceria é a música que só existe quando há escuta, reciprocidade e cuidado.
Ao longo da história, as culturas matrísticas viveram sob esse paradigma da parceria. Não eram sociedades perfeitas, mas estruturavam-se em torno de valores de respeito, inclusão e acolhimento. Não se tratava de negar conflitos, mas de resolvê-los sem violência como princípio. Essa herança nos lembra que o modelo da dominação não é natural nem inevitável: é apenas uma escolha histórica.
Trazer o conceito de parceria para os dias de hoje é um desafio urgente. Em um mundo que ainda insiste em medir valor pelo poder de dominar, falar de parceria soa quase revolucionário. É dizer que a verdadeira grandeza não está em impor, mas em compartilhar; não em vencer, mas em conviver. É afirmar que paz não é ausência de conflito, mas a ausência de confronto e na escolha consciente de viver sem violência.
Na prática, parceria se traduz em pequenas e grandes ações: educar de forma não violenta, construir redes de ajuda, respeitar as diferenças, aprender a conversar sem agredir. É decidir, todos os dias, que a vida vale mais quando é partilhada. É optar pelo cálice em vez da espada.
No fundo, parceria é um ato de fé: fé de que a humanidade pode aprender a se reconhecer não como inimigos em guerra, mas como companheiros de jornada. E é também um ato de coragem: coragem de desarmar a mão e abrir o coração. A realidade atual de nossa história é um alerta mais que urgente para que comecemos essa travessia. Eu aceito o convite, porque acredito que o futuro só será possível se for um futuro de parceria.
O cálice e a espada continuam diante de nós. Podemos escolher qual símbolo guiará nossas relações. A espada é rápida, cortante, sedutora. O cálice exige paciência, cuidado, tempo. A espada promete vitória, mas deixa rastros de sangue. O cálice não promete domínio, mas oferece comunhão. Entre cortar e nutrir, entre dividir e integrar, está a encruzilhada da humanidade.
A história nos mostrou o poder destrutivo da espada. Talvez seja hora de experimentar a sabedoria do cálice. Se o mundo for uma mesa, a espada a corta em pedaços; o cálice a reúne em torno do vinho partilhado. Se o mundo for um corpo, a espada o fere; o cálice o cura. Se o mundo for uma canção, a espada silencia; o cálice canta.
Escolher o cálice é escolher a vida. É olhar para o outro não como ameaça, mas como parte da mesma travessia. É aceitar que não somos donos do futuro, mas guardiões da possibilidade de futuro. É abrir espaço para que a próxima geração encontre não ruínas, mas sementes.
Ao trocar a lâmina pelo gesto, o medo pelo cuidado, a dominação pela parceria. Que sejamos capazes de transformar a violência em memória e a paz em prática. Que o cálice volte a ocupar nossas mãos, não como nostalgia de um passado perdido, mas como profecia de um futuro ainda possível.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025
[1] Riane Tennenhaus Eisler (Viena 1931/xx) sobrevivente do nazismo, é uma acadêmica austríaca, historiadora cultural, escritora e ativista social.
É presidente do centro para “Estudos sobre Parceria”, na Califórnia/USA.
[2] REIS, Thirza; BASTA; Ed. Literare Books, SP/SP, 2025 – thirzar@gmail.com

Sempre que penso sobre a força dos relacionamentos humanos, volto ao poder de uma atitude aparentemente simples, mas profundamente transformadora: a escuta ativa. Escutar o outro é mais do que captar palavras; é entrar em sintonia com sua experiência, acolher suas emoções, perceber seus silêncios. É um gesto que, na superfície, pode parecer óbvio, mas que, em sua profundidade, revela-se como um dos pilares da convivência ética, da inteligência relacional e da gestão de vínculos duradouros.
Falo na primeira pessoa porque esse tema não é teórico, é visceral. Tenho experimentado, em minha vida e em minha prática profissional, os efeitos da escuta ativa como ferramenta de transformação individual e coletiva. Sinto que, quando escuto ativamente, eu não apenas compreendo o outro; eu me deixo tocar por ele. Isso me lembra Martin Buber, filósofo do diálogo, que dizia que o encontro autêntico se dá quando nos dispomos ao “Eu-Tu”, e não ao “Eu-Isso”. Na escuta ativa, coloco o outro no centro da relação, não como objeto de análise, mas como sujeito de dignidade.
A psicologia humanista, especialmente na obra de Carl Rogers, nos lembra que a escuta ativa é condição essencial para que o outro possa florescer. Rogers falava da “consideração positiva incondicional” como abertura para que o outro se revele sem medo de julgamento. Eu me identifico profundamente com isso. Quando escuto ativamente, sinto que ofereço ao outro uma espécie de solo fértil, onde sua palavra pode brotar sem ser arrancada ou sufocada. Por outro lado, quando percebo que alguém é capaz de escutar o outro, as distâncias se encurtam, o diálogo floresce, as soluções são encontradas, os acordos são feitos e os resultados desejados aparecem com mais vigor e perenidade.
Escutar não é apenas de uma técnica de comunicação. A escuta ativa é, para mim, uma postura existencial. É decidir estar presente no aqui e agora, com atenção plena, com empatia e respeito. É a antítese do automatismo que marca tantas conversas cotidianas, onde falamos mais para responder do que para compreender.
O filósofo Hans-Georg Gadamer, em sua hermenêutica, dizia que compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. Essa fusão só acontece se eu estiver disposto a sair de meu próprio horizonte para me abrir ao do outro. A escuta ativa é justamente esse movimento de deslocamento: eu amplio meus limites para que o horizonte do outro encontre espaço em mim.
Muitas vezes, penso que escutar ativamente é como abrir as janelas de uma casa que há muito tempo está fechada. O ar novo entra, a luz se espalha, e eu descubro que havia cantos esquecidos. Assim também é na relação: a escuta areja, renova, expande.
Mas, por que temos tanta dificuldade em escutar o outro ou os outros? Escutar os outros deveria ser um gesto natural, mas na prática é um dos atos mais difíceis que realizamos. Muitas vezes carregamos conosco a ilusão de que estamos escutando, quando na verdade apenas esperamos a pausa alheia para introduzir a nossa própria fala. Esse comportamento nasce de diferentes causas. Uma delas é o ego inflado, que não aceita ser deslocado do centro da cena. O desejo de protagonismo nos leva a disputar espaço em cada conversa, como se o diálogo fosse uma arena em que importa mais vencer do que compreender.
Há também a influência da ansiedade e da pressa que marcam nossa época. Vivemos em um ritmo que não tolera o silêncio e que exige respostas rápidas. Escutar, no entanto, exige tempo, paciência e disposição para permanecer diante da palavra do outro sem antecipar conclusões. Muitas vezes a pressa nos leva a interromper frases, a completar pensamentos alheios, a reduzir a complexidade do que está sendo dito apenas para que possamos voltar a falar.
Outro fator relevante é a ausência de uma cultura de escuta. Desde a infância somos ensinados a falar, argumentar, defender ideias, apresentar trabalhos. A oratória é valorizada, mas a escuta raramente é cultivada como habilidade essencial. Crescemos em ambientes em que escutar não é sinal de maturidade, mas de passividade, como se o silêncio fosse sinônimo de submissão. Assim, não aprendemos a sustentar com dignidade o lugar de receptores da palavra alheia.
Há ainda o medo de se deixar afetar. Escutar verdadeiramente é perigoso, porque nos coloca diante da dor, da diferença e da vulnerabilidade do outro. Quem escuta com profundidade pode ser transformado, pode ter de rever certezas, pode perceber fissuras em suas próprias convicções. Muitos evitam a escuta justamente para não enfrentar esse espelho. É mais seguro manter-se na bolha das próprias opiniões do que permitir que a alteridade nos desestabilize.
Além disso, cada um carrega consigo uma multidão de ruídos internos. Preocupações, preconceitos, julgamentos e ansiedades funcionam como filtros que distorcem ou abafam o que o outro diz. Mesmo presentes fisicamente em uma conversa, às vezes estamos ausentes por dentro, mergulhados em nossas vozes internas. Essa sobreposição de pensamentos nos impede de receber plenamente a mensagem alheia.
O contexto também interfere. Em ambientes hierárquicos ou tóxicos, escutar é visto como fraqueza. Quem detém poder sente que precisa falar para manter sua autoridade, enquanto quem ocupa posições subordinadas acredita que não será escutado de qualquer forma. A estrutura da organização inibe a prática da escuta e reforça a lógica do monólogo.
As consequências dessa dificuldade são muitas e profundas. A primeira delas é o empobrecimento das relações. Sem escuta, os vínculos se tornam superficiais, reduzidos a trocas utilitárias. Pessoas convivem lado a lado, mas não se encontram de verdade. Cada uma vive em seu universo particular, sem ponte com o mundo interno do outro.
Outra consequência frequente é o aumento dos conflitos. Muitas divergências não nascem de grandes diferenças, mas de pequenos mal-entendidos que poderiam ser evitados se houvesse uma escuta atenta. Quando não escutamos, interpretamos mal, alimentamos suposições e reforçamos ressentimentos. O diálogo se rompe e o que poderia ser uma diferença criativa se converte em disputa hostil.
A falta de escuta também gera isolamento emocional. Aquele que nunca é escutado tende a se retrair, a acreditar que sua voz não importa, que sua existência não é reconhecida. Esse silêncio imposto pelo desinteresse do outro é uma das formas mais cruéis de solidão. Ser ignorado mina a autoestima e enfraquece a confiança básica de que valemos a pena.
Nas organizações, a ausência de escuta corrói a confiança. Uma liderança que não escuta sua equipe perde credibilidade. As pessoas deixam de se engajar, escondem problemas, evitam trazer ideias. Em contextos mais amplos, como no espaço social ou político, instituições que não escutam seus públicos tornam-se irrelevantes, incapazes de dialogar com as transformações do tempo.
Também há um impacto direto na capacidade de inovar. Quando não escutamos clientes, colaboradores, familiares ou parceiros, deixamos escapar sinais importantes do ambiente. Ficamos presos em nossas próprias narrativas, repetindo padrões, sem perceber oportunidades de mudança. A escuta ativa, ao contrário, é fonte de adaptação e de criação, porque revela perspectivas que sozinhos jamais alcançaríamos.
Talvez a consequência mais profunda, no entanto, seja o empobrecimento humano. Quem não escuta fecha-se em suas certezas, priva-se da riqueza do outro, perde a oportunidade de aprender e de crescer. A escuta é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que acolhe, também ensina. Negar-se a escutar é recusar-se à transformação que todo encontro humano traz.
No fundo, a dificuldade em escutar revela o medo de deixar o outro existir em nós. É como se houvesse receio de que a palavra alheia ocupe espaço demais, ou que sua dor se infiltre em nossas frestas. Mas quando não escutamos, pagamos caro: relações frágeis, conflitos recorrentes, isolamento, falta de confiança e estagnação. Aprender a escutar, portanto, não é apenas um gesto de bondade, mas um imperativo de sobrevivência relacional. É nesse exercício que se decide a qualidade das nossas conexões e, em última instância, a qualidade da nossa própria humanidade.
Quando penso em gestão de relacionamentos, seja no âmbito pessoal, profissional ou institucional, vejo que a escuta ativa é um divisor de águas. Empresas, famílias, comunidades, todas são atravessadas pela qualidade de suas conversas. E é pela escuta que construímos confiança.
Confiança não nasce de palavras bonitas, mas da experiência reiterada de ser escutado e respeitado. Quando uma equipe percebe que sua liderança escuta genuinamente, abre-se um campo de reciprocidade. As pessoas sentem-se autorizadas a trazer suas inquietações, suas ideias, suas vulnerabilidades. E é nesse espaço que surge a inovação, a coesão e a corresponsabilidade.
Lembro-me de Anthony Giddens, sociólogo, que fala da reflexividade da vida moderna: vivemos em um mundo onde precisamos constantemente justificar nossas ações e decisões diante dos outros. Nesse contexto, a escuta ativa não é luxo, mas necessidade. Só por meio dela conseguimos sustentar relações transparentes e evitar que a comunicação se torne apenas formalidade vazia.
Na prática da Inteligência Relacional, percebo que escutar é um dos modos mais potentes de cuidar. Escutar não é passividade, é ato ativo de sustentação do vínculo. Quando escuto, assumo responsabilidade compartilhada: reconheço que o outro existe, que tem voz, que sua narrativa é tão legítima quanto a minha. Isso cria um pacto silencioso de dignidade.
A psicologia contemporânea reforça o impacto da escuta ativa no bem-estar emocional. Estudos da psicologia positiva apontam que ser escutado é uma das experiências mais gratificantes que alguém pode ter. O simples ato de narrar uma dificuldade, e perceber que o outro realmente escutou, já diminui a carga de estresse, amplia a resiliência e fortalece a autoestima.
Também na terapia cognitivo-comportamental, percebe-se que a qualidade da escuta do terapeuta é decisiva para que o paciente consiga reestruturar suas crenças. Sem escuta, não há espaço para a reorganização da narrativa pessoal. E mesmo em contextos de mediação de conflitos, a escuta ativa se revela essencial: é quando as partes se sentem ouvidas que se abre a possibilidade de diálogo e resolução.
Na minha vivência, como conselheiro corporativo, mentor e psicanalista, noto como muitas vezes as pessoas não pedem soluções, mas apenas espaço para serem escutadas. A escuta, nesses casos, já é terapêutica. É como se o simples fato de alguém sustentar meu discurso com atenção amorosa já fosse suficiente para que eu me reorganize por dentro.
Penso, por exemplo, em reuniões de trabalho onde alguém propõe algum tema difícil, ou abre uma conversa delicada, traz um tema controverso ou aponta uma dificuldade. Muitas vezes, ele não busca um manual pronto de respostas. Busca reconhecimento. Busca sentir-se visto. Quando escuto sem interromper, sem apressar, percebo que sua própria fala já contém as sementes da solução.
Do ponto de vista filosófico, escutar ativamente é um exercício ético. Emmanuel Lévinas fala da alteridade (qualidade do que é diferente e a capacidade de se colocar no lugar do outro), como fundamento da ética: é o rosto do outro que me convoca à responsabilidade. Escutar é atender a esse chamado. É reconhecer que minha liberdade encontra limite no direito do outro de existir plenamente.
Essa dimensão ética da escuta ativa é crucial na gestão de relacionamentos. Pois gerir não é manipular, é cuidar. Não é impor, é dialogar. Não é apenas conduzir pessoas para metas, mas criar ambientes em que a dignidade seja preservada. E a dignidade começa pelo reconhecimento da voz.
Quando escuto, ergo uma ponte entre o eu e o outro. Uma ponte que não apaga diferenças, mas que as torna fecundas. Escutar é aceitar que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. É por isso que digo: a escuta ativa é uma política da convivência inteligente.
Na sociologia, autores como Jürgen Habermas destacam a centralidade da comunicação para a vida democrática. Habermas fala da “ação comunicativa” como horizonte de uma sociedade baseada na razão dialógica. A escuta ativa é a expressão prática desse ideal: sem escuta, não há deliberação democrática, não há comunidade viva, não há coesão social.
Se ampliarmos isso para sistemas complexos (famílias etc.), e organizações corporativas e sociais, percebemos que onde não há escuta de membros, sócios, colaboradores ou clientes, as relações tornam-se frágeis, autorreferenciais, incapazes de se adaptar. Se não há escuta entre os líderes e diretores, a situação fica mais complexa ainda; torna-se “cabo de guerra”, onde os interesses individuais sobrepõem-se às demandas ou necessidades coletivas. Já aquelas que cultivam uma escuta permanente constroem resiliência, porque captam sinais, ajustam rumos e mantêm vínculos de confiança.
Eu vejo que, em tempos de excesso de informação, a escuta ativa se torna estrategicamente necessária. Recebemos e construímos mensagens e estímulos intensos e constantemente, mas nem sempre nos sentimos escutados. Escutar, nesse cenário, é contracultural: é resistir à lógica da pressa, da resposta imediata, da superficialidade.
Na minha trajetória, percebo que a escuta ativa é também um exercício de autoconhecimento. Para escutar o outro, preciso primeiro calar minhas próprias vozes internas. Preciso aquietar meu julgamento, minha ansiedade de resposta, minha ânsia de controle. Escutar é aprender a esperar.
Essa espera, por vezes desconfortável, é também fecunda. Ela me ensina a paciência, a humildade e a coragem de não ter todas as respostas. Aprendo que escutar é um ato de fé: acreditar que o outro tem algo a dizer que pode me enriquecer, mesmo quando não concordo.
Além disso, a escuta ativa me conecta ao sentido da reciprocidade. Quando sou escutado, sinto-me valorizado; e quando escuto, valorizo o outro. É nesse movimento de troca que se edifica a confiança.
Na gestão de equipes ou de grupos, a escuta ativa se traduz em liderança mais humana e eficaz. Líderes que escutam conseguem captar as nuances do ambiente, identificar conflitos latentes, reconhecer talentos ocultos. Mais ainda: líderes que escutam tornam-se referenciais de confiança.
Eu mesmo, em experiências profissionais, já vi equipes e grupos se desestruturarem por ausência de escuta. Palavras ditas em vão, reuniões em que ninguém se sentia escutado, decisões tomadas unilateralmente. O resultado era desmotivação, distanciamento, perda de energia, além de brigas e discussões sem sentido.
Por outro lado, já presenciei transformações impressionantes quando a escuta foi cultivada. Ambientes tensos se tornaram mais leves, rivalidades foram administradas, histórias entendidas, pessoas antes retraídas passaram a contribuir, soluções criativas emergiram do simples fato de alguém ter se sentido escutado.
É curioso notar como a escuta ativa também é motor de inovação. Muitas vezes, pensamos que inovar é apenas criar algo inédito. Mas, na prática, inovar é perceber de modo novo aquilo que já existe. E isso só é possível se escutamos com atenção.
Escutar clientes, escutar diferentes, por exemplo, é fonte inesgotável de insights. Escutar colaboradores revela potenciais ainda não explorados. Escutar parceiros abre portas para colaborações inéditas.
Na era digital, em que tanto se fala de big data e inteligência artificial, acredito que a escuta humana, genuína, continua sendo insubstituível. Pois não há algoritmo que capture o silêncio carregado de sentido, ou o tremor da voz que revela vulnerabilidade.
Desafios da escuta ativa:
Não romantizo a escuta ativa. Sei que ela exige disciplina, presença e, muitas vezes, coragem. Escutar pode ser doloroso, porque o que o outro diz nem sempre é o que eu gostaria de escutar. Pode ser frustrante, porque demanda tempo em um mundo acelerado. Pode ser desafiador, porque me confronta com minhas próprias limitações.
Mas é justamente nesses desafios que reside sua potência. Ao escutar, coloco-me em posição de vulnerabilidade: reconheço que não controlo tudo, que dependo do outro para compreender melhor a realidade. Esse reconhecimento é libertador.
Gosto de pensar a escuta ativa como uma arte. Uma arte relacional, que mistura técnica, sensibilidade e ética. Uma arte que se aprende praticando, errando, recomeçando. Uma arte que nunca se esgota, porque cada encontro é único.
Na prática, escutar ativamente é como afinar um instrumento musical. Preciso ajustar minhas cordas internas (atenção, paciência, empatia), para que a melodia do encontro soe harmônica. E, quando isso acontece, sinto que o relacionamento ganha nova densidade.
Lembro-me de uma situação concreta em que um gestor empresarial enfrentava altos índices de rotatividade em sua equipe. Havia tentado aumentar salários, criar bônus, melhorar a infraestrutura. Nada parecia resolver. Quando nos sentamos para refletir, percebemos que o problema era simples, mas profundo: os colaboradores não se sentiam escutados.
Iniciamos então um processo de encontros de escuta ativa. Em vez de reuniões apenas para repassar tarefas, criamos espaços para que cada voz fosse ouvida. Aos poucos, o clima organizacional mudou. O índice de rotatividade caiu, e os próprios funcionários relataram sentir-se mais motivados.
Outro caso, em contexto comunitário, envolveu um grupo em conflito por diferenças religiosas. A tensão era tão grande que já não havia diálogo. Foi pela escuta ativa, mediada com paciência, que surgiram narrativas comuns: todos, no fundo, desejavam segurança para seus filhos, dignidade em suas vidas e respeito às suas crenças. Essa descoberta partilhada foi possível apenas porque alguém decidiu escutar. Esses exemplos me confirmam: a escuta ativa não é retórica. É prática concreta de transformação.
Vivemos hoje em um ambiente em que a comunicação é acelerada por plataformas digitais. Mas, paradoxalmente, a escuta verdadeira parece cada vez mais rara. Nos aplicativos de mensagem, respondemos sem ler com atenção; nas redes sociais, interagimos apenas com fragmentos.
Acredito que a escuta ativa precisa se reinventar nesse cenário. Precisa incluir pausas, feedbacks mais conscientes, tempos de silêncio mesmo em ambientes virtuais. Quando escrevo uma mensagem e recebo uma resposta que mostra que o outro realmente entendeu, sinto o mesmo alívio que numa conversa presencial.
Na gestão de relacionamentos digitais, a escuta ativa é antídoto contra a superficialidade. É ela que distingue um atendimento robótico de uma relação humanizada.
Para resumir tudo o que disse, eu afirmo: a escuta ativa é um caminho de humanização. É ela que dá corpo ao amor como força criadora, que sustenta o dever como pacto de reciprocidade, que transforma o medo em guardião da vida, que orienta a ira para a defesa da dignidade.
Na gestão de relacionamentos, a escuta ativa é o que impede a fragmentação e favorece a integração. É o que transforma grupos em comunidades, equipes em coletivos criativos, organizações em organismos vivos.
Escutar, no fim das contas, é uma escolha. Uma escolha por estar presente, por reconhecer o outro, por apostar no diálogo. É um ato de fé na palavra e no silêncio, na vulnerabilidade e na força, na singularidade e na interdependência.
Assim, sigo aprendendo a escutar. E cada vez que escuto, renovo minha convicção de que não há inteligência mais poderosa do que a relacional. Pois é ela que nos lembra, sempre, que ninguém se humaniza sozinho.
Pense e reflita sobre isso.
HomeroReis.
Curitiba, PR, setembro/25


Reflexões sobre Coerência, Relações e Sentido©[1]
Quando utilizo a expressão “esquizofrenia organizacional”, não me refiro a um diagnóstico clínico, mas a uma metáfora poderosa para descrever o desencontro entre o que se proclama e o que se pratica. É um hiato que separa valores anunciados de condutas efetivas; um descompasso que se manifesta tanto em instituições quanto em pessoas. No fundo, é a incoerência como modo de existência: uma vida em que se defende a ética no discurso e se pratica a transgressão nos bastidores, em que se fala de cuidado mas se age com descaso, em que se promete inclusão mas se reproduz exclusão. Essa incoerência, embora muitas vezes silenciosa e imperceptível no início, vai corroendo os alicerces da confiança, minando a credibilidade e desestruturando os vínculos que sustentam toda forma de convivência. Como se isso não bastasse, a esquizofrenia organizacional bloqueia as ações de longo prazo, minando o propósito das instituições. Isso porque constrói uma agenda oculta. Coisas são ditas “nos bastidores” e não sustentadas na vida pública; onde “sinceridade” é confundida com agressividade, questões pessoais disfarçados de “compromissos”, solidariedade encobrindo conflitos de interesse.
A esquizofrenia, em seu conceito técnico, é um transtorno mental, marcado por uma profunda dissociação entre percepção, pensamento, emoção e comportamento. Quem vive com essa condição experimenta uma ruptura na integração da realidade: acredita em coisas que não existem, ideias que não encontram base no mundo objetivo, sente afetos que não se ajustam às circunstâncias. Suas consequências traduzem um empobrecimento da vida emocional e social. A esquizofrenia é antes de tudo uma fragmentação da percepção, da razão, da afetividade e da conduta.
Quando transporto essa conceituação para o universo das organizações, encontro um paralelo inquietante. Vejo instituições que, como sujeitos em sofrimento psíquico, vivem uma cisão interna entre o que percebem, dizem, o que sentem e o que fazem. O discurso institucional, como um delírio socialmente aceito, anuncia valores elevados: ética, sustentabilidade, inclusão, bem-estar. Mas a prática cotidiana revela outra realidade, muitas vezes contraditória: ciúmes, invejas, comportamento “bate-assopra”, exploração de pessoas, descaso ambiental, exclusão velada, sobrecarga de trabalho. É como se a organização tivesse suas próprias alucinações, vendo-se como algo que não é, projetando uma imagem que não se sustenta na experiência real de quem a habita.
Nesse sentido, a esquizofrenia organizacional não é apenas incoerência. É uma ruptura do vínculo entre palavra e gesto, entre intenção e ação, entre identidade proclamada e vida concreta. Tal como no indivíduo em sofrimento, a organização perde a unidade de seu “eu” coletivo.
Costumo dizer que essa esquizofrenia é como uma rachadura em uma grande parede. No começo, quase invisível, não incomoda. Mas, com o tempo, se amplia, e toda a estrutura começa a se fragilizar. Uma organização pode continuar erguida por algum tempo, sustentada por aparências, slogans ou marketing, mas inevitavelmente essa rachadura se tornará visível e colocará tudo em risco. O problema não é apenas institucional; ele se infiltra nas relações entre as pessoas que compõem a organização. Cada líder ou colaborador, cada cliente, cada fornecedor sente, mesmo que inconscientemente, o peso da incoerência.
Tenho acompanhado organizações que falam de resultados e futuros com entusiasmo em seus relatórios anuais, mas cujas práticas diárias revelam desperdício, poluição e desordem na gestão. Outras que proclamam a diversidade como bandeira, mas mantêm em seus conselhos e diretorias apenas perfis homogêneos, fechados à diferença. Propósitos louváveis e práticas corrosivas. Vejo empresas que se dizem defensoras da ética, mas convivem naturalmente com pequenas corrupções cotidianas, justificadas em nome da sobrevivência do negócio. Também encontro instituições que defendem publicamente o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas que esperam que seus colaboradores se sacrifiquem em jornadas intermináveis, respondendo e-mails de madrugada ou abrindo mão de finais de semana.
O curioso é que muitas vezes essa incoerência não nasce da má-fé, mas de um conjunto de concessões aparentemente inocentes. Surge quando se diz: “vamos abrir uma exceção só desta vez”, “todos fazem assim, não podemos ficar para trás”, “precisamos bater a meta a qualquer custo”. Essa repetição de pequenas justificativas acaba criando uma cultura em que o discurso e a prática se divorciam. O resultado é uma vida organizacional esquizofrênica: proclama-se um valor para fora, pratica-se outro para dentro. Mas o pior da esquizofrenia organizacional é a dificuldade das pessoas de conversarem amigavelmente sobre as “coisas que discorrem”. Tudo acaba sendo um grande “ringue” de exercício do poder, tentativa de manipulação, ameaças veladas.
As consequências são devastadoras. A confiança se desfaz, e sem confiança não há vínculo que sobreviva. A motivação se dilui, porque ninguém se sente mobilizado por discursos vazios. Os conflitos internos aumentam, porque os valores deixam de ser referência compartilhada e passam a ser apenas retórica. A reputação, que leva anos para ser construída, pode ser destruída rapidamente quando incoerências vêm à tona. Mas talvez a consequência mais dolorosa seja a perda de sentido: quando uma pessoa ou organização deixa de alinhar discurso e prática, perde também a razão pela qual existe, porque os valores deixam de ser bússola e se tornam apenas enfeite.
A origem dessa esquizofrenia é multifacetada. Na maior parte das vezes ela nasce da liderança. Um líder incoerente, que não encarna os valores que proclama, cria descrédito em cascata. Mas também pode nascer de falhas de comunicação, quando mensagens se perdem e a prática vai em direção oposta ao discurso. Outras vezes é fruto do excesso de foco em resultados, em que o número vale mais que a dignidade. Há também a cultura da aparência, que prioriza a imagem externa e descuida da prática interna, criando um teatro de valores que nunca se tornam realidade. Em muitos contextos, a causa é ainda mais sutil: o medo do conflito. As pessoas percebem incoerências, mas calam-se, receosas de desagradar ou de colocar em risco sua posição. O silêncio, nesse caso, se torna cúmplice da fragmentação. Mas também há o caso dos “ultra comprometidos”; ou seja, pessoas que se julgam detentores das “verdades do negócio” e, em nome disso, perdem a elegância e o trato cortes com os demais.
Superar a esquizofrenia organizacional exige coragem e humildade. Coragem para enfrentar-se a si mesmo em um processo de autoconhecimento, como também para enfrentar dilemas éticos e para recusar atalhos convenientes que traem os valores fundamentais. Humildade para admitir erros, assumir vulnerabilidades e abrir espaço para conversas sinceras. A coerência não se constrói com discursos apenas, mas com gestos cotidianos, às vezes simples, mas sempre consistentes. Um pedido de desculpas sincero pode reconstruir mais confiança do que uma campanha de marketing milionária. Uma decisão difícil, tomada em nome de um valor ético, pode inspirar mais lealdade do que qualquer incentivo financeiro. A competência de atuar em grupo, buscando o consenso, vale mais do que a arbitrariedade de uma ação isolada, ainda que legítima. Entendendo que às vezes “posso fazer, mas não devo”. Esse discernimento nos conduz à saúde organizacional.
Nesse ponto, percebo como a Inteligência Relacional se apresenta como um verdadeiro antídoto contra a esquizofrenia. Ela nos lembra que o valor de nossas ações não está apenas no que pretendemos, mas no que o outro percebe, sente e experimenta em contato conosco. Não refere a como atuo na minha “boa vontade”, mas como o outro percebe isso e como o “meu modo de ser” impacta os outros. Somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo efeito que causamos. Isso significa que não basta ter boas intenções: é preciso alinhar o discurso às práticas de forma que o outro possa experimentar a coerência em cada gesto.
A coerência, nesse sentido, é mais que uma virtude: é a garantia de segurança relacional. Quando ajo em consonância com aquilo que proclamo, ofereço ao outro um espaço previsível e confiável. A confiança nasce dessa previsibilidade. A incoerência, ao contrário, gera incerteza, porque nunca se sabe qual versão da organização “está funcionando”: a do discurso ou a da prática. E a incerteza é corrosiva para qualquer vínculo.
A vida me mostrou que a coerência não significa perfeição. Significa autenticidade. Implica mostrar-se vulnerável, assumir limites, pedir desculpas quando necessário e entender que é na qualidade das relações que construímos o futuro. É justamente na vulnerabilidade que a humanidade se manifesta, e isso não fragiliza os vínculos; pelo contrário, fortalece-os. Quando um líder reconhece que errou e se dispõe a corrigir o rumo, inspira mais confiança do que quando julga estar sempre certo.
As aplicações práticas dessa reflexão são inúmeras. No campo da convivência humana corporativa, coerência significa transformar o discurso de cuidado em políticas concretas de bem-estar. No marketing, significa que as promessas feitas devem corresponder à experiência entregue, sob pena de transformar as relações em engodos. Na governança, significa alinhar relatórios de desempenho e sustentabilidade às práticas diárias, evitando o risco da “maquiagem verde”. De fato, refere-se à prática de uma empresa ou instituição que divulga(interna ou externamente) uma imagem de sustentabilidade, responsabilidade e coerência que não correspondem às suas ações reais (internas ou externas). Ou seja, usa-se um discurso ou marketing apenas para melhorar a reputação, sem mudanças consistentes na suas ações cotidianas. Na educação corporativa, significa ensinar que ética e coerência não são acessórios, mas fundamentos. Até mesmo nas relações familiares, coerência significa viver aquilo que se ensina, para que os filhos aprendam mais com o exemplo do que com as palavras. Para a liderança, significa também ser exemplo de fato.
Percebo que a coerência é um processo “terapêutico” contínuo contra a esquizofrenia organizacional, e nunca um estado acabado. Ela nasce do autocuidado, porque não posso ser coerente se vivo em contradição comigo mesmo. Ela se alimenta da escuta ativa, porque é ouvindo o outro que percebo minhas incoerências. Ela cresce na responsabilidade compartilhada, porque a cultura de uma organização não é obra apenas da liderança, mas de todos. E ela se consolida na coragem ética, quando assumimos a decisão de permanecer fiéis aos nossos valores, mesmo quando isso custa caro.
Gosto de pensar na esquizofrenia organizacional como um espelho incômodo. Ela nos mostra nossas contradições, expõe nossas feridas, mas também nos convida à transformação. Onde há incoerência, há possibilidade de aprendizado. Onde há fragmentação, pode nascer reconciliação. Cada contradição é um chamado à coerência, cada falha é um convite à responsabilidade. O risco é real, mas a oportunidade também é.
No fim, acredito que a coerência é o maior patrimônio que uma pessoa ou organização pode possuir. Não se conquista de uma vez por todas, mas se cultiva em pequenas escolhas diárias. É ela que sustenta reputações, que fortalece vínculos e que dá sentido ao trabalho. Quando penso no legado que desejo deixar, não me interessa ser lembrado pelas palavras bonitas que escrevi ou pronunciei, mas pela coerência entre o que disse e o que pratiquei. Porque, no fundo, é isso que permanece: a confiança que inspirei, os vínculos que construí, o sentido que ajudei a semear.
E se a esquizofrenia organizacional é um risco constante, ela também é um chamado à vigilância permanente. Cada gesto incoerente é um lembrete de que precisamos ajustar o rumo. Cada contradição percebida é uma oportunidade de recomeço. Ser coerente é um exercício de humanidade, uma escolha diária de alinhar discurso e prática, palavra e gesto, valor e conduta. É nesse alinhamento que se constrói a verdadeira grandeza das pessoas e das instituições.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília,outubro/2025

Da Violência à Paz
by Homero Reis©
O Cálice e a Espada (Riane Eisler)[1], é um livro essencial. A partir de uma pesquisa longitudinal de dez anos, o que ela nos oferece não é apenas uma interpretação da história humana, mas uma proposta para o porvir. Lê-lo fez-me sentir como se tivesse em mãos, duas chaves simbólicas. Uma abre a porta da violência que atravessa nossa história; a outra abre a possibilidade de um futuro tecido pela paz.
Ela nos desafia a reconhecer que a forma como estruturamos a vida em sociedade não é a única possível. Somos filhos de escolhas, e podemos escolher de novo. De fato, como gosto de dizer, “o futuro não existe como tal. Somos frutos de nossas escolhas”.
A pergunta desafiadora que me atravessa ao ler Eisler é simples e poderosa: existiram sociedades pacíficas em nossa história? Se a resposta for “sim”, então a violência que naturalizamos como destino é evitável. Ela é apenas uma narrativa dominante. E se houve outras narrativas de parceria, cuidado e respeito, então nós podemos, hoje, recontar a nossa história e reescrevê-la no presente a partir de outras perspectivas.
O que lhes quero trazer nesse texto é minha visão e algumas reflexões sobre o trabalho de Eisler.
A metáfora central é luminosa. O cálice simboliza culturas matrísticas, voltadas ao acolhimento, à nutrição, à vida que se renovam no ventre e no vínculo. É um recipiente sagrado que guarda e compartilha; é a taça que une, não a lâmina que separa. Em contrapartida, a espada representa as culturas patriarcais, fundadas na violência, na guerra e na exploração. A espada corta, fere, divide. É o símbolo da dominação que sustenta a crença de que só pela força se constrói um mundo melhor.
Durante trinta mil anos, as sociedades patriarcais nos ensinaram que a guerra e a exploração eram os motores do progresso. Esse conceito nasce do discurso de que a violência pode ser legitimada em macro ou micro escala. É a ideia do mais forte contra o mais fraco, do “olho por olho e do dente por dente”. A lógica é simples e brutal: se não posso explorar, eu guerreio para conquistar. E assim consolidamos a ideia de que dominar é a única forma legítima de nos relacionarmos. Mas Eisler nos lembra: isso não é destino, é escolha. E escolhas podem ser revistas.
O nascimento das perguntas humanas
Se voltarmos à pré-história, percebemos que a narrativa hostórico-social nasce de três perguntas fundantes: De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos?
Essas questões ecoam desde as pinturas rupestres até as filosofias contemporâneas. Não temos respostas definitivas. O que temos são narrativas, crenças, mitos. E esses mitos moldam a forma como nos relacionamos.
O fato incontornável que as primeiras sociedades puderam observar era simples: todos nós viemos da mulher. O vínculo entre ato sexual e gravidez era invisível ao olhar imediato. O tempo entre o coito e os sinais da gestação era longo demais para ser percebido. Por isso, os povos primitivos só podiam concluir uma coisa: a vida nasce da mulher, assim como todo animal nasce de sua mãe. Mas, como não era visível a relação entre coito e gravidez, as comunidades primitivas acreditavam na ideia de que a fecundação era um “ato dos deuses”, e, portanto, a mulher era o caminho pelo qual a divindade entrava na história humana. Tanto é que as narrativas das concepções divinas são comuns na história. As mais conhecidas são: o nascimento de Hércules, filho de Zeus com a mortal Alcmena; e o nascimento de Jesus, filho de Jeová com Maria. No entanto, há várias outras histórias semelhantes. Essa percepção fundou uma forma de organização relacional: a cultura matrística, baseada no acolhimento, no cuidado e na integração, tendo por centralidade a figura feminina.
Nessas culturas, havia luta, competição, conflitos, mas não havia a violência como princípio. Divergir não era destruir; disputar não era exterminar. O ventre materno era metáfora de comunidade: nele cabiam todos, sem distinção. Esse modelo ainda existe entre nós. Os jogos olímpicos, por exemplo, são expressões de competição, luta e disputa, mas não de inimizades ou violência.
A transição para a dominação
Com o tempo, a humanidade percebeu o papel masculino na concepção. O esperma passou a ser visto como a semente indispensável da vida. E a narrativa mudou: do ventre da mulher para a “semente” do homem. A sacralidade feminina foi sendo substituída pela supremacia masculina. E com ela nasceram estruturas patriarcais que subjugaram e extinguiram sociedades matrísticas inteiras.
Essa mudança não foi apenas biológica, foi política. A dominação masculina não se impôs pela persuasão, mas pela violência, pela criação de mitos aterrorizantes e pela manipulação da ignorância. Se uma colheita queimava, era porque a divindade masculina exigia submissão. Se uma doença devastava, era punição por não obedecer. Surgiu a figura dos intermediários, sacerdotes que não apenas cuidavam da espiritualidade, mas a usavam para impor medo e controle. Criou-se o inferno como ameaça e a salvação como barganha. A espada substituiu o cálice. O medo passou a reger o vínculo. A relação deixou de ser parceria e tornou-se hierarquia.
Quando penso no que significa viver em uma cultura patriarcal, vejo diante de mim um espelho que, por séculos, refletiu apenas um lado da humanidade. É como se tivéssemos aprendido a caminhar usando apenas uma perna: conseguimos nos mover, mas de forma manquitola, instável, sempre desequilibrada. A cultura patriarcal nos fez acreditar que a força, a dominação e a hierarquia eram os únicos instrumentos capazes de sustentar a vida em sociedade.
Essa cultura se estrutura em dois eixos principais: a guerra e a exploração. Se não é possível explorar, guerreia-se para conquistar e explorar depois. Ao longo da história, povos foram dominados, riquezas expropriadas, culturas inteiras sufocadas por esse modelo. A espada se tornou metáfora e prática: ela corta, divide, subjuga. Aprendemos a acreditar que sem espada não haveria ordem, progresso, futuro. Daí para o conceito de supremacia do homem, foi fácil. E dessa facilidade para se “legitimar” uma narrativa da “submissão” da mulher foi mais fácil ainda. Com isso “aceitamos” relações tóxicas, comportamentos abusivos. O feminicidio e a violência de gênero estão por todos os lados.
Mas o patriarcado não se limita a campos de batalha ou tratados políticos. Ele se infiltra no cotidiano. Está na maneira como famílias foram organizadas sob o mando do homem, no modo como religiões ergueram deuses masculinos guerreiros, na ideia de que obediência é mais importante que diálogo. Está na crença de que a violência é inevitável e até necessária. Crescemos naturalizando isso, como se fosse a ordem das coisas.
A cultura patriarcal, no fundo, é uma narrativa de poder. É a manipulação da ignorância para manter a dominação. Foi assim quando povos inteiros foram convencidos de que um deus vingativo exigia submissão sob pena de castigo e sacríficos. Foi assim quando se construiu o medo do inferno como ferramenta de controle. É assim ainda hoje, quando líderes se apresentam como salvadores da pátria, sustentando-se na lógica da força e da intimidação.
O preço dessa narrativa é alto. Perdemos a capacidade de nos indignar com o absurdo. Aceitamos fome em meio à abundância, exclusão em meio à tecnologia, guerras em meio a tantas alternativas de diálogo. É como se a cultura patriarcal tivesse anestesiado nossa sensibilidade, tornando normal o que deveria nos escandalizar.
O patriarcado nos ensina a ver diferenças como ameaças e não como riquezas. Ele nos faz acreditar que o outro só pode existir sob minha condição: ou se submete, ou é inimigo. A diversidade, que poderia ser um mosaico vivo de possibilidades humanas, é reduzida a fronteiras rígidas. Quem pensa diferente vira adversário; quem é vulnerável vira descartável.
Ao refletir sobre isso, percebo que a cultura patriarcal é como uma lente que distorce o real. Ao invés de enxergar o mundo como uma teia interdependente, ela o apresenta como um campo de batalha. Ao invés de percebermos a vida como dom compartilhado, passamos a vê-la como território a ser conquistado.
Desmontar essa lente não é fácil, porque crescemos dentro dela. Mas é necessário e urgente. Se quisermos um futuro sustentável, justo e humano, precisamos questionar a herança patriarcal que ainda orienta nossas escolhas. Precisamos reaprender a caminhar com as duas pernas: força e cuidado, razão e afeto, masculino e feminino, convivendo sem hierarquia. Só assim, talvez, possamos reencontrar o equilíbrio perdido e devolver à humanidade a capacidade de florescer em parceria, e não em dominação.
A perda da indignação
Eisler nos convida a observar como, nessa transição, perdemos a capacidade de nos indignar. Como explicar Hiroshima e Nagasaki? Como justificar o Holocausto? Que racionalidade pode sustentar tamanha barbárie? A cultura patriarcal, baseada na dominação, naturaliza absurdos e constrói o discurso de que “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. O intolerável se torna rotina. Aceitamos a exclusão, a fome, a exploração, como se fossem leis da natureza. E quando perdemos a capacidade de dizer “isso é absurdo”, nos tornamos cúmplices do silêncio que legitima a barbárie.
Rastros da cultura matrística
Quando mergulho no conceito de cultura matrística, percebo que não se trata apenas de uma forma de organizar a sociedade, mas de uma forma de sentir o mundo. É como se o coração fosse colocado no centro da vida comunitária, orientando gestos, decisões e vínculos. A cultura matrística nasce do reconhecimento de que a vida é um dom que brota do ventre e que deve ser cuidado como um tesouro coletivo.
Ao contrário da lógica da imposição, a matriz dessa cultura é o acolhimento. Não o acolhimento condescendente, mas aquele que nasce da certeza de que cada ser tem um lugar legítimo no tecido da vida. É como uma árvore: seus galhos se abrem em direções distintas, mas todos encontram alimento na mesma seiva. Nas comunidades matrísticas, a diferença não era ameaça, mas variedade de cores dentro de um mesmo quadro.
O eixo não estava no poder de submeter, mas no poder de nutrir. Nutrir a vida, os vínculos, a diversidade. Nessa perspectiva, não se precisava de intermediários que ditassem o medo; bastava a experiência cotidiana do cuidado para compreender a espiritualidade. A mãe que amamenta, o grupo que partilha a colheita, os anciãos que transmitem sabedoria: tudo isso formava uma rede de significados que fortalecia o sentido de pertencimento.
É claro que nessas sociedades também havia conflitos e disputas. Mas o conflito não era tratado como sentença de destruição, e sim como ocasião para recompor os laços. Penso nisso como um vaso de cerâmica: quando trinca, não é descartado, é reparado com cuidado. A vida coletiva era vista como esse vaso comum, que precisa ser preservado porque todos bebem dele.
A espiritualidade matrística também reflete esse horizonte. Não haviam deuses distantes, imponentes e punitivos, mas representações do sagrado ligadas à terra, à fertilidade, ao ciclo da vida. O sagrado não era usado para amedrontar, mas para celebrar. A morte não aparecia como condenação, e sim como retorno ao todo. A existência era entendida como círculo, não como linha de chegada.
Minha tradução dessa visão para o presente está gesto de abraçar. O abraço não elimina a diferença de altura, peso, idade ou origem, mas integra as diferenças em um espaço de proximidade. A cultura matrística é esse abraço social: nela cabem as tensões, mas sem expulsar; cabem as divergências, mas sem anular.
No nosso tempo, marcado por tantas urgências, recuperar a inspiração matrística é reconhecer que não há futuro possível sem cooperação. Significa redescobrir que a vida floresce mais quando é partilhada, e que o cuidado é força transformadora, não sinal de fraqueza. É admitir que somos todos viajantes de uma mesma travessia e que, sem confiança mútua, não chegaremos a lugar algum.
A cultura matrística, portanto, não é utopia distante. É memória viva e possibilidade concreta. É um convite para reorganizar nossas relações sob o signo do vínculo e não da hierarquia. Minha filha Thirza Reis usa uma metáfora muito sutil para isso. No seu livro BASTA[2], ela diz que a cultura matrística “é como acender uma lamparina em meio à noite: talvez sua luz não afaste toda a escuridão, mas torna possível enxergar uns aos outros e continuar caminhando juntos”.
Vestígios da cultura matrística ainda sobrevivem. Eisler nos mostra exemplos contemporâneos. As Olimpíadas, por exemplo: competimos, disputamos medalhas, mas não transformamos o outro em inimigo. No fim, atletas se abraçam, reconhecendo-se como parte de uma mesma humanidade. É o espírito do jogo, não da guerra. Outro vestígio é a relação de muitas mães com seus filhos: acolhimento sem distinção, cuidado sem cálculo. Esses são ecos de um modo de ser que insiste em permanecer.
Patriarcal x Matrístico: dois modos de organizar a vida
A cultura patriarcal estrutura-se na lógica da dominação. Seu alicerce é a crença de que a força garante ordem e que a hierarquia é necessária para manter a sociedade unida. Guerra e exploração tornam-se instrumentos de progresso, e o outro é visto como ameaça ou recurso a ser controlado. A diversidade é percebida com desconfiança, e a diferença tende a ser anulada ou subjugada. O sagrado assume feições punitivas, legitimando a obediência pelo medo. Nessa lente, a vida é campo de batalha, e a vitória de uns exige a derrota de outros.
Em contraste, a cultura matrística organiza-se pelo cuidado e pela integração. O vínculo é o centro: nutrir, proteger, celebrar e reparar são gestos que mantêm a comunidade viva. O conflito não é sentença de exclusão, mas ocasião para recompor laços. O sagrado é próximo, ligado à fertilidade, à terra, ao ciclo da vida. A diversidade é vista como riqueza, e a morte não é castigo, mas retorno ao todo.
Enquanto o patriarcado corta como espada, o matrístico acolhe como cálice. Um modelo fragmenta, o outro integra. A escolha entre eles revela não apenas estruturas políticas, mas visões de mundo. O que lhes convido a fazer é aprender com ambos e a construir um novo horizonte.
A Cultura da Parceria: o horizonte possível
Creio que não precisamos ficar presos entre os extremos da espada patriarcal e do cálice matrístico. Podemos escolher uma terceira via: a cultura da parceria. Nela, não se trata de eliminar a força ou negar o cuidado, mas de integrá-los em uma nova forma de convivência.
A parceria reconhece que a vida é uma teia de interdependências. Cada pessoa é singular, mas essa singularidade ganha sentido quando colocada em relação com os outros. Diferente do patriarcado, não há hierarquia de dominação; diferente do matrístico, não há idealização da harmonia absoluta. O que existe é a construção cotidiana de equilíbrio, feita de respeito, reciprocidade e dignidade compartilhada.
Essa cultura valoriza a educação não violenta, que desperta talentos em vez de padronizar. Valoriza redes de ajuda, que sustentam a vida coletiva com solidariedade e não com exploração. Valoriza a diversidade como fonte de criatividade, e não como ameaça.
A parceria é, acima de tudo, uma escolha. É decidir que a paz não é ausência de conflito, mas presença de vínculos fortes o suficiente para enfrentar tensões sem romper. É o horizonte que nos convida a trocar a lógica do medo pela lógica do cuidado e, assim, escrever um futuro mais humano.
Mas o que significa viver matrísticamente hoje?
Viver matrísticamente não é voltar à pré-história. É atualizar valores de respeito, parceria, cuidado amoroso, sustentabilidade e inclusão. É reconhecer que diferenças não são ameaça, mas riqueza. É trocar a lógica do “ou eu ou você” pela lógica do “eu com você”.
Para isso, proponho três caminhos práticos:
- Educação não violenta. A escola que massifica é como um moedor de carne: diferentes cortes, alcatra, filé, pernil, entram distintos na máquina e saem todos iguais, transformados em carne moída. Essa homogeneização mata a singularidade. Precisamos de uma educação que reconheça talentos únicos, que cuide das diferenças em vez de esmagá-las. Educar não é padronizar, é cultivar.
- Redes de ajuda. Somos autônomos, mas ninguém é autossuficiente. Eu posso estar aqui escrevendo, mas alguém garante a energia elétrica, alguém colhe os alimentos que comi, alguém pavimenta a rua por onde andei, alguém me ajudou a chegar até aqui. Somos parte de uma grande rede de interdependência. Reconhecer isso desperta gratidão e responsabilidade. É como perceber que cada fio invisível sustenta uma teia: ao cuidar de um, sustento a todos.
- Revisão da racionalidade. A razão que justifica bombas e genocídios não é verdadeira razão, é delírio. Precisamos resgatar os afetos como parte do pensar. Razão sem afeto é cálculo frio; afeto sem razão é impulso cego. Só juntos podem gerar sabedoria. Acolher a emoção como parte legítima da vida é abrir espaço para soluções pacíficas.
A paz como escolha cotidiana
Eisler insiste: a paz não é política de Estado, é escolha pessoal. Gandhi mostrou que a revolução pode ser não violenta. Jesus escolheu a paz mesmo diante da cruz. A paz não é ausência de conflito, mas decisão de não responder com violência. É como um rio que, diante da pedra, não a quebra, mas a contorna. A água não deixa de ser água; segue fluindo até o mar.
Podemos cultivar essa paz em gestos simples: aprender a conversar sem agressão; reconhecer o outro como legítimo em sua diferença; praticar ajuda não monetizada, baseada na necessidade e não no mérito; escolher não se deixar contaminar pela lógica da violência.
A convivência pacífica nasce quando descubro que ninguém pode me agredir sem meu consentimento interior. Posso rejeitar a violência com coração aberto, como quem segura a espada do outro e a transforma em arado.
O desafio do nosso tempo
Vivemos um século de paradoxos. De um lado, temos tecnologia que nos conecta instantaneamente; de outro, seguimos isolados em bolhas de intolerância. Produzimos alimento para todos, mas aceitamos a fome de milhões. Construímos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos desarmar o coração. É como se tivéssemos avançado no poder de multiplicar, mas regredido na sabedoria de compartilhar.
A cultura patriarcal nos ensinou a confundir força com grandeza, dominação com ordem, medo com obediência. O desafio agora é reaprender outra gramática: a da parceria, da ternura, da reciprocidade. Eisler chama isso de “cultura da parceria”.
Eu gosto de pensar como uma música em que cada instrumento é diferente, mas juntos criam harmonia. A diversidade não ameaça, enriquece.
Um fecho reflexivo
Por isso tudo, quero enfatizar o que estou propondo. Quando me aproximo do pensamento de Riane Eisler, encontro a chave que abre novos horizontes para compreender a vida em sociedade e justificar o que creio e defendo: o conceito de parceria. Não de uma parceria como um arranjo estratégico ou como um contrato entre partes que buscam benefícios mútuos. Falo de algo mais profundo, quase ontológico: uma maneira de organizar a vida que se opõe radicalmente ao modelo de dominação.
Por milhares de anos, fomos ensinados a acreditar na violência, na hierarquia e no controle como inevitáveis. Herdamos a lógica da espada: quem pode mais, manda; quem não pode (ou tem juízo), obedece. Essa visão estruturou nossas instituições, nossas economias e até nossas famílias. Mas quero crer que existe outro caminho: o caminho da cultura matrística, do cálice, que simboliza a nutrição, o cuidado e a partilha. Nesse contexto o conceito de parceria nasce exatamente na contra cultura, nos mostrando que não precisamos escolher entre ser dominadores ou dominados, podemos escolher ser parceiros.
Parceria, para mim, significa reconhecer que a vida é uma rede interdependente. É entender que a minha dignidade está ligada à dignidade do outro, que o meu florescimento só se cumpre quando o outro também floresce. É como uma orquestra: cada instrumento é diferente, com seu timbre e sua potência, mas só juntos produzem harmonia. Quando um tenta se impor sobre os demais, o resultado é ruído. A parceria é a música que só existe quando há escuta, reciprocidade e cuidado.
Ao longo da história, as culturas matrísticas viveram sob esse paradigma da parceria. Não eram sociedades perfeitas, mas estruturavam-se em torno de valores de respeito, inclusão e acolhimento. Não se tratava de negar conflitos, mas de resolvê-los sem violência como princípio. Essa herança nos lembra que o modelo da dominação não é natural nem inevitável: é apenas uma escolha histórica.
Trazer o conceito de parceria para os dias de hoje é um desafio urgente. Em um mundo que ainda insiste em medir valor pelo poder de dominar, falar de parceria soa quase revolucionário. É dizer que a verdadeira grandeza não está em impor, mas em compartilhar; não em vencer, mas em conviver. É afirmar que paz não é ausência de conflito, mas a ausência de confronto e na escolha consciente de viver sem violência.
Na prática, parceria se traduz em pequenas e grandes ações: educar de forma não violenta, construir redes de ajuda, respeitar as diferenças, aprender a conversar sem agredir. É decidir, todos os dias, que a vida vale mais quando é partilhada. É optar pelo cálice em vez da espada.
No fundo, parceria é um ato de fé: fé de que a humanidade pode aprender a se reconhecer não como inimigos em guerra, mas como companheiros de jornada. E é também um ato de coragem: coragem de desarmar a mão e abrir o coração. A realidade atual de nossa história é um alerta mais que urgente para que comecemos essa travessia. Eu aceito o convite, porque acredito que o futuro só será possível se for um futuro de parceria.
O cálice e a espada continuam diante de nós. Podemos escolher qual símbolo guiará nossas relações. A espada é rápida, cortante, sedutora. O cálice exige paciência, cuidado, tempo. A espada promete vitória, mas deixa rastros de sangue. O cálice não promete domínio, mas oferece comunhão. Entre cortar e nutrir, entre dividir e integrar, está a encruzilhada da humanidade.
A história nos mostrou o poder destrutivo da espada. Talvez seja hora de experimentar a sabedoria do cálice. Se o mundo for uma mesa, a espada a corta em pedaços; o cálice a reúne em torno do vinho partilhado. Se o mundo for um corpo, a espada o fere; o cálice o cura. Se o mundo for uma canção, a espada silencia; o cálice canta.
Escolher o cálice é escolher a vida. É olhar para o outro não como ameaça, mas como parte da mesma travessia. É aceitar que não somos donos do futuro, mas guardiões da possibilidade de futuro. É abrir espaço para que a próxima geração encontre não ruínas, mas sementes.
Ao trocar a lâmina pelo gesto, o medo pelo cuidado, a dominação pela parceria. Que sejamos capazes de transformar a violência em memória e a paz em prática. Que o cálice volte a ocupar nossas mãos, não como nostalgia de um passado perdido, mas como profecia de um futuro ainda possível.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025
[1] Riane Tennenhaus Eisler (Viena 1931/xx) sobrevivente do nazismo, é uma acadêmica austríaca, historiadora cultural, escritora e ativista social.
É presidente do centro para “Estudos sobre Parceria”, na Califórnia/USA.
[2] REIS, Thirza; BASTA; Ed. Literare Books, SP/SP, 2025 – thirzar@gmail.com

Sempre que penso sobre a força dos relacionamentos humanos, volto ao poder de uma atitude aparentemente simples, mas profundamente transformadora: a escuta ativa. Escutar o outro é mais do que captar palavras; é entrar em sintonia com sua experiência, acolher suas emoções, perceber seus silêncios. É um gesto que, na superfície, pode parecer óbvio, mas que, em sua profundidade, revela-se como um dos pilares da convivência ética, da inteligência relacional e da gestão de vínculos duradouros.
Falo na primeira pessoa porque esse tema não é teórico, é visceral. Tenho experimentado, em minha vida e em minha prática profissional, os efeitos da escuta ativa como ferramenta de transformação individual e coletiva. Sinto que, quando escuto ativamente, eu não apenas compreendo o outro; eu me deixo tocar por ele. Isso me lembra Martin Buber, filósofo do diálogo, que dizia que o encontro autêntico se dá quando nos dispomos ao “Eu-Tu”, e não ao “Eu-Isso”. Na escuta ativa, coloco o outro no centro da relação, não como objeto de análise, mas como sujeito de dignidade.
A psicologia humanista, especialmente na obra de Carl Rogers, nos lembra que a escuta ativa é condição essencial para que o outro possa florescer. Rogers falava da “consideração positiva incondicional” como abertura para que o outro se revele sem medo de julgamento. Eu me identifico profundamente com isso. Quando escuto ativamente, sinto que ofereço ao outro uma espécie de solo fértil, onde sua palavra pode brotar sem ser arrancada ou sufocada. Por outro lado, quando percebo que alguém é capaz de escutar o outro, as distâncias se encurtam, o diálogo floresce, as soluções são encontradas, os acordos são feitos e os resultados desejados aparecem com mais vigor e perenidade.
Escutar não é apenas de uma técnica de comunicação. A escuta ativa é, para mim, uma postura existencial. É decidir estar presente no aqui e agora, com atenção plena, com empatia e respeito. É a antítese do automatismo que marca tantas conversas cotidianas, onde falamos mais para responder do que para compreender.
O filósofo Hans-Georg Gadamer, em sua hermenêutica, dizia que compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. Essa fusão só acontece se eu estiver disposto a sair de meu próprio horizonte para me abrir ao do outro. A escuta ativa é justamente esse movimento de deslocamento: eu amplio meus limites para que o horizonte do outro encontre espaço em mim.
Muitas vezes, penso que escutar ativamente é como abrir as janelas de uma casa que há muito tempo está fechada. O ar novo entra, a luz se espalha, e eu descubro que havia cantos esquecidos. Assim também é na relação: a escuta areja, renova, expande.
Mas, por que temos tanta dificuldade em escutar o outro ou os outros? Escutar os outros deveria ser um gesto natural, mas na prática é um dos atos mais difíceis que realizamos. Muitas vezes carregamos conosco a ilusão de que estamos escutando, quando na verdade apenas esperamos a pausa alheia para introduzir a nossa própria fala. Esse comportamento nasce de diferentes causas. Uma delas é o ego inflado, que não aceita ser deslocado do centro da cena. O desejo de protagonismo nos leva a disputar espaço em cada conversa, como se o diálogo fosse uma arena em que importa mais vencer do que compreender.
Há também a influência da ansiedade e da pressa que marcam nossa época. Vivemos em um ritmo que não tolera o silêncio e que exige respostas rápidas. Escutar, no entanto, exige tempo, paciência e disposição para permanecer diante da palavra do outro sem antecipar conclusões. Muitas vezes a pressa nos leva a interromper frases, a completar pensamentos alheios, a reduzir a complexidade do que está sendo dito apenas para que possamos voltar a falar.
Outro fator relevante é a ausência de uma cultura de escuta. Desde a infância somos ensinados a falar, argumentar, defender ideias, apresentar trabalhos. A oratória é valorizada, mas a escuta raramente é cultivada como habilidade essencial. Crescemos em ambientes em que escutar não é sinal de maturidade, mas de passividade, como se o silêncio fosse sinônimo de submissão. Assim, não aprendemos a sustentar com dignidade o lugar de receptores da palavra alheia.
Há ainda o medo de se deixar afetar. Escutar verdadeiramente é perigoso, porque nos coloca diante da dor, da diferença e da vulnerabilidade do outro. Quem escuta com profundidade pode ser transformado, pode ter de rever certezas, pode perceber fissuras em suas próprias convicções. Muitos evitam a escuta justamente para não enfrentar esse espelho. É mais seguro manter-se na bolha das próprias opiniões do que permitir que a alteridade nos desestabilize.
Além disso, cada um carrega consigo uma multidão de ruídos internos. Preocupações, preconceitos, julgamentos e ansiedades funcionam como filtros que distorcem ou abafam o que o outro diz. Mesmo presentes fisicamente em uma conversa, às vezes estamos ausentes por dentro, mergulhados em nossas vozes internas. Essa sobreposição de pensamentos nos impede de receber plenamente a mensagem alheia.
O contexto também interfere. Em ambientes hierárquicos ou tóxicos, escutar é visto como fraqueza. Quem detém poder sente que precisa falar para manter sua autoridade, enquanto quem ocupa posições subordinadas acredita que não será escutado de qualquer forma. A estrutura da organização inibe a prática da escuta e reforça a lógica do monólogo.
As consequências dessa dificuldade são muitas e profundas. A primeira delas é o empobrecimento das relações. Sem escuta, os vínculos se tornam superficiais, reduzidos a trocas utilitárias. Pessoas convivem lado a lado, mas não se encontram de verdade. Cada uma vive em seu universo particular, sem ponte com o mundo interno do outro.
Outra consequência frequente é o aumento dos conflitos. Muitas divergências não nascem de grandes diferenças, mas de pequenos mal-entendidos que poderiam ser evitados se houvesse uma escuta atenta. Quando não escutamos, interpretamos mal, alimentamos suposições e reforçamos ressentimentos. O diálogo se rompe e o que poderia ser uma diferença criativa se converte em disputa hostil.
A falta de escuta também gera isolamento emocional. Aquele que nunca é escutado tende a se retrair, a acreditar que sua voz não importa, que sua existência não é reconhecida. Esse silêncio imposto pelo desinteresse do outro é uma das formas mais cruéis de solidão. Ser ignorado mina a autoestima e enfraquece a confiança básica de que valemos a pena.
Nas organizações, a ausência de escuta corrói a confiança. Uma liderança que não escuta sua equipe perde credibilidade. As pessoas deixam de se engajar, escondem problemas, evitam trazer ideias. Em contextos mais amplos, como no espaço social ou político, instituições que não escutam seus públicos tornam-se irrelevantes, incapazes de dialogar com as transformações do tempo.
Também há um impacto direto na capacidade de inovar. Quando não escutamos clientes, colaboradores, familiares ou parceiros, deixamos escapar sinais importantes do ambiente. Ficamos presos em nossas próprias narrativas, repetindo padrões, sem perceber oportunidades de mudança. A escuta ativa, ao contrário, é fonte de adaptação e de criação, porque revela perspectivas que sozinhos jamais alcançaríamos.
Talvez a consequência mais profunda, no entanto, seja o empobrecimento humano. Quem não escuta fecha-se em suas certezas, priva-se da riqueza do outro, perde a oportunidade de aprender e de crescer. A escuta é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que acolhe, também ensina. Negar-se a escutar é recusar-se à transformação que todo encontro humano traz.
No fundo, a dificuldade em escutar revela o medo de deixar o outro existir em nós. É como se houvesse receio de que a palavra alheia ocupe espaço demais, ou que sua dor se infiltre em nossas frestas. Mas quando não escutamos, pagamos caro: relações frágeis, conflitos recorrentes, isolamento, falta de confiança e estagnação. Aprender a escutar, portanto, não é apenas um gesto de bondade, mas um imperativo de sobrevivência relacional. É nesse exercício que se decide a qualidade das nossas conexões e, em última instância, a qualidade da nossa própria humanidade.
Quando penso em gestão de relacionamentos, seja no âmbito pessoal, profissional ou institucional, vejo que a escuta ativa é um divisor de águas. Empresas, famílias, comunidades, todas são atravessadas pela qualidade de suas conversas. E é pela escuta que construímos confiança.
Confiança não nasce de palavras bonitas, mas da experiência reiterada de ser escutado e respeitado. Quando uma equipe percebe que sua liderança escuta genuinamente, abre-se um campo de reciprocidade. As pessoas sentem-se autorizadas a trazer suas inquietações, suas ideias, suas vulnerabilidades. E é nesse espaço que surge a inovação, a coesão e a corresponsabilidade.
Lembro-me de Anthony Giddens, sociólogo, que fala da reflexividade da vida moderna: vivemos em um mundo onde precisamos constantemente justificar nossas ações e decisões diante dos outros. Nesse contexto, a escuta ativa não é luxo, mas necessidade. Só por meio dela conseguimos sustentar relações transparentes e evitar que a comunicação se torne apenas formalidade vazia.
Na prática da Inteligência Relacional, percebo que escutar é um dos modos mais potentes de cuidar. Escutar não é passividade, é ato ativo de sustentação do vínculo. Quando escuto, assumo responsabilidade compartilhada: reconheço que o outro existe, que tem voz, que sua narrativa é tão legítima quanto a minha. Isso cria um pacto silencioso de dignidade.
A psicologia contemporânea reforça o impacto da escuta ativa no bem-estar emocional. Estudos da psicologia positiva apontam que ser escutado é uma das experiências mais gratificantes que alguém pode ter. O simples ato de narrar uma dificuldade, e perceber que o outro realmente escutou, já diminui a carga de estresse, amplia a resiliência e fortalece a autoestima.
Também na terapia cognitivo-comportamental, percebe-se que a qualidade da escuta do terapeuta é decisiva para que o paciente consiga reestruturar suas crenças. Sem escuta, não há espaço para a reorganização da narrativa pessoal. E mesmo em contextos de mediação de conflitos, a escuta ativa se revela essencial: é quando as partes se sentem ouvidas que se abre a possibilidade de diálogo e resolução.
Na minha vivência, como conselheiro corporativo, mentor e psicanalista, noto como muitas vezes as pessoas não pedem soluções, mas apenas espaço para serem escutadas. A escuta, nesses casos, já é terapêutica. É como se o simples fato de alguém sustentar meu discurso com atenção amorosa já fosse suficiente para que eu me reorganize por dentro.
Penso, por exemplo, em reuniões de trabalho onde alguém propõe algum tema difícil, ou abre uma conversa delicada, traz um tema controverso ou aponta uma dificuldade. Muitas vezes, ele não busca um manual pronto de respostas. Busca reconhecimento. Busca sentir-se visto. Quando escuto sem interromper, sem apressar, percebo que sua própria fala já contém as sementes da solução.
Do ponto de vista filosófico, escutar ativamente é um exercício ético. Emmanuel Lévinas fala da alteridade (qualidade do que é diferente e a capacidade de se colocar no lugar do outro), como fundamento da ética: é o rosto do outro que me convoca à responsabilidade. Escutar é atender a esse chamado. É reconhecer que minha liberdade encontra limite no direito do outro de existir plenamente.
Essa dimensão ética da escuta ativa é crucial na gestão de relacionamentos. Pois gerir não é manipular, é cuidar. Não é impor, é dialogar. Não é apenas conduzir pessoas para metas, mas criar ambientes em que a dignidade seja preservada. E a dignidade começa pelo reconhecimento da voz.
Quando escuto, ergo uma ponte entre o eu e o outro. Uma ponte que não apaga diferenças, mas que as torna fecundas. Escutar é aceitar que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. É por isso que digo: a escuta ativa é uma política da convivência inteligente.
Na sociologia, autores como Jürgen Habermas destacam a centralidade da comunicação para a vida democrática. Habermas fala da “ação comunicativa” como horizonte de uma sociedade baseada na razão dialógica. A escuta ativa é a expressão prática desse ideal: sem escuta, não há deliberação democrática, não há comunidade viva, não há coesão social.
Se ampliarmos isso para sistemas complexos (famílias etc.), e organizações corporativas e sociais, percebemos que onde não há escuta de membros, sócios, colaboradores ou clientes, as relações tornam-se frágeis, autorreferenciais, incapazes de se adaptar. Se não há escuta entre os líderes e diretores, a situação fica mais complexa ainda; torna-se “cabo de guerra”, onde os interesses individuais sobrepõem-se às demandas ou necessidades coletivas. Já aquelas que cultivam uma escuta permanente constroem resiliência, porque captam sinais, ajustam rumos e mantêm vínculos de confiança.
Eu vejo que, em tempos de excesso de informação, a escuta ativa se torna estrategicamente necessária. Recebemos e construímos mensagens e estímulos intensos e constantemente, mas nem sempre nos sentimos escutados. Escutar, nesse cenário, é contracultural: é resistir à lógica da pressa, da resposta imediata, da superficialidade.
Na minha trajetória, percebo que a escuta ativa é também um exercício de autoconhecimento. Para escutar o outro, preciso primeiro calar minhas próprias vozes internas. Preciso aquietar meu julgamento, minha ansiedade de resposta, minha ânsia de controle. Escutar é aprender a esperar.
Essa espera, por vezes desconfortável, é também fecunda. Ela me ensina a paciência, a humildade e a coragem de não ter todas as respostas. Aprendo que escutar é um ato de fé: acreditar que o outro tem algo a dizer que pode me enriquecer, mesmo quando não concordo.
Além disso, a escuta ativa me conecta ao sentido da reciprocidade. Quando sou escutado, sinto-me valorizado; e quando escuto, valorizo o outro. É nesse movimento de troca que se edifica a confiança.
Na gestão de equipes ou de grupos, a escuta ativa se traduz em liderança mais humana e eficaz. Líderes que escutam conseguem captar as nuances do ambiente, identificar conflitos latentes, reconhecer talentos ocultos. Mais ainda: líderes que escutam tornam-se referenciais de confiança.
Eu mesmo, em experiências profissionais, já vi equipes e grupos se desestruturarem por ausência de escuta. Palavras ditas em vão, reuniões em que ninguém se sentia escutado, decisões tomadas unilateralmente. O resultado era desmotivação, distanciamento, perda de energia, além de brigas e discussões sem sentido.
Por outro lado, já presenciei transformações impressionantes quando a escuta foi cultivada. Ambientes tensos se tornaram mais leves, rivalidades foram administradas, histórias entendidas, pessoas antes retraídas passaram a contribuir, soluções criativas emergiram do simples fato de alguém ter se sentido escutado.
É curioso notar como a escuta ativa também é motor de inovação. Muitas vezes, pensamos que inovar é apenas criar algo inédito. Mas, na prática, inovar é perceber de modo novo aquilo que já existe. E isso só é possível se escutamos com atenção.
Escutar clientes, escutar diferentes, por exemplo, é fonte inesgotável de insights. Escutar colaboradores revela potenciais ainda não explorados. Escutar parceiros abre portas para colaborações inéditas.
Na era digital, em que tanto se fala de big data e inteligência artificial, acredito que a escuta humana, genuína, continua sendo insubstituível. Pois não há algoritmo que capture o silêncio carregado de sentido, ou o tremor da voz que revela vulnerabilidade.
Desafios da escuta ativa:
Não romantizo a escuta ativa. Sei que ela exige disciplina, presença e, muitas vezes, coragem. Escutar pode ser doloroso, porque o que o outro diz nem sempre é o que eu gostaria de escutar. Pode ser frustrante, porque demanda tempo em um mundo acelerado. Pode ser desafiador, porque me confronta com minhas próprias limitações.
Mas é justamente nesses desafios que reside sua potência. Ao escutar, coloco-me em posição de vulnerabilidade: reconheço que não controlo tudo, que dependo do outro para compreender melhor a realidade. Esse reconhecimento é libertador.
Gosto de pensar a escuta ativa como uma arte. Uma arte relacional, que mistura técnica, sensibilidade e ética. Uma arte que se aprende praticando, errando, recomeçando. Uma arte que nunca se esgota, porque cada encontro é único.
Na prática, escutar ativamente é como afinar um instrumento musical. Preciso ajustar minhas cordas internas (atenção, paciência, empatia), para que a melodia do encontro soe harmônica. E, quando isso acontece, sinto que o relacionamento ganha nova densidade.
Lembro-me de uma situação concreta em que um gestor empresarial enfrentava altos índices de rotatividade em sua equipe. Havia tentado aumentar salários, criar bônus, melhorar a infraestrutura. Nada parecia resolver. Quando nos sentamos para refletir, percebemos que o problema era simples, mas profundo: os colaboradores não se sentiam escutados.
Iniciamos então um processo de encontros de escuta ativa. Em vez de reuniões apenas para repassar tarefas, criamos espaços para que cada voz fosse ouvida. Aos poucos, o clima organizacional mudou. O índice de rotatividade caiu, e os próprios funcionários relataram sentir-se mais motivados.
Outro caso, em contexto comunitário, envolveu um grupo em conflito por diferenças religiosas. A tensão era tão grande que já não havia diálogo. Foi pela escuta ativa, mediada com paciência, que surgiram narrativas comuns: todos, no fundo, desejavam segurança para seus filhos, dignidade em suas vidas e respeito às suas crenças. Essa descoberta partilhada foi possível apenas porque alguém decidiu escutar. Esses exemplos me confirmam: a escuta ativa não é retórica. É prática concreta de transformação.
Vivemos hoje em um ambiente em que a comunicação é acelerada por plataformas digitais. Mas, paradoxalmente, a escuta verdadeira parece cada vez mais rara. Nos aplicativos de mensagem, respondemos sem ler com atenção; nas redes sociais, interagimos apenas com fragmentos.
Acredito que a escuta ativa precisa se reinventar nesse cenário. Precisa incluir pausas, feedbacks mais conscientes, tempos de silêncio mesmo em ambientes virtuais. Quando escrevo uma mensagem e recebo uma resposta que mostra que o outro realmente entendeu, sinto o mesmo alívio que numa conversa presencial.
Na gestão de relacionamentos digitais, a escuta ativa é antídoto contra a superficialidade. É ela que distingue um atendimento robótico de uma relação humanizada.
Para resumir tudo o que disse, eu afirmo: a escuta ativa é um caminho de humanização. É ela que dá corpo ao amor como força criadora, que sustenta o dever como pacto de reciprocidade, que transforma o medo em guardião da vida, que orienta a ira para a defesa da dignidade.
Na gestão de relacionamentos, a escuta ativa é o que impede a fragmentação e favorece a integração. É o que transforma grupos em comunidades, equipes em coletivos criativos, organizações em organismos vivos.
Escutar, no fim das contas, é uma escolha. Uma escolha por estar presente, por reconhecer o outro, por apostar no diálogo. É um ato de fé na palavra e no silêncio, na vulnerabilidade e na força, na singularidade e na interdependência.
Assim, sigo aprendendo a escutar. E cada vez que escuto, renovo minha convicção de que não há inteligência mais poderosa do que a relacional. Pois é ela que nos lembra, sempre, que ninguém se humaniza sozinho.
Pense e reflita sobre isso.
HomeroReis.
Curitiba, PR, setembro/25
Reflexões sobre Coerência, Relações e Sentido©[1]
Quando utilizo a expressão “esquizofrenia organizacional”, não me refiro a um diagnóstico clínico, mas a uma metáfora poderosa para descrever o desencontro entre o que se proclama e o que se pratica. É um hiato que separa valores anunciados de condutas efetivas; um descompasso que se manifesta tanto em instituições quanto em pessoas. No fundo, é a incoerência como modo de existência: uma vida em que se defende a ética no discurso e se pratica a transgressão nos bastidores, em que se fala de cuidado mas se age com descaso, em que se promete inclusão mas se reproduz exclusão. Essa incoerência, embora muitas vezes silenciosa e imperceptível no início, vai corroendo os alicerces da confiança, minando a credibilidade e desestruturando os vínculos que sustentam toda forma de convivência. Como se isso não bastasse, a esquizofrenia organizacional bloqueia as ações de longo prazo, minando o propósito das instituições. Isso porque constrói uma agenda oculta. Coisas são ditas “nos bastidores” e não sustentadas na vida pública; onde “sinceridade” é confundida com agressividade, questões pessoais disfarçados de “compromissos”, solidariedade encobrindo conflitos de interesse.
A esquizofrenia, em seu conceito técnico, é um transtorno mental, marcado por uma profunda dissociação entre percepção, pensamento, emoção e comportamento. Quem vive com essa condição experimenta uma ruptura na integração da realidade: acredita em coisas que não existem, ideias que não encontram base no mundo objetivo, sente afetos que não se ajustam às circunstâncias. Suas consequências traduzem um empobrecimento da vida emocional e social. A esquizofrenia é antes de tudo uma fragmentação da percepção, da razão, da afetividade e da conduta.
Quando transporto essa conceituação para o universo das organizações, encontro um paralelo inquietante. Vejo instituições que, como sujeitos em sofrimento psíquico, vivem uma cisão interna entre o que percebem, dizem, o que sentem e o que fazem. O discurso institucional, como um delírio socialmente aceito, anuncia valores elevados: ética, sustentabilidade, inclusão, bem-estar. Mas a prática cotidiana revela outra realidade, muitas vezes contraditória: ciúmes, invejas, comportamento “bate-assopra”, exploração de pessoas, descaso ambiental, exclusão velada, sobrecarga de trabalho. É como se a organização tivesse suas próprias alucinações, vendo-se como algo que não é, projetando uma imagem que não se sustenta na experiência real de quem a habita.
Nesse sentido, a esquizofrenia organizacional não é apenas incoerência. É uma ruptura do vínculo entre palavra e gesto, entre intenção e ação, entre identidade proclamada e vida concreta. Tal como no indivíduo em sofrimento, a organização perde a unidade de seu “eu” coletivo.
Costumo dizer que essa esquizofrenia é como uma rachadura em uma grande parede. No começo, quase invisível, não incomoda. Mas, com o tempo, se amplia, e toda a estrutura começa a se fragilizar. Uma organização pode continuar erguida por algum tempo, sustentada por aparências, slogans ou marketing, mas inevitavelmente essa rachadura se tornará visível e colocará tudo em risco. O problema não é apenas institucional; ele se infiltra nas relações entre as pessoas que compõem a organização. Cada líder ou colaborador, cada cliente, cada fornecedor sente, mesmo que inconscientemente, o peso da incoerência.
Tenho acompanhado organizações que falam de resultados e futuros com entusiasmo em seus relatórios anuais, mas cujas práticas diárias revelam desperdício, poluição e desordem na gestão. Outras que proclamam a diversidade como bandeira, mas mantêm em seus conselhos e diretorias apenas perfis homogêneos, fechados à diferença. Propósitos louváveis e práticas corrosivas. Vejo empresas que se dizem defensoras da ética, mas convivem naturalmente com pequenas corrupções cotidianas, justificadas em nome da sobrevivência do negócio. Também encontro instituições que defendem publicamente o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas que esperam que seus colaboradores se sacrifiquem em jornadas intermináveis, respondendo e-mails de madrugada ou abrindo mão de finais de semana.
O curioso é que muitas vezes essa incoerência não nasce da má-fé, mas de um conjunto de concessões aparentemente inocentes. Surge quando se diz: “vamos abrir uma exceção só desta vez”, “todos fazem assim, não podemos ficar para trás”, “precisamos bater a meta a qualquer custo”. Essa repetição de pequenas justificativas acaba criando uma cultura em que o discurso e a prática se divorciam. O resultado é uma vida organizacional esquizofrênica: proclama-se um valor para fora, pratica-se outro para dentro. Mas o pior da esquizofrenia organizacional é a dificuldade das pessoas de conversarem amigavelmente sobre as “coisas que discorrem”. Tudo acaba sendo um grande “ringue” de exercício do poder, tentativa de manipulação, ameaças veladas.
As consequências são devastadoras. A confiança se desfaz, e sem confiança não há vínculo que sobreviva. A motivação se dilui, porque ninguém se sente mobilizado por discursos vazios. Os conflitos internos aumentam, porque os valores deixam de ser referência compartilhada e passam a ser apenas retórica. A reputação, que leva anos para ser construída, pode ser destruída rapidamente quando incoerências vêm à tona. Mas talvez a consequência mais dolorosa seja a perda de sentido: quando uma pessoa ou organização deixa de alinhar discurso e prática, perde também a razão pela qual existe, porque os valores deixam de ser bússola e se tornam apenas enfeite.
A origem dessa esquizofrenia é multifacetada. Na maior parte das vezes ela nasce da liderança. Um líder incoerente, que não encarna os valores que proclama, cria descrédito em cascata. Mas também pode nascer de falhas de comunicação, quando mensagens se perdem e a prática vai em direção oposta ao discurso. Outras vezes é fruto do excesso de foco em resultados, em que o número vale mais que a dignidade. Há também a cultura da aparência, que prioriza a imagem externa e descuida da prática interna, criando um teatro de valores que nunca se tornam realidade. Em muitos contextos, a causa é ainda mais sutil: o medo do conflito. As pessoas percebem incoerências, mas calam-se, receosas de desagradar ou de colocar em risco sua posição. O silêncio, nesse caso, se torna cúmplice da fragmentação. Mas também há o caso dos “ultra comprometidos”; ou seja, pessoas que se julgam detentores das “verdades do negócio” e, em nome disso, perdem a elegância e o trato cortes com os demais.
Superar a esquizofrenia organizacional exige coragem e humildade. Coragem para enfrentar-se a si mesmo em um processo de autoconhecimento, como também para enfrentar dilemas éticos e para recusar atalhos convenientes que traem os valores fundamentais. Humildade para admitir erros, assumir vulnerabilidades e abrir espaço para conversas sinceras. A coerência não se constrói com discursos apenas, mas com gestos cotidianos, às vezes simples, mas sempre consistentes. Um pedido de desculpas sincero pode reconstruir mais confiança do que uma campanha de marketing milionária. Uma decisão difícil, tomada em nome de um valor ético, pode inspirar mais lealdade do que qualquer incentivo financeiro. A competência de atuar em grupo, buscando o consenso, vale mais do que a arbitrariedade de uma ação isolada, ainda que legítima. Entendendo que às vezes “posso fazer, mas não devo”. Esse discernimento nos conduz à saúde organizacional.
Nesse ponto, percebo como a Inteligência Relacional se apresenta como um verdadeiro antídoto contra a esquizofrenia. Ela nos lembra que o valor de nossas ações não está apenas no que pretendemos, mas no que o outro percebe, sente e experimenta em contato conosco. Não refere a como atuo na minha “boa vontade”, mas como o outro percebe isso e como o “meu modo de ser” impacta os outros. Somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo efeito que causamos. Isso significa que não basta ter boas intenções: é preciso alinhar o discurso às práticas de forma que o outro possa experimentar a coerência em cada gesto.
A coerência, nesse sentido, é mais que uma virtude: é a garantia de segurança relacional. Quando ajo em consonância com aquilo que proclamo, ofereço ao outro um espaço previsível e confiável. A confiança nasce dessa previsibilidade. A incoerência, ao contrário, gera incerteza, porque nunca se sabe qual versão da organização “está funcionando”: a do discurso ou a da prática. E a incerteza é corrosiva para qualquer vínculo.
A vida me mostrou que a coerência não significa perfeição. Significa autenticidade. Implica mostrar-se vulnerável, assumir limites, pedir desculpas quando necessário e entender que é na qualidade das relações que construímos o futuro. É justamente na vulnerabilidade que a humanidade se manifesta, e isso não fragiliza os vínculos; pelo contrário, fortalece-os. Quando um líder reconhece que errou e se dispõe a corrigir o rumo, inspira mais confiança do que quando julga estar sempre certo.
As aplicações práticas dessa reflexão são inúmeras. No campo da convivência humana corporativa, coerência significa transformar o discurso de cuidado em políticas concretas de bem-estar. No marketing, significa que as promessas feitas devem corresponder à experiência entregue, sob pena de transformar as relações em engodos. Na governança, significa alinhar relatórios de desempenho e sustentabilidade às práticas diárias, evitando o risco da “maquiagem verde”. De fato, refere-se à prática de uma empresa ou instituição que divulga(interna ou externamente) uma imagem de sustentabilidade, responsabilidade e coerência que não correspondem às suas ações reais (internas ou externas). Ou seja, usa-se um discurso ou marketing apenas para melhorar a reputação, sem mudanças consistentes na suas ações cotidianas. Na educação corporativa, significa ensinar que ética e coerência não são acessórios, mas fundamentos. Até mesmo nas relações familiares, coerência significa viver aquilo que se ensina, para que os filhos aprendam mais com o exemplo do que com as palavras. Para a liderança, significa também ser exemplo de fato.
Percebo que a coerência é um processo “terapêutico” contínuo contra a esquizofrenia organizacional, e nunca um estado acabado. Ela nasce do autocuidado, porque não posso ser coerente se vivo em contradição comigo mesmo. Ela se alimenta da escuta ativa, porque é ouvindo o outro que percebo minhas incoerências. Ela cresce na responsabilidade compartilhada, porque a cultura de uma organização não é obra apenas da liderança, mas de todos. E ela se consolida na coragem ética, quando assumimos a decisão de permanecer fiéis aos nossos valores, mesmo quando isso custa caro.
Gosto de pensar na esquizofrenia organizacional como um espelho incômodo. Ela nos mostra nossas contradições, expõe nossas feridas, mas também nos convida à transformação. Onde há incoerência, há possibilidade de aprendizado. Onde há fragmentação, pode nascer reconciliação. Cada contradição é um chamado à coerência, cada falha é um convite à responsabilidade. O risco é real, mas a oportunidade também é.
No fim, acredito que a coerência é o maior patrimônio que uma pessoa ou organização pode possuir. Não se conquista de uma vez por todas, mas se cultiva em pequenas escolhas diárias. É ela que sustenta reputações, que fortalece vínculos e que dá sentido ao trabalho. Quando penso no legado que desejo deixar, não me interessa ser lembrado pelas palavras bonitas que escrevi ou pronunciei, mas pela coerência entre o que disse e o que pratiquei. Porque, no fundo, é isso que permanece: a confiança que inspirei, os vínculos que construí, o sentido que ajudei a semear.
E se a esquizofrenia organizacional é um risco constante, ela também é um chamado à vigilância permanente. Cada gesto incoerente é um lembrete de que precisamos ajustar o rumo. Cada contradição percebida é uma oportunidade de recomeço. Ser coerente é um exercício de humanidade, uma escolha diária de alinhar discurso e prática, palavra e gesto, valor e conduta. É nesse alinhamento que se constrói a verdadeira grandeza das pessoas e das instituições.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília,outubro/2025

Da Violência à Paz
by Homero Reis©
O Cálice e a Espada (Riane Eisler)[1], é um livro essencial. A partir de uma pesquisa longitudinal de dez anos, o que ela nos oferece não é apenas uma interpretação da história humana, mas uma proposta para o porvir. Lê-lo fez-me sentir como se tivesse em mãos, duas chaves simbólicas. Uma abre a porta da violência que atravessa nossa história; a outra abre a possibilidade de um futuro tecido pela paz.
Ela nos desafia a reconhecer que a forma como estruturamos a vida em sociedade não é a única possível. Somos filhos de escolhas, e podemos escolher de novo. De fato, como gosto de dizer, “o futuro não existe como tal. Somos frutos de nossas escolhas”.
A pergunta desafiadora que me atravessa ao ler Eisler é simples e poderosa: existiram sociedades pacíficas em nossa história? Se a resposta for “sim”, então a violência que naturalizamos como destino é evitável. Ela é apenas uma narrativa dominante. E se houve outras narrativas de parceria, cuidado e respeito, então nós podemos, hoje, recontar a nossa história e reescrevê-la no presente a partir de outras perspectivas.
O que lhes quero trazer nesse texto é minha visão e algumas reflexões sobre o trabalho de Eisler.
A metáfora central é luminosa. O cálice simboliza culturas matrísticas, voltadas ao acolhimento, à nutrição, à vida que se renovam no ventre e no vínculo. É um recipiente sagrado que guarda e compartilha; é a taça que une, não a lâmina que separa. Em contrapartida, a espada representa as culturas patriarcais, fundadas na violência, na guerra e na exploração. A espada corta, fere, divide. É o símbolo da dominação que sustenta a crença de que só pela força se constrói um mundo melhor.
Durante trinta mil anos, as sociedades patriarcais nos ensinaram que a guerra e a exploração eram os motores do progresso. Esse conceito nasce do discurso de que a violência pode ser legitimada em macro ou micro escala. É a ideia do mais forte contra o mais fraco, do “olho por olho e do dente por dente”. A lógica é simples e brutal: se não posso explorar, eu guerreio para conquistar. E assim consolidamos a ideia de que dominar é a única forma legítima de nos relacionarmos. Mas Eisler nos lembra: isso não é destino, é escolha. E escolhas podem ser revistas.
O nascimento das perguntas humanas
Se voltarmos à pré-história, percebemos que a narrativa hostórico-social nasce de três perguntas fundantes: De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos?
Essas questões ecoam desde as pinturas rupestres até as filosofias contemporâneas. Não temos respostas definitivas. O que temos são narrativas, crenças, mitos. E esses mitos moldam a forma como nos relacionamos.
O fato incontornável que as primeiras sociedades puderam observar era simples: todos nós viemos da mulher. O vínculo entre ato sexual e gravidez era invisível ao olhar imediato. O tempo entre o coito e os sinais da gestação era longo demais para ser percebido. Por isso, os povos primitivos só podiam concluir uma coisa: a vida nasce da mulher, assim como todo animal nasce de sua mãe. Mas, como não era visível a relação entre coito e gravidez, as comunidades primitivas acreditavam na ideia de que a fecundação era um “ato dos deuses”, e, portanto, a mulher era o caminho pelo qual a divindade entrava na história humana. Tanto é que as narrativas das concepções divinas são comuns na história. As mais conhecidas são: o nascimento de Hércules, filho de Zeus com a mortal Alcmena; e o nascimento de Jesus, filho de Jeová com Maria. No entanto, há várias outras histórias semelhantes. Essa percepção fundou uma forma de organização relacional: a cultura matrística, baseada no acolhimento, no cuidado e na integração, tendo por centralidade a figura feminina.
Nessas culturas, havia luta, competição, conflitos, mas não havia a violência como princípio. Divergir não era destruir; disputar não era exterminar. O ventre materno era metáfora de comunidade: nele cabiam todos, sem distinção. Esse modelo ainda existe entre nós. Os jogos olímpicos, por exemplo, são expressões de competição, luta e disputa, mas não de inimizades ou violência.
A transição para a dominação
Com o tempo, a humanidade percebeu o papel masculino na concepção. O esperma passou a ser visto como a semente indispensável da vida. E a narrativa mudou: do ventre da mulher para a “semente” do homem. A sacralidade feminina foi sendo substituída pela supremacia masculina. E com ela nasceram estruturas patriarcais que subjugaram e extinguiram sociedades matrísticas inteiras.
Essa mudança não foi apenas biológica, foi política. A dominação masculina não se impôs pela persuasão, mas pela violência, pela criação de mitos aterrorizantes e pela manipulação da ignorância. Se uma colheita queimava, era porque a divindade masculina exigia submissão. Se uma doença devastava, era punição por não obedecer. Surgiu a figura dos intermediários, sacerdotes que não apenas cuidavam da espiritualidade, mas a usavam para impor medo e controle. Criou-se o inferno como ameaça e a salvação como barganha. A espada substituiu o cálice. O medo passou a reger o vínculo. A relação deixou de ser parceria e tornou-se hierarquia.
Quando penso no que significa viver em uma cultura patriarcal, vejo diante de mim um espelho que, por séculos, refletiu apenas um lado da humanidade. É como se tivéssemos aprendido a caminhar usando apenas uma perna: conseguimos nos mover, mas de forma manquitola, instável, sempre desequilibrada. A cultura patriarcal nos fez acreditar que a força, a dominação e a hierarquia eram os únicos instrumentos capazes de sustentar a vida em sociedade.
Essa cultura se estrutura em dois eixos principais: a guerra e a exploração. Se não é possível explorar, guerreia-se para conquistar e explorar depois. Ao longo da história, povos foram dominados, riquezas expropriadas, culturas inteiras sufocadas por esse modelo. A espada se tornou metáfora e prática: ela corta, divide, subjuga. Aprendemos a acreditar que sem espada não haveria ordem, progresso, futuro. Daí para o conceito de supremacia do homem, foi fácil. E dessa facilidade para se “legitimar” uma narrativa da “submissão” da mulher foi mais fácil ainda. Com isso “aceitamos” relações tóxicas, comportamentos abusivos. O feminicidio e a violência de gênero estão por todos os lados.
Mas o patriarcado não se limita a campos de batalha ou tratados políticos. Ele se infiltra no cotidiano. Está na maneira como famílias foram organizadas sob o mando do homem, no modo como religiões ergueram deuses masculinos guerreiros, na ideia de que obediência é mais importante que diálogo. Está na crença de que a violência é inevitável e até necessária. Crescemos naturalizando isso, como se fosse a ordem das coisas.
A cultura patriarcal, no fundo, é uma narrativa de poder. É a manipulação da ignorância para manter a dominação. Foi assim quando povos inteiros foram convencidos de que um deus vingativo exigia submissão sob pena de castigo e sacríficos. Foi assim quando se construiu o medo do inferno como ferramenta de controle. É assim ainda hoje, quando líderes se apresentam como salvadores da pátria, sustentando-se na lógica da força e da intimidação.
O preço dessa narrativa é alto. Perdemos a capacidade de nos indignar com o absurdo. Aceitamos fome em meio à abundância, exclusão em meio à tecnologia, guerras em meio a tantas alternativas de diálogo. É como se a cultura patriarcal tivesse anestesiado nossa sensibilidade, tornando normal o que deveria nos escandalizar.
O patriarcado nos ensina a ver diferenças como ameaças e não como riquezas. Ele nos faz acreditar que o outro só pode existir sob minha condição: ou se submete, ou é inimigo. A diversidade, que poderia ser um mosaico vivo de possibilidades humanas, é reduzida a fronteiras rígidas. Quem pensa diferente vira adversário; quem é vulnerável vira descartável.
Ao refletir sobre isso, percebo que a cultura patriarcal é como uma lente que distorce o real. Ao invés de enxergar o mundo como uma teia interdependente, ela o apresenta como um campo de batalha. Ao invés de percebermos a vida como dom compartilhado, passamos a vê-la como território a ser conquistado.
Desmontar essa lente não é fácil, porque crescemos dentro dela. Mas é necessário e urgente. Se quisermos um futuro sustentável, justo e humano, precisamos questionar a herança patriarcal que ainda orienta nossas escolhas. Precisamos reaprender a caminhar com as duas pernas: força e cuidado, razão e afeto, masculino e feminino, convivendo sem hierarquia. Só assim, talvez, possamos reencontrar o equilíbrio perdido e devolver à humanidade a capacidade de florescer em parceria, e não em dominação.
A perda da indignação
Eisler nos convida a observar como, nessa transição, perdemos a capacidade de nos indignar. Como explicar Hiroshima e Nagasaki? Como justificar o Holocausto? Que racionalidade pode sustentar tamanha barbárie? A cultura patriarcal, baseada na dominação, naturaliza absurdos e constrói o discurso de que “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. O intolerável se torna rotina. Aceitamos a exclusão, a fome, a exploração, como se fossem leis da natureza. E quando perdemos a capacidade de dizer “isso é absurdo”, nos tornamos cúmplices do silêncio que legitima a barbárie.
Rastros da cultura matrística
Quando mergulho no conceito de cultura matrística, percebo que não se trata apenas de uma forma de organizar a sociedade, mas de uma forma de sentir o mundo. É como se o coração fosse colocado no centro da vida comunitária, orientando gestos, decisões e vínculos. A cultura matrística nasce do reconhecimento de que a vida é um dom que brota do ventre e que deve ser cuidado como um tesouro coletivo.
Ao contrário da lógica da imposição, a matriz dessa cultura é o acolhimento. Não o acolhimento condescendente, mas aquele que nasce da certeza de que cada ser tem um lugar legítimo no tecido da vida. É como uma árvore: seus galhos se abrem em direções distintas, mas todos encontram alimento na mesma seiva. Nas comunidades matrísticas, a diferença não era ameaça, mas variedade de cores dentro de um mesmo quadro.
O eixo não estava no poder de submeter, mas no poder de nutrir. Nutrir a vida, os vínculos, a diversidade. Nessa perspectiva, não se precisava de intermediários que ditassem o medo; bastava a experiência cotidiana do cuidado para compreender a espiritualidade. A mãe que amamenta, o grupo que partilha a colheita, os anciãos que transmitem sabedoria: tudo isso formava uma rede de significados que fortalecia o sentido de pertencimento.
É claro que nessas sociedades também havia conflitos e disputas. Mas o conflito não era tratado como sentença de destruição, e sim como ocasião para recompor os laços. Penso nisso como um vaso de cerâmica: quando trinca, não é descartado, é reparado com cuidado. A vida coletiva era vista como esse vaso comum, que precisa ser preservado porque todos bebem dele.
A espiritualidade matrística também reflete esse horizonte. Não haviam deuses distantes, imponentes e punitivos, mas representações do sagrado ligadas à terra, à fertilidade, ao ciclo da vida. O sagrado não era usado para amedrontar, mas para celebrar. A morte não aparecia como condenação, e sim como retorno ao todo. A existência era entendida como círculo, não como linha de chegada.
Minha tradução dessa visão para o presente está gesto de abraçar. O abraço não elimina a diferença de altura, peso, idade ou origem, mas integra as diferenças em um espaço de proximidade. A cultura matrística é esse abraço social: nela cabem as tensões, mas sem expulsar; cabem as divergências, mas sem anular.
No nosso tempo, marcado por tantas urgências, recuperar a inspiração matrística é reconhecer que não há futuro possível sem cooperação. Significa redescobrir que a vida floresce mais quando é partilhada, e que o cuidado é força transformadora, não sinal de fraqueza. É admitir que somos todos viajantes de uma mesma travessia e que, sem confiança mútua, não chegaremos a lugar algum.
A cultura matrística, portanto, não é utopia distante. É memória viva e possibilidade concreta. É um convite para reorganizar nossas relações sob o signo do vínculo e não da hierarquia. Minha filha Thirza Reis usa uma metáfora muito sutil para isso. No seu livro BASTA[2], ela diz que a cultura matrística “é como acender uma lamparina em meio à noite: talvez sua luz não afaste toda a escuridão, mas torna possível enxergar uns aos outros e continuar caminhando juntos”.
Vestígios da cultura matrística ainda sobrevivem. Eisler nos mostra exemplos contemporâneos. As Olimpíadas, por exemplo: competimos, disputamos medalhas, mas não transformamos o outro em inimigo. No fim, atletas se abraçam, reconhecendo-se como parte de uma mesma humanidade. É o espírito do jogo, não da guerra. Outro vestígio é a relação de muitas mães com seus filhos: acolhimento sem distinção, cuidado sem cálculo. Esses são ecos de um modo de ser que insiste em permanecer.
Patriarcal x Matrístico: dois modos de organizar a vida
A cultura patriarcal estrutura-se na lógica da dominação. Seu alicerce é a crença de que a força garante ordem e que a hierarquia é necessária para manter a sociedade unida. Guerra e exploração tornam-se instrumentos de progresso, e o outro é visto como ameaça ou recurso a ser controlado. A diversidade é percebida com desconfiança, e a diferença tende a ser anulada ou subjugada. O sagrado assume feições punitivas, legitimando a obediência pelo medo. Nessa lente, a vida é campo de batalha, e a vitória de uns exige a derrota de outros.
Em contraste, a cultura matrística organiza-se pelo cuidado e pela integração. O vínculo é o centro: nutrir, proteger, celebrar e reparar são gestos que mantêm a comunidade viva. O conflito não é sentença de exclusão, mas ocasião para recompor laços. O sagrado é próximo, ligado à fertilidade, à terra, ao ciclo da vida. A diversidade é vista como riqueza, e a morte não é castigo, mas retorno ao todo.
Enquanto o patriarcado corta como espada, o matrístico acolhe como cálice. Um modelo fragmenta, o outro integra. A escolha entre eles revela não apenas estruturas políticas, mas visões de mundo. O que lhes convido a fazer é aprender com ambos e a construir um novo horizonte.
A Cultura da Parceria: o horizonte possível
Creio que não precisamos ficar presos entre os extremos da espada patriarcal e do cálice matrístico. Podemos escolher uma terceira via: a cultura da parceria. Nela, não se trata de eliminar a força ou negar o cuidado, mas de integrá-los em uma nova forma de convivência.
A parceria reconhece que a vida é uma teia de interdependências. Cada pessoa é singular, mas essa singularidade ganha sentido quando colocada em relação com os outros. Diferente do patriarcado, não há hierarquia de dominação; diferente do matrístico, não há idealização da harmonia absoluta. O que existe é a construção cotidiana de equilíbrio, feita de respeito, reciprocidade e dignidade compartilhada.
Essa cultura valoriza a educação não violenta, que desperta talentos em vez de padronizar. Valoriza redes de ajuda, que sustentam a vida coletiva com solidariedade e não com exploração. Valoriza a diversidade como fonte de criatividade, e não como ameaça.
A parceria é, acima de tudo, uma escolha. É decidir que a paz não é ausência de conflito, mas presença de vínculos fortes o suficiente para enfrentar tensões sem romper. É o horizonte que nos convida a trocar a lógica do medo pela lógica do cuidado e, assim, escrever um futuro mais humano.
Mas o que significa viver matrísticamente hoje?
Viver matrísticamente não é voltar à pré-história. É atualizar valores de respeito, parceria, cuidado amoroso, sustentabilidade e inclusão. É reconhecer que diferenças não são ameaça, mas riqueza. É trocar a lógica do “ou eu ou você” pela lógica do “eu com você”.
Para isso, proponho três caminhos práticos:
- Educação não violenta. A escola que massifica é como um moedor de carne: diferentes cortes, alcatra, filé, pernil, entram distintos na máquina e saem todos iguais, transformados em carne moída. Essa homogeneização mata a singularidade. Precisamos de uma educação que reconheça talentos únicos, que cuide das diferenças em vez de esmagá-las. Educar não é padronizar, é cultivar.
- Redes de ajuda. Somos autônomos, mas ninguém é autossuficiente. Eu posso estar aqui escrevendo, mas alguém garante a energia elétrica, alguém colhe os alimentos que comi, alguém pavimenta a rua por onde andei, alguém me ajudou a chegar até aqui. Somos parte de uma grande rede de interdependência. Reconhecer isso desperta gratidão e responsabilidade. É como perceber que cada fio invisível sustenta uma teia: ao cuidar de um, sustento a todos.
- Revisão da racionalidade. A razão que justifica bombas e genocídios não é verdadeira razão, é delírio. Precisamos resgatar os afetos como parte do pensar. Razão sem afeto é cálculo frio; afeto sem razão é impulso cego. Só juntos podem gerar sabedoria. Acolher a emoção como parte legítima da vida é abrir espaço para soluções pacíficas.
A paz como escolha cotidiana
Eisler insiste: a paz não é política de Estado, é escolha pessoal. Gandhi mostrou que a revolução pode ser não violenta. Jesus escolheu a paz mesmo diante da cruz. A paz não é ausência de conflito, mas decisão de não responder com violência. É como um rio que, diante da pedra, não a quebra, mas a contorna. A água não deixa de ser água; segue fluindo até o mar.
Podemos cultivar essa paz em gestos simples: aprender a conversar sem agressão; reconhecer o outro como legítimo em sua diferença; praticar ajuda não monetizada, baseada na necessidade e não no mérito; escolher não se deixar contaminar pela lógica da violência.
A convivência pacífica nasce quando descubro que ninguém pode me agredir sem meu consentimento interior. Posso rejeitar a violência com coração aberto, como quem segura a espada do outro e a transforma em arado.
O desafio do nosso tempo
Vivemos um século de paradoxos. De um lado, temos tecnologia que nos conecta instantaneamente; de outro, seguimos isolados em bolhas de intolerância. Produzimos alimento para todos, mas aceitamos a fome de milhões. Construímos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos desarmar o coração. É como se tivéssemos avançado no poder de multiplicar, mas regredido na sabedoria de compartilhar.
A cultura patriarcal nos ensinou a confundir força com grandeza, dominação com ordem, medo com obediência. O desafio agora é reaprender outra gramática: a da parceria, da ternura, da reciprocidade. Eisler chama isso de “cultura da parceria”.
Eu gosto de pensar como uma música em que cada instrumento é diferente, mas juntos criam harmonia. A diversidade não ameaça, enriquece.
Um fecho reflexivo
Por isso tudo, quero enfatizar o que estou propondo. Quando me aproximo do pensamento de Riane Eisler, encontro a chave que abre novos horizontes para compreender a vida em sociedade e justificar o que creio e defendo: o conceito de parceria. Não de uma parceria como um arranjo estratégico ou como um contrato entre partes que buscam benefícios mútuos. Falo de algo mais profundo, quase ontológico: uma maneira de organizar a vida que se opõe radicalmente ao modelo de dominação.
Por milhares de anos, fomos ensinados a acreditar na violência, na hierarquia e no controle como inevitáveis. Herdamos a lógica da espada: quem pode mais, manda; quem não pode (ou tem juízo), obedece. Essa visão estruturou nossas instituições, nossas economias e até nossas famílias. Mas quero crer que existe outro caminho: o caminho da cultura matrística, do cálice, que simboliza a nutrição, o cuidado e a partilha. Nesse contexto o conceito de parceria nasce exatamente na contra cultura, nos mostrando que não precisamos escolher entre ser dominadores ou dominados, podemos escolher ser parceiros.
Parceria, para mim, significa reconhecer que a vida é uma rede interdependente. É entender que a minha dignidade está ligada à dignidade do outro, que o meu florescimento só se cumpre quando o outro também floresce. É como uma orquestra: cada instrumento é diferente, com seu timbre e sua potência, mas só juntos produzem harmonia. Quando um tenta se impor sobre os demais, o resultado é ruído. A parceria é a música que só existe quando há escuta, reciprocidade e cuidado.
Ao longo da história, as culturas matrísticas viveram sob esse paradigma da parceria. Não eram sociedades perfeitas, mas estruturavam-se em torno de valores de respeito, inclusão e acolhimento. Não se tratava de negar conflitos, mas de resolvê-los sem violência como princípio. Essa herança nos lembra que o modelo da dominação não é natural nem inevitável: é apenas uma escolha histórica.
Trazer o conceito de parceria para os dias de hoje é um desafio urgente. Em um mundo que ainda insiste em medir valor pelo poder de dominar, falar de parceria soa quase revolucionário. É dizer que a verdadeira grandeza não está em impor, mas em compartilhar; não em vencer, mas em conviver. É afirmar que paz não é ausência de conflito, mas a ausência de confronto e na escolha consciente de viver sem violência.
Na prática, parceria se traduz em pequenas e grandes ações: educar de forma não violenta, construir redes de ajuda, respeitar as diferenças, aprender a conversar sem agredir. É decidir, todos os dias, que a vida vale mais quando é partilhada. É optar pelo cálice em vez da espada.
No fundo, parceria é um ato de fé: fé de que a humanidade pode aprender a se reconhecer não como inimigos em guerra, mas como companheiros de jornada. E é também um ato de coragem: coragem de desarmar a mão e abrir o coração. A realidade atual de nossa história é um alerta mais que urgente para que comecemos essa travessia. Eu aceito o convite, porque acredito que o futuro só será possível se for um futuro de parceria.
O cálice e a espada continuam diante de nós. Podemos escolher qual símbolo guiará nossas relações. A espada é rápida, cortante, sedutora. O cálice exige paciência, cuidado, tempo. A espada promete vitória, mas deixa rastros de sangue. O cálice não promete domínio, mas oferece comunhão. Entre cortar e nutrir, entre dividir e integrar, está a encruzilhada da humanidade.
A história nos mostrou o poder destrutivo da espada. Talvez seja hora de experimentar a sabedoria do cálice. Se o mundo for uma mesa, a espada a corta em pedaços; o cálice a reúne em torno do vinho partilhado. Se o mundo for um corpo, a espada o fere; o cálice o cura. Se o mundo for uma canção, a espada silencia; o cálice canta.
Escolher o cálice é escolher a vida. É olhar para o outro não como ameaça, mas como parte da mesma travessia. É aceitar que não somos donos do futuro, mas guardiões da possibilidade de futuro. É abrir espaço para que a próxima geração encontre não ruínas, mas sementes.
Ao trocar a lâmina pelo gesto, o medo pelo cuidado, a dominação pela parceria. Que sejamos capazes de transformar a violência em memória e a paz em prática. Que o cálice volte a ocupar nossas mãos, não como nostalgia de um passado perdido, mas como profecia de um futuro ainda possível.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025
[1] Riane Tennenhaus Eisler (Viena 1931/xx) sobrevivente do nazismo, é uma acadêmica austríaca, historiadora cultural, escritora e ativista social.
É presidente do centro para “Estudos sobre Parceria”, na Califórnia/USA.
[2] REIS, Thirza; BASTA; Ed. Literare Books, SP/SP, 2025 – thirzar@gmail.com

Sempre que penso sobre a força dos relacionamentos humanos, volto ao poder de uma atitude aparentemente simples, mas profundamente transformadora: a escuta ativa. Escutar o outro é mais do que captar palavras; é entrar em sintonia com sua experiência, acolher suas emoções, perceber seus silêncios. É um gesto que, na superfície, pode parecer óbvio, mas que, em sua profundidade, revela-se como um dos pilares da convivência ética, da inteligência relacional e da gestão de vínculos duradouros.
Falo na primeira pessoa porque esse tema não é teórico, é visceral. Tenho experimentado, em minha vida e em minha prática profissional, os efeitos da escuta ativa como ferramenta de transformação individual e coletiva. Sinto que, quando escuto ativamente, eu não apenas compreendo o outro; eu me deixo tocar por ele. Isso me lembra Martin Buber, filósofo do diálogo, que dizia que o encontro autêntico se dá quando nos dispomos ao “Eu-Tu”, e não ao “Eu-Isso”. Na escuta ativa, coloco o outro no centro da relação, não como objeto de análise, mas como sujeito de dignidade.
A psicologia humanista, especialmente na obra de Carl Rogers, nos lembra que a escuta ativa é condição essencial para que o outro possa florescer. Rogers falava da “consideração positiva incondicional” como abertura para que o outro se revele sem medo de julgamento. Eu me identifico profundamente com isso. Quando escuto ativamente, sinto que ofereço ao outro uma espécie de solo fértil, onde sua palavra pode brotar sem ser arrancada ou sufocada. Por outro lado, quando percebo que alguém é capaz de escutar o outro, as distâncias se encurtam, o diálogo floresce, as soluções são encontradas, os acordos são feitos e os resultados desejados aparecem com mais vigor e perenidade.
Escutar não é apenas de uma técnica de comunicação. A escuta ativa é, para mim, uma postura existencial. É decidir estar presente no aqui e agora, com atenção plena, com empatia e respeito. É a antítese do automatismo que marca tantas conversas cotidianas, onde falamos mais para responder do que para compreender.
O filósofo Hans-Georg Gadamer, em sua hermenêutica, dizia que compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. Essa fusão só acontece se eu estiver disposto a sair de meu próprio horizonte para me abrir ao do outro. A escuta ativa é justamente esse movimento de deslocamento: eu amplio meus limites para que o horizonte do outro encontre espaço em mim.
Muitas vezes, penso que escutar ativamente é como abrir as janelas de uma casa que há muito tempo está fechada. O ar novo entra, a luz se espalha, e eu descubro que havia cantos esquecidos. Assim também é na relação: a escuta areja, renova, expande.
Mas, por que temos tanta dificuldade em escutar o outro ou os outros? Escutar os outros deveria ser um gesto natural, mas na prática é um dos atos mais difíceis que realizamos. Muitas vezes carregamos conosco a ilusão de que estamos escutando, quando na verdade apenas esperamos a pausa alheia para introduzir a nossa própria fala. Esse comportamento nasce de diferentes causas. Uma delas é o ego inflado, que não aceita ser deslocado do centro da cena. O desejo de protagonismo nos leva a disputar espaço em cada conversa, como se o diálogo fosse uma arena em que importa mais vencer do que compreender.
Há também a influência da ansiedade e da pressa que marcam nossa época. Vivemos em um ritmo que não tolera o silêncio e que exige respostas rápidas. Escutar, no entanto, exige tempo, paciência e disposição para permanecer diante da palavra do outro sem antecipar conclusões. Muitas vezes a pressa nos leva a interromper frases, a completar pensamentos alheios, a reduzir a complexidade do que está sendo dito apenas para que possamos voltar a falar.
Outro fator relevante é a ausência de uma cultura de escuta. Desde a infância somos ensinados a falar, argumentar, defender ideias, apresentar trabalhos. A oratória é valorizada, mas a escuta raramente é cultivada como habilidade essencial. Crescemos em ambientes em que escutar não é sinal de maturidade, mas de passividade, como se o silêncio fosse sinônimo de submissão. Assim, não aprendemos a sustentar com dignidade o lugar de receptores da palavra alheia.
Há ainda o medo de se deixar afetar. Escutar verdadeiramente é perigoso, porque nos coloca diante da dor, da diferença e da vulnerabilidade do outro. Quem escuta com profundidade pode ser transformado, pode ter de rever certezas, pode perceber fissuras em suas próprias convicções. Muitos evitam a escuta justamente para não enfrentar esse espelho. É mais seguro manter-se na bolha das próprias opiniões do que permitir que a alteridade nos desestabilize.
Além disso, cada um carrega consigo uma multidão de ruídos internos. Preocupações, preconceitos, julgamentos e ansiedades funcionam como filtros que distorcem ou abafam o que o outro diz. Mesmo presentes fisicamente em uma conversa, às vezes estamos ausentes por dentro, mergulhados em nossas vozes internas. Essa sobreposição de pensamentos nos impede de receber plenamente a mensagem alheia.
O contexto também interfere. Em ambientes hierárquicos ou tóxicos, escutar é visto como fraqueza. Quem detém poder sente que precisa falar para manter sua autoridade, enquanto quem ocupa posições subordinadas acredita que não será escutado de qualquer forma. A estrutura da organização inibe a prática da escuta e reforça a lógica do monólogo.
As consequências dessa dificuldade são muitas e profundas. A primeira delas é o empobrecimento das relações. Sem escuta, os vínculos se tornam superficiais, reduzidos a trocas utilitárias. Pessoas convivem lado a lado, mas não se encontram de verdade. Cada uma vive em seu universo particular, sem ponte com o mundo interno do outro.
Outra consequência frequente é o aumento dos conflitos. Muitas divergências não nascem de grandes diferenças, mas de pequenos mal-entendidos que poderiam ser evitados se houvesse uma escuta atenta. Quando não escutamos, interpretamos mal, alimentamos suposições e reforçamos ressentimentos. O diálogo se rompe e o que poderia ser uma diferença criativa se converte em disputa hostil.
A falta de escuta também gera isolamento emocional. Aquele que nunca é escutado tende a se retrair, a acreditar que sua voz não importa, que sua existência não é reconhecida. Esse silêncio imposto pelo desinteresse do outro é uma das formas mais cruéis de solidão. Ser ignorado mina a autoestima e enfraquece a confiança básica de que valemos a pena.
Nas organizações, a ausência de escuta corrói a confiança. Uma liderança que não escuta sua equipe perde credibilidade. As pessoas deixam de se engajar, escondem problemas, evitam trazer ideias. Em contextos mais amplos, como no espaço social ou político, instituições que não escutam seus públicos tornam-se irrelevantes, incapazes de dialogar com as transformações do tempo.
Também há um impacto direto na capacidade de inovar. Quando não escutamos clientes, colaboradores, familiares ou parceiros, deixamos escapar sinais importantes do ambiente. Ficamos presos em nossas próprias narrativas, repetindo padrões, sem perceber oportunidades de mudança. A escuta ativa, ao contrário, é fonte de adaptação e de criação, porque revela perspectivas que sozinhos jamais alcançaríamos.
Talvez a consequência mais profunda, no entanto, seja o empobrecimento humano. Quem não escuta fecha-se em suas certezas, priva-se da riqueza do outro, perde a oportunidade de aprender e de crescer. A escuta é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que acolhe, também ensina. Negar-se a escutar é recusar-se à transformação que todo encontro humano traz.
No fundo, a dificuldade em escutar revela o medo de deixar o outro existir em nós. É como se houvesse receio de que a palavra alheia ocupe espaço demais, ou que sua dor se infiltre em nossas frestas. Mas quando não escutamos, pagamos caro: relações frágeis, conflitos recorrentes, isolamento, falta de confiança e estagnação. Aprender a escutar, portanto, não é apenas um gesto de bondade, mas um imperativo de sobrevivência relacional. É nesse exercício que se decide a qualidade das nossas conexões e, em última instância, a qualidade da nossa própria humanidade.
Quando penso em gestão de relacionamentos, seja no âmbito pessoal, profissional ou institucional, vejo que a escuta ativa é um divisor de águas. Empresas, famílias, comunidades, todas são atravessadas pela qualidade de suas conversas. E é pela escuta que construímos confiança.
Confiança não nasce de palavras bonitas, mas da experiência reiterada de ser escutado e respeitado. Quando uma equipe percebe que sua liderança escuta genuinamente, abre-se um campo de reciprocidade. As pessoas sentem-se autorizadas a trazer suas inquietações, suas ideias, suas vulnerabilidades. E é nesse espaço que surge a inovação, a coesão e a corresponsabilidade.
Lembro-me de Anthony Giddens, sociólogo, que fala da reflexividade da vida moderna: vivemos em um mundo onde precisamos constantemente justificar nossas ações e decisões diante dos outros. Nesse contexto, a escuta ativa não é luxo, mas necessidade. Só por meio dela conseguimos sustentar relações transparentes e evitar que a comunicação se torne apenas formalidade vazia.
Na prática da Inteligência Relacional, percebo que escutar é um dos modos mais potentes de cuidar. Escutar não é passividade, é ato ativo de sustentação do vínculo. Quando escuto, assumo responsabilidade compartilhada: reconheço que o outro existe, que tem voz, que sua narrativa é tão legítima quanto a minha. Isso cria um pacto silencioso de dignidade.
A psicologia contemporânea reforça o impacto da escuta ativa no bem-estar emocional. Estudos da psicologia positiva apontam que ser escutado é uma das experiências mais gratificantes que alguém pode ter. O simples ato de narrar uma dificuldade, e perceber que o outro realmente escutou, já diminui a carga de estresse, amplia a resiliência e fortalece a autoestima.
Também na terapia cognitivo-comportamental, percebe-se que a qualidade da escuta do terapeuta é decisiva para que o paciente consiga reestruturar suas crenças. Sem escuta, não há espaço para a reorganização da narrativa pessoal. E mesmo em contextos de mediação de conflitos, a escuta ativa se revela essencial: é quando as partes se sentem ouvidas que se abre a possibilidade de diálogo e resolução.
Na minha vivência, como conselheiro corporativo, mentor e psicanalista, noto como muitas vezes as pessoas não pedem soluções, mas apenas espaço para serem escutadas. A escuta, nesses casos, já é terapêutica. É como se o simples fato de alguém sustentar meu discurso com atenção amorosa já fosse suficiente para que eu me reorganize por dentro.
Penso, por exemplo, em reuniões de trabalho onde alguém propõe algum tema difícil, ou abre uma conversa delicada, traz um tema controverso ou aponta uma dificuldade. Muitas vezes, ele não busca um manual pronto de respostas. Busca reconhecimento. Busca sentir-se visto. Quando escuto sem interromper, sem apressar, percebo que sua própria fala já contém as sementes da solução.
Do ponto de vista filosófico, escutar ativamente é um exercício ético. Emmanuel Lévinas fala da alteridade (qualidade do que é diferente e a capacidade de se colocar no lugar do outro), como fundamento da ética: é o rosto do outro que me convoca à responsabilidade. Escutar é atender a esse chamado. É reconhecer que minha liberdade encontra limite no direito do outro de existir plenamente.
Essa dimensão ética da escuta ativa é crucial na gestão de relacionamentos. Pois gerir não é manipular, é cuidar. Não é impor, é dialogar. Não é apenas conduzir pessoas para metas, mas criar ambientes em que a dignidade seja preservada. E a dignidade começa pelo reconhecimento da voz.
Quando escuto, ergo uma ponte entre o eu e o outro. Uma ponte que não apaga diferenças, mas que as torna fecundas. Escutar é aceitar que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. É por isso que digo: a escuta ativa é uma política da convivência inteligente.
Na sociologia, autores como Jürgen Habermas destacam a centralidade da comunicação para a vida democrática. Habermas fala da “ação comunicativa” como horizonte de uma sociedade baseada na razão dialógica. A escuta ativa é a expressão prática desse ideal: sem escuta, não há deliberação democrática, não há comunidade viva, não há coesão social.
Se ampliarmos isso para sistemas complexos (famílias etc.), e organizações corporativas e sociais, percebemos que onde não há escuta de membros, sócios, colaboradores ou clientes, as relações tornam-se frágeis, autorreferenciais, incapazes de se adaptar. Se não há escuta entre os líderes e diretores, a situação fica mais complexa ainda; torna-se “cabo de guerra”, onde os interesses individuais sobrepõem-se às demandas ou necessidades coletivas. Já aquelas que cultivam uma escuta permanente constroem resiliência, porque captam sinais, ajustam rumos e mantêm vínculos de confiança.
Eu vejo que, em tempos de excesso de informação, a escuta ativa se torna estrategicamente necessária. Recebemos e construímos mensagens e estímulos intensos e constantemente, mas nem sempre nos sentimos escutados. Escutar, nesse cenário, é contracultural: é resistir à lógica da pressa, da resposta imediata, da superficialidade.
Na minha trajetória, percebo que a escuta ativa é também um exercício de autoconhecimento. Para escutar o outro, preciso primeiro calar minhas próprias vozes internas. Preciso aquietar meu julgamento, minha ansiedade de resposta, minha ânsia de controle. Escutar é aprender a esperar.
Essa espera, por vezes desconfortável, é também fecunda. Ela me ensina a paciência, a humildade e a coragem de não ter todas as respostas. Aprendo que escutar é um ato de fé: acreditar que o outro tem algo a dizer que pode me enriquecer, mesmo quando não concordo.
Além disso, a escuta ativa me conecta ao sentido da reciprocidade. Quando sou escutado, sinto-me valorizado; e quando escuto, valorizo o outro. É nesse movimento de troca que se edifica a confiança.
Na gestão de equipes ou de grupos, a escuta ativa se traduz em liderança mais humana e eficaz. Líderes que escutam conseguem captar as nuances do ambiente, identificar conflitos latentes, reconhecer talentos ocultos. Mais ainda: líderes que escutam tornam-se referenciais de confiança.
Eu mesmo, em experiências profissionais, já vi equipes e grupos se desestruturarem por ausência de escuta. Palavras ditas em vão, reuniões em que ninguém se sentia escutado, decisões tomadas unilateralmente. O resultado era desmotivação, distanciamento, perda de energia, além de brigas e discussões sem sentido.
Por outro lado, já presenciei transformações impressionantes quando a escuta foi cultivada. Ambientes tensos se tornaram mais leves, rivalidades foram administradas, histórias entendidas, pessoas antes retraídas passaram a contribuir, soluções criativas emergiram do simples fato de alguém ter se sentido escutado.
É curioso notar como a escuta ativa também é motor de inovação. Muitas vezes, pensamos que inovar é apenas criar algo inédito. Mas, na prática, inovar é perceber de modo novo aquilo que já existe. E isso só é possível se escutamos com atenção.
Escutar clientes, escutar diferentes, por exemplo, é fonte inesgotável de insights. Escutar colaboradores revela potenciais ainda não explorados. Escutar parceiros abre portas para colaborações inéditas.
Na era digital, em que tanto se fala de big data e inteligência artificial, acredito que a escuta humana, genuína, continua sendo insubstituível. Pois não há algoritmo que capture o silêncio carregado de sentido, ou o tremor da voz que revela vulnerabilidade.
Desafios da escuta ativa:
Não romantizo a escuta ativa. Sei que ela exige disciplina, presença e, muitas vezes, coragem. Escutar pode ser doloroso, porque o que o outro diz nem sempre é o que eu gostaria de escutar. Pode ser frustrante, porque demanda tempo em um mundo acelerado. Pode ser desafiador, porque me confronta com minhas próprias limitações.
Mas é justamente nesses desafios que reside sua potência. Ao escutar, coloco-me em posição de vulnerabilidade: reconheço que não controlo tudo, que dependo do outro para compreender melhor a realidade. Esse reconhecimento é libertador.
Gosto de pensar a escuta ativa como uma arte. Uma arte relacional, que mistura técnica, sensibilidade e ética. Uma arte que se aprende praticando, errando, recomeçando. Uma arte que nunca se esgota, porque cada encontro é único.
Na prática, escutar ativamente é como afinar um instrumento musical. Preciso ajustar minhas cordas internas (atenção, paciência, empatia), para que a melodia do encontro soe harmônica. E, quando isso acontece, sinto que o relacionamento ganha nova densidade.
Lembro-me de uma situação concreta em que um gestor empresarial enfrentava altos índices de rotatividade em sua equipe. Havia tentado aumentar salários, criar bônus, melhorar a infraestrutura. Nada parecia resolver. Quando nos sentamos para refletir, percebemos que o problema era simples, mas profundo: os colaboradores não se sentiam escutados.
Iniciamos então um processo de encontros de escuta ativa. Em vez de reuniões apenas para repassar tarefas, criamos espaços para que cada voz fosse ouvida. Aos poucos, o clima organizacional mudou. O índice de rotatividade caiu, e os próprios funcionários relataram sentir-se mais motivados.
Outro caso, em contexto comunitário, envolveu um grupo em conflito por diferenças religiosas. A tensão era tão grande que já não havia diálogo. Foi pela escuta ativa, mediada com paciência, que surgiram narrativas comuns: todos, no fundo, desejavam segurança para seus filhos, dignidade em suas vidas e respeito às suas crenças. Essa descoberta partilhada foi possível apenas porque alguém decidiu escutar. Esses exemplos me confirmam: a escuta ativa não é retórica. É prática concreta de transformação.
Vivemos hoje em um ambiente em que a comunicação é acelerada por plataformas digitais. Mas, paradoxalmente, a escuta verdadeira parece cada vez mais rara. Nos aplicativos de mensagem, respondemos sem ler com atenção; nas redes sociais, interagimos apenas com fragmentos.
Acredito que a escuta ativa precisa se reinventar nesse cenário. Precisa incluir pausas, feedbacks mais conscientes, tempos de silêncio mesmo em ambientes virtuais. Quando escrevo uma mensagem e recebo uma resposta que mostra que o outro realmente entendeu, sinto o mesmo alívio que numa conversa presencial.
Na gestão de relacionamentos digitais, a escuta ativa é antídoto contra a superficialidade. É ela que distingue um atendimento robótico de uma relação humanizada.
Para resumir tudo o que disse, eu afirmo: a escuta ativa é um caminho de humanização. É ela que dá corpo ao amor como força criadora, que sustenta o dever como pacto de reciprocidade, que transforma o medo em guardião da vida, que orienta a ira para a defesa da dignidade.
Na gestão de relacionamentos, a escuta ativa é o que impede a fragmentação e favorece a integração. É o que transforma grupos em comunidades, equipes em coletivos criativos, organizações em organismos vivos.
Escutar, no fim das contas, é uma escolha. Uma escolha por estar presente, por reconhecer o outro, por apostar no diálogo. É um ato de fé na palavra e no silêncio, na vulnerabilidade e na força, na singularidade e na interdependência.
Assim, sigo aprendendo a escutar. E cada vez que escuto, renovo minha convicção de que não há inteligência mais poderosa do que a relacional. Pois é ela que nos lembra, sempre, que ninguém se humaniza sozinho.
Pense e reflita sobre isso.
HomeroReis.
Curitiba, PR, setembro/25

Reflexões sobre Coerência, Relações e Sentido©[1]
Quando utilizo a expressão “esquizofrenia organizacional”, não me refiro a um diagnóstico clínico, mas a uma metáfora poderosa para descrever o desencontro entre o que se proclama e o que se pratica. É um hiato que separa valores anunciados de condutas efetivas; um descompasso que se manifesta tanto em instituições quanto em pessoas. No fundo, é a incoerência como modo de existência: uma vida em que se defende a ética no discurso e se pratica a transgressão nos bastidores, em que se fala de cuidado mas se age com descaso, em que se promete inclusão mas se reproduz exclusão. Essa incoerência, embora muitas vezes silenciosa e imperceptível no início, vai corroendo os alicerces da confiança, minando a credibilidade e desestruturando os vínculos que sustentam toda forma de convivência. Como se isso não bastasse, a esquizofrenia organizacional bloqueia as ações de longo prazo, minando o propósito das instituições. Isso porque constrói uma agenda oculta. Coisas são ditas “nos bastidores” e não sustentadas na vida pública; onde “sinceridade” é confundida com agressividade, questões pessoais disfarçados de “compromissos”, solidariedade encobrindo conflitos de interesse.
A esquizofrenia, em seu conceito técnico, é um transtorno mental, marcado por uma profunda dissociação entre percepção, pensamento, emoção e comportamento. Quem vive com essa condição experimenta uma ruptura na integração da realidade: acredita em coisas que não existem, ideias que não encontram base no mundo objetivo, sente afetos que não se ajustam às circunstâncias. Suas consequências traduzem um empobrecimento da vida emocional e social. A esquizofrenia é antes de tudo uma fragmentação da percepção, da razão, da afetividade e da conduta.
Quando transporto essa conceituação para o universo das organizações, encontro um paralelo inquietante. Vejo instituições que, como sujeitos em sofrimento psíquico, vivem uma cisão interna entre o que percebem, dizem, o que sentem e o que fazem. O discurso institucional, como um delírio socialmente aceito, anuncia valores elevados: ética, sustentabilidade, inclusão, bem-estar. Mas a prática cotidiana revela outra realidade, muitas vezes contraditória: ciúmes, invejas, comportamento “bate-assopra”, exploração de pessoas, descaso ambiental, exclusão velada, sobrecarga de trabalho. É como se a organização tivesse suas próprias alucinações, vendo-se como algo que não é, projetando uma imagem que não se sustenta na experiência real de quem a habita.
Nesse sentido, a esquizofrenia organizacional não é apenas incoerência. É uma ruptura do vínculo entre palavra e gesto, entre intenção e ação, entre identidade proclamada e vida concreta. Tal como no indivíduo em sofrimento, a organização perde a unidade de seu “eu” coletivo.
Costumo dizer que essa esquizofrenia é como uma rachadura em uma grande parede. No começo, quase invisível, não incomoda. Mas, com o tempo, se amplia, e toda a estrutura começa a se fragilizar. Uma organização pode continuar erguida por algum tempo, sustentada por aparências, slogans ou marketing, mas inevitavelmente essa rachadura se tornará visível e colocará tudo em risco. O problema não é apenas institucional; ele se infiltra nas relações entre as pessoas que compõem a organização. Cada líder ou colaborador, cada cliente, cada fornecedor sente, mesmo que inconscientemente, o peso da incoerência.
Tenho acompanhado organizações que falam de resultados e futuros com entusiasmo em seus relatórios anuais, mas cujas práticas diárias revelam desperdício, poluição e desordem na gestão. Outras que proclamam a diversidade como bandeira, mas mantêm em seus conselhos e diretorias apenas perfis homogêneos, fechados à diferença. Propósitos louváveis e práticas corrosivas. Vejo empresas que se dizem defensoras da ética, mas convivem naturalmente com pequenas corrupções cotidianas, justificadas em nome da sobrevivência do negócio. Também encontro instituições que defendem publicamente o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas que esperam que seus colaboradores se sacrifiquem em jornadas intermináveis, respondendo e-mails de madrugada ou abrindo mão de finais de semana.
O curioso é que muitas vezes essa incoerência não nasce da má-fé, mas de um conjunto de concessões aparentemente inocentes. Surge quando se diz: “vamos abrir uma exceção só desta vez”, “todos fazem assim, não podemos ficar para trás”, “precisamos bater a meta a qualquer custo”. Essa repetição de pequenas justificativas acaba criando uma cultura em que o discurso e a prática se divorciam. O resultado é uma vida organizacional esquizofrênica: proclama-se um valor para fora, pratica-se outro para dentro. Mas o pior da esquizofrenia organizacional é a dificuldade das pessoas de conversarem amigavelmente sobre as “coisas que discorrem”. Tudo acaba sendo um grande “ringue” de exercício do poder, tentativa de manipulação, ameaças veladas.
As consequências são devastadoras. A confiança se desfaz, e sem confiança não há vínculo que sobreviva. A motivação se dilui, porque ninguém se sente mobilizado por discursos vazios. Os conflitos internos aumentam, porque os valores deixam de ser referência compartilhada e passam a ser apenas retórica. A reputação, que leva anos para ser construída, pode ser destruída rapidamente quando incoerências vêm à tona. Mas talvez a consequência mais dolorosa seja a perda de sentido: quando uma pessoa ou organização deixa de alinhar discurso e prática, perde também a razão pela qual existe, porque os valores deixam de ser bússola e se tornam apenas enfeite.
A origem dessa esquizofrenia é multifacetada. Na maior parte das vezes ela nasce da liderança. Um líder incoerente, que não encarna os valores que proclama, cria descrédito em cascata. Mas também pode nascer de falhas de comunicação, quando mensagens se perdem e a prática vai em direção oposta ao discurso. Outras vezes é fruto do excesso de foco em resultados, em que o número vale mais que a dignidade. Há também a cultura da aparência, que prioriza a imagem externa e descuida da prática interna, criando um teatro de valores que nunca se tornam realidade. Em muitos contextos, a causa é ainda mais sutil: o medo do conflito. As pessoas percebem incoerências, mas calam-se, receosas de desagradar ou de colocar em risco sua posição. O silêncio, nesse caso, se torna cúmplice da fragmentação. Mas também há o caso dos “ultra comprometidos”; ou seja, pessoas que se julgam detentores das “verdades do negócio” e, em nome disso, perdem a elegância e o trato cortes com os demais.
Superar a esquizofrenia organizacional exige coragem e humildade. Coragem para enfrentar-se a si mesmo em um processo de autoconhecimento, como também para enfrentar dilemas éticos e para recusar atalhos convenientes que traem os valores fundamentais. Humildade para admitir erros, assumir vulnerabilidades e abrir espaço para conversas sinceras. A coerência não se constrói com discursos apenas, mas com gestos cotidianos, às vezes simples, mas sempre consistentes. Um pedido de desculpas sincero pode reconstruir mais confiança do que uma campanha de marketing milionária. Uma decisão difícil, tomada em nome de um valor ético, pode inspirar mais lealdade do que qualquer incentivo financeiro. A competência de atuar em grupo, buscando o consenso, vale mais do que a arbitrariedade de uma ação isolada, ainda que legítima. Entendendo que às vezes “posso fazer, mas não devo”. Esse discernimento nos conduz à saúde organizacional.
Nesse ponto, percebo como a Inteligência Relacional se apresenta como um verdadeiro antídoto contra a esquizofrenia. Ela nos lembra que o valor de nossas ações não está apenas no que pretendemos, mas no que o outro percebe, sente e experimenta em contato conosco. Não refere a como atuo na minha “boa vontade”, mas como o outro percebe isso e como o “meu modo de ser” impacta os outros. Somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo efeito que causamos. Isso significa que não basta ter boas intenções: é preciso alinhar o discurso às práticas de forma que o outro possa experimentar a coerência em cada gesto.
A coerência, nesse sentido, é mais que uma virtude: é a garantia de segurança relacional. Quando ajo em consonância com aquilo que proclamo, ofereço ao outro um espaço previsível e confiável. A confiança nasce dessa previsibilidade. A incoerência, ao contrário, gera incerteza, porque nunca se sabe qual versão da organização “está funcionando”: a do discurso ou a da prática. E a incerteza é corrosiva para qualquer vínculo.
A vida me mostrou que a coerência não significa perfeição. Significa autenticidade. Implica mostrar-se vulnerável, assumir limites, pedir desculpas quando necessário e entender que é na qualidade das relações que construímos o futuro. É justamente na vulnerabilidade que a humanidade se manifesta, e isso não fragiliza os vínculos; pelo contrário, fortalece-os. Quando um líder reconhece que errou e se dispõe a corrigir o rumo, inspira mais confiança do que quando julga estar sempre certo.
As aplicações práticas dessa reflexão são inúmeras. No campo da convivência humana corporativa, coerência significa transformar o discurso de cuidado em políticas concretas de bem-estar. No marketing, significa que as promessas feitas devem corresponder à experiência entregue, sob pena de transformar as relações em engodos. Na governança, significa alinhar relatórios de desempenho e sustentabilidade às práticas diárias, evitando o risco da “maquiagem verde”. De fato, refere-se à prática de uma empresa ou instituição que divulga(interna ou externamente) uma imagem de sustentabilidade, responsabilidade e coerência que não correspondem às suas ações reais (internas ou externas). Ou seja, usa-se um discurso ou marketing apenas para melhorar a reputação, sem mudanças consistentes na suas ações cotidianas. Na educação corporativa, significa ensinar que ética e coerência não são acessórios, mas fundamentos. Até mesmo nas relações familiares, coerência significa viver aquilo que se ensina, para que os filhos aprendam mais com o exemplo do que com as palavras. Para a liderança, significa também ser exemplo de fato.
Percebo que a coerência é um processo “terapêutico” contínuo contra a esquizofrenia organizacional, e nunca um estado acabado. Ela nasce do autocuidado, porque não posso ser coerente se vivo em contradição comigo mesmo. Ela se alimenta da escuta ativa, porque é ouvindo o outro que percebo minhas incoerências. Ela cresce na responsabilidade compartilhada, porque a cultura de uma organização não é obra apenas da liderança, mas de todos. E ela se consolida na coragem ética, quando assumimos a decisão de permanecer fiéis aos nossos valores, mesmo quando isso custa caro.
Gosto de pensar na esquizofrenia organizacional como um espelho incômodo. Ela nos mostra nossas contradições, expõe nossas feridas, mas também nos convida à transformação. Onde há incoerência, há possibilidade de aprendizado. Onde há fragmentação, pode nascer reconciliação. Cada contradição é um chamado à coerência, cada falha é um convite à responsabilidade. O risco é real, mas a oportunidade também é.
No fim, acredito que a coerência é o maior patrimônio que uma pessoa ou organização pode possuir. Não se conquista de uma vez por todas, mas se cultiva em pequenas escolhas diárias. É ela que sustenta reputações, que fortalece vínculos e que dá sentido ao trabalho. Quando penso no legado que desejo deixar, não me interessa ser lembrado pelas palavras bonitas que escrevi ou pronunciei, mas pela coerência entre o que disse e o que pratiquei. Porque, no fundo, é isso que permanece: a confiança que inspirei, os vínculos que construí, o sentido que ajudei a semear.
E se a esquizofrenia organizacional é um risco constante, ela também é um chamado à vigilância permanente. Cada gesto incoerente é um lembrete de que precisamos ajustar o rumo. Cada contradição percebida é uma oportunidade de recomeço. Ser coerente é um exercício de humanidade, uma escolha diária de alinhar discurso e prática, palavra e gesto, valor e conduta. É nesse alinhamento que se constrói a verdadeira grandeza das pessoas e das instituições.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília,outubro/2025

Da Violência à Paz
by Homero Reis©
O Cálice e a Espada (Riane Eisler)[1], é um livro essencial. A partir de uma pesquisa longitudinal de dez anos, o que ela nos oferece não é apenas uma interpretação da história humana, mas uma proposta para o porvir. Lê-lo fez-me sentir como se tivesse em mãos, duas chaves simbólicas. Uma abre a porta da violência que atravessa nossa história; a outra abre a possibilidade de um futuro tecido pela paz.
Ela nos desafia a reconhecer que a forma como estruturamos a vida em sociedade não é a única possível. Somos filhos de escolhas, e podemos escolher de novo. De fato, como gosto de dizer, “o futuro não existe como tal. Somos frutos de nossas escolhas”.
A pergunta desafiadora que me atravessa ao ler Eisler é simples e poderosa: existiram sociedades pacíficas em nossa história? Se a resposta for “sim”, então a violência que naturalizamos como destino é evitável. Ela é apenas uma narrativa dominante. E se houve outras narrativas de parceria, cuidado e respeito, então nós podemos, hoje, recontar a nossa história e reescrevê-la no presente a partir de outras perspectivas.
O que lhes quero trazer nesse texto é minha visão e algumas reflexões sobre o trabalho de Eisler.
A metáfora central é luminosa. O cálice simboliza culturas matrísticas, voltadas ao acolhimento, à nutrição, à vida que se renovam no ventre e no vínculo. É um recipiente sagrado que guarda e compartilha; é a taça que une, não a lâmina que separa. Em contrapartida, a espada representa as culturas patriarcais, fundadas na violência, na guerra e na exploração. A espada corta, fere, divide. É o símbolo da dominação que sustenta a crença de que só pela força se constrói um mundo melhor.
Durante trinta mil anos, as sociedades patriarcais nos ensinaram que a guerra e a exploração eram os motores do progresso. Esse conceito nasce do discurso de que a violência pode ser legitimada em macro ou micro escala. É a ideia do mais forte contra o mais fraco, do “olho por olho e do dente por dente”. A lógica é simples e brutal: se não posso explorar, eu guerreio para conquistar. E assim consolidamos a ideia de que dominar é a única forma legítima de nos relacionarmos. Mas Eisler nos lembra: isso não é destino, é escolha. E escolhas podem ser revistas.
O nascimento das perguntas humanas
Se voltarmos à pré-história, percebemos que a narrativa hostórico-social nasce de três perguntas fundantes: De onde viemos? O que estamos fazendo aqui? Para onde vamos?
Essas questões ecoam desde as pinturas rupestres até as filosofias contemporâneas. Não temos respostas definitivas. O que temos são narrativas, crenças, mitos. E esses mitos moldam a forma como nos relacionamos.
O fato incontornável que as primeiras sociedades puderam observar era simples: todos nós viemos da mulher. O vínculo entre ato sexual e gravidez era invisível ao olhar imediato. O tempo entre o coito e os sinais da gestação era longo demais para ser percebido. Por isso, os povos primitivos só podiam concluir uma coisa: a vida nasce da mulher, assim como todo animal nasce de sua mãe. Mas, como não era visível a relação entre coito e gravidez, as comunidades primitivas acreditavam na ideia de que a fecundação era um “ato dos deuses”, e, portanto, a mulher era o caminho pelo qual a divindade entrava na história humana. Tanto é que as narrativas das concepções divinas são comuns na história. As mais conhecidas são: o nascimento de Hércules, filho de Zeus com a mortal Alcmena; e o nascimento de Jesus, filho de Jeová com Maria. No entanto, há várias outras histórias semelhantes. Essa percepção fundou uma forma de organização relacional: a cultura matrística, baseada no acolhimento, no cuidado e na integração, tendo por centralidade a figura feminina.
Nessas culturas, havia luta, competição, conflitos, mas não havia a violência como princípio. Divergir não era destruir; disputar não era exterminar. O ventre materno era metáfora de comunidade: nele cabiam todos, sem distinção. Esse modelo ainda existe entre nós. Os jogos olímpicos, por exemplo, são expressões de competição, luta e disputa, mas não de inimizades ou violência.
A transição para a dominação
Com o tempo, a humanidade percebeu o papel masculino na concepção. O esperma passou a ser visto como a semente indispensável da vida. E a narrativa mudou: do ventre da mulher para a “semente” do homem. A sacralidade feminina foi sendo substituída pela supremacia masculina. E com ela nasceram estruturas patriarcais que subjugaram e extinguiram sociedades matrísticas inteiras.
Essa mudança não foi apenas biológica, foi política. A dominação masculina não se impôs pela persuasão, mas pela violência, pela criação de mitos aterrorizantes e pela manipulação da ignorância. Se uma colheita queimava, era porque a divindade masculina exigia submissão. Se uma doença devastava, era punição por não obedecer. Surgiu a figura dos intermediários, sacerdotes que não apenas cuidavam da espiritualidade, mas a usavam para impor medo e controle. Criou-se o inferno como ameaça e a salvação como barganha. A espada substituiu o cálice. O medo passou a reger o vínculo. A relação deixou de ser parceria e tornou-se hierarquia.
Quando penso no que significa viver em uma cultura patriarcal, vejo diante de mim um espelho que, por séculos, refletiu apenas um lado da humanidade. É como se tivéssemos aprendido a caminhar usando apenas uma perna: conseguimos nos mover, mas de forma manquitola, instável, sempre desequilibrada. A cultura patriarcal nos fez acreditar que a força, a dominação e a hierarquia eram os únicos instrumentos capazes de sustentar a vida em sociedade.
Essa cultura se estrutura em dois eixos principais: a guerra e a exploração. Se não é possível explorar, guerreia-se para conquistar e explorar depois. Ao longo da história, povos foram dominados, riquezas expropriadas, culturas inteiras sufocadas por esse modelo. A espada se tornou metáfora e prática: ela corta, divide, subjuga. Aprendemos a acreditar que sem espada não haveria ordem, progresso, futuro. Daí para o conceito de supremacia do homem, foi fácil. E dessa facilidade para se “legitimar” uma narrativa da “submissão” da mulher foi mais fácil ainda. Com isso “aceitamos” relações tóxicas, comportamentos abusivos. O feminicidio e a violência de gênero estão por todos os lados.
Mas o patriarcado não se limita a campos de batalha ou tratados políticos. Ele se infiltra no cotidiano. Está na maneira como famílias foram organizadas sob o mando do homem, no modo como religiões ergueram deuses masculinos guerreiros, na ideia de que obediência é mais importante que diálogo. Está na crença de que a violência é inevitável e até necessária. Crescemos naturalizando isso, como se fosse a ordem das coisas.
A cultura patriarcal, no fundo, é uma narrativa de poder. É a manipulação da ignorância para manter a dominação. Foi assim quando povos inteiros foram convencidos de que um deus vingativo exigia submissão sob pena de castigo e sacríficos. Foi assim quando se construiu o medo do inferno como ferramenta de controle. É assim ainda hoje, quando líderes se apresentam como salvadores da pátria, sustentando-se na lógica da força e da intimidação.
O preço dessa narrativa é alto. Perdemos a capacidade de nos indignar com o absurdo. Aceitamos fome em meio à abundância, exclusão em meio à tecnologia, guerras em meio a tantas alternativas de diálogo. É como se a cultura patriarcal tivesse anestesiado nossa sensibilidade, tornando normal o que deveria nos escandalizar.
O patriarcado nos ensina a ver diferenças como ameaças e não como riquezas. Ele nos faz acreditar que o outro só pode existir sob minha condição: ou se submete, ou é inimigo. A diversidade, que poderia ser um mosaico vivo de possibilidades humanas, é reduzida a fronteiras rígidas. Quem pensa diferente vira adversário; quem é vulnerável vira descartável.
Ao refletir sobre isso, percebo que a cultura patriarcal é como uma lente que distorce o real. Ao invés de enxergar o mundo como uma teia interdependente, ela o apresenta como um campo de batalha. Ao invés de percebermos a vida como dom compartilhado, passamos a vê-la como território a ser conquistado.
Desmontar essa lente não é fácil, porque crescemos dentro dela. Mas é necessário e urgente. Se quisermos um futuro sustentável, justo e humano, precisamos questionar a herança patriarcal que ainda orienta nossas escolhas. Precisamos reaprender a caminhar com as duas pernas: força e cuidado, razão e afeto, masculino e feminino, convivendo sem hierarquia. Só assim, talvez, possamos reencontrar o equilíbrio perdido e devolver à humanidade a capacidade de florescer em parceria, e não em dominação.
A perda da indignação
Eisler nos convida a observar como, nessa transição, perdemos a capacidade de nos indignar. Como explicar Hiroshima e Nagasaki? Como justificar o Holocausto? Que racionalidade pode sustentar tamanha barbárie? A cultura patriarcal, baseada na dominação, naturaliza absurdos e constrói o discurso de que “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. O intolerável se torna rotina. Aceitamos a exclusão, a fome, a exploração, como se fossem leis da natureza. E quando perdemos a capacidade de dizer “isso é absurdo”, nos tornamos cúmplices do silêncio que legitima a barbárie.
Rastros da cultura matrística
Quando mergulho no conceito de cultura matrística, percebo que não se trata apenas de uma forma de organizar a sociedade, mas de uma forma de sentir o mundo. É como se o coração fosse colocado no centro da vida comunitária, orientando gestos, decisões e vínculos. A cultura matrística nasce do reconhecimento de que a vida é um dom que brota do ventre e que deve ser cuidado como um tesouro coletivo.
Ao contrário da lógica da imposição, a matriz dessa cultura é o acolhimento. Não o acolhimento condescendente, mas aquele que nasce da certeza de que cada ser tem um lugar legítimo no tecido da vida. É como uma árvore: seus galhos se abrem em direções distintas, mas todos encontram alimento na mesma seiva. Nas comunidades matrísticas, a diferença não era ameaça, mas variedade de cores dentro de um mesmo quadro.
O eixo não estava no poder de submeter, mas no poder de nutrir. Nutrir a vida, os vínculos, a diversidade. Nessa perspectiva, não se precisava de intermediários que ditassem o medo; bastava a experiência cotidiana do cuidado para compreender a espiritualidade. A mãe que amamenta, o grupo que partilha a colheita, os anciãos que transmitem sabedoria: tudo isso formava uma rede de significados que fortalecia o sentido de pertencimento.
É claro que nessas sociedades também havia conflitos e disputas. Mas o conflito não era tratado como sentença de destruição, e sim como ocasião para recompor os laços. Penso nisso como um vaso de cerâmica: quando trinca, não é descartado, é reparado com cuidado. A vida coletiva era vista como esse vaso comum, que precisa ser preservado porque todos bebem dele.
A espiritualidade matrística também reflete esse horizonte. Não haviam deuses distantes, imponentes e punitivos, mas representações do sagrado ligadas à terra, à fertilidade, ao ciclo da vida. O sagrado não era usado para amedrontar, mas para celebrar. A morte não aparecia como condenação, e sim como retorno ao todo. A existência era entendida como círculo, não como linha de chegada.
Minha tradução dessa visão para o presente está gesto de abraçar. O abraço não elimina a diferença de altura, peso, idade ou origem, mas integra as diferenças em um espaço de proximidade. A cultura matrística é esse abraço social: nela cabem as tensões, mas sem expulsar; cabem as divergências, mas sem anular.
No nosso tempo, marcado por tantas urgências, recuperar a inspiração matrística é reconhecer que não há futuro possível sem cooperação. Significa redescobrir que a vida floresce mais quando é partilhada, e que o cuidado é força transformadora, não sinal de fraqueza. É admitir que somos todos viajantes de uma mesma travessia e que, sem confiança mútua, não chegaremos a lugar algum.
A cultura matrística, portanto, não é utopia distante. É memória viva e possibilidade concreta. É um convite para reorganizar nossas relações sob o signo do vínculo e não da hierarquia. Minha filha Thirza Reis usa uma metáfora muito sutil para isso. No seu livro BASTA[2], ela diz que a cultura matrística “é como acender uma lamparina em meio à noite: talvez sua luz não afaste toda a escuridão, mas torna possível enxergar uns aos outros e continuar caminhando juntos”.
Vestígios da cultura matrística ainda sobrevivem. Eisler nos mostra exemplos contemporâneos. As Olimpíadas, por exemplo: competimos, disputamos medalhas, mas não transformamos o outro em inimigo. No fim, atletas se abraçam, reconhecendo-se como parte de uma mesma humanidade. É o espírito do jogo, não da guerra. Outro vestígio é a relação de muitas mães com seus filhos: acolhimento sem distinção, cuidado sem cálculo. Esses são ecos de um modo de ser que insiste em permanecer.
Patriarcal x Matrístico: dois modos de organizar a vida
A cultura patriarcal estrutura-se na lógica da dominação. Seu alicerce é a crença de que a força garante ordem e que a hierarquia é necessária para manter a sociedade unida. Guerra e exploração tornam-se instrumentos de progresso, e o outro é visto como ameaça ou recurso a ser controlado. A diversidade é percebida com desconfiança, e a diferença tende a ser anulada ou subjugada. O sagrado assume feições punitivas, legitimando a obediência pelo medo. Nessa lente, a vida é campo de batalha, e a vitória de uns exige a derrota de outros.
Em contraste, a cultura matrística organiza-se pelo cuidado e pela integração. O vínculo é o centro: nutrir, proteger, celebrar e reparar são gestos que mantêm a comunidade viva. O conflito não é sentença de exclusão, mas ocasião para recompor laços. O sagrado é próximo, ligado à fertilidade, à terra, ao ciclo da vida. A diversidade é vista como riqueza, e a morte não é castigo, mas retorno ao todo.
Enquanto o patriarcado corta como espada, o matrístico acolhe como cálice. Um modelo fragmenta, o outro integra. A escolha entre eles revela não apenas estruturas políticas, mas visões de mundo. O que lhes convido a fazer é aprender com ambos e a construir um novo horizonte.
A Cultura da Parceria: o horizonte possível
Creio que não precisamos ficar presos entre os extremos da espada patriarcal e do cálice matrístico. Podemos escolher uma terceira via: a cultura da parceria. Nela, não se trata de eliminar a força ou negar o cuidado, mas de integrá-los em uma nova forma de convivência.
A parceria reconhece que a vida é uma teia de interdependências. Cada pessoa é singular, mas essa singularidade ganha sentido quando colocada em relação com os outros. Diferente do patriarcado, não há hierarquia de dominação; diferente do matrístico, não há idealização da harmonia absoluta. O que existe é a construção cotidiana de equilíbrio, feita de respeito, reciprocidade e dignidade compartilhada.
Essa cultura valoriza a educação não violenta, que desperta talentos em vez de padronizar. Valoriza redes de ajuda, que sustentam a vida coletiva com solidariedade e não com exploração. Valoriza a diversidade como fonte de criatividade, e não como ameaça.
A parceria é, acima de tudo, uma escolha. É decidir que a paz não é ausência de conflito, mas presença de vínculos fortes o suficiente para enfrentar tensões sem romper. É o horizonte que nos convida a trocar a lógica do medo pela lógica do cuidado e, assim, escrever um futuro mais humano.
Mas o que significa viver matrísticamente hoje?
Viver matrísticamente não é voltar à pré-história. É atualizar valores de respeito, parceria, cuidado amoroso, sustentabilidade e inclusão. É reconhecer que diferenças não são ameaça, mas riqueza. É trocar a lógica do “ou eu ou você” pela lógica do “eu com você”.
Para isso, proponho três caminhos práticos:
- Educação não violenta. A escola que massifica é como um moedor de carne: diferentes cortes, alcatra, filé, pernil, entram distintos na máquina e saem todos iguais, transformados em carne moída. Essa homogeneização mata a singularidade. Precisamos de uma educação que reconheça talentos únicos, que cuide das diferenças em vez de esmagá-las. Educar não é padronizar, é cultivar.
- Redes de ajuda. Somos autônomos, mas ninguém é autossuficiente. Eu posso estar aqui escrevendo, mas alguém garante a energia elétrica, alguém colhe os alimentos que comi, alguém pavimenta a rua por onde andei, alguém me ajudou a chegar até aqui. Somos parte de uma grande rede de interdependência. Reconhecer isso desperta gratidão e responsabilidade. É como perceber que cada fio invisível sustenta uma teia: ao cuidar de um, sustento a todos.
- Revisão da racionalidade. A razão que justifica bombas e genocídios não é verdadeira razão, é delírio. Precisamos resgatar os afetos como parte do pensar. Razão sem afeto é cálculo frio; afeto sem razão é impulso cego. Só juntos podem gerar sabedoria. Acolher a emoção como parte legítima da vida é abrir espaço para soluções pacíficas.
A paz como escolha cotidiana
Eisler insiste: a paz não é política de Estado, é escolha pessoal. Gandhi mostrou que a revolução pode ser não violenta. Jesus escolheu a paz mesmo diante da cruz. A paz não é ausência de conflito, mas decisão de não responder com violência. É como um rio que, diante da pedra, não a quebra, mas a contorna. A água não deixa de ser água; segue fluindo até o mar.
Podemos cultivar essa paz em gestos simples: aprender a conversar sem agressão; reconhecer o outro como legítimo em sua diferença; praticar ajuda não monetizada, baseada na necessidade e não no mérito; escolher não se deixar contaminar pela lógica da violência.
A convivência pacífica nasce quando descubro que ninguém pode me agredir sem meu consentimento interior. Posso rejeitar a violência com coração aberto, como quem segura a espada do outro e a transforma em arado.
O desafio do nosso tempo
Vivemos um século de paradoxos. De um lado, temos tecnologia que nos conecta instantaneamente; de outro, seguimos isolados em bolhas de intolerância. Produzimos alimento para todos, mas aceitamos a fome de milhões. Construímos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos desarmar o coração. É como se tivéssemos avançado no poder de multiplicar, mas regredido na sabedoria de compartilhar.
A cultura patriarcal nos ensinou a confundir força com grandeza, dominação com ordem, medo com obediência. O desafio agora é reaprender outra gramática: a da parceria, da ternura, da reciprocidade. Eisler chama isso de “cultura da parceria”.
Eu gosto de pensar como uma música em que cada instrumento é diferente, mas juntos criam harmonia. A diversidade não ameaça, enriquece.
Um fecho reflexivo
Por isso tudo, quero enfatizar o que estou propondo. Quando me aproximo do pensamento de Riane Eisler, encontro a chave que abre novos horizontes para compreender a vida em sociedade e justificar o que creio e defendo: o conceito de parceria. Não de uma parceria como um arranjo estratégico ou como um contrato entre partes que buscam benefícios mútuos. Falo de algo mais profundo, quase ontológico: uma maneira de organizar a vida que se opõe radicalmente ao modelo de dominação.
Por milhares de anos, fomos ensinados a acreditar na violência, na hierarquia e no controle como inevitáveis. Herdamos a lógica da espada: quem pode mais, manda; quem não pode (ou tem juízo), obedece. Essa visão estruturou nossas instituições, nossas economias e até nossas famílias. Mas quero crer que existe outro caminho: o caminho da cultura matrística, do cálice, que simboliza a nutrição, o cuidado e a partilha. Nesse contexto o conceito de parceria nasce exatamente na contra cultura, nos mostrando que não precisamos escolher entre ser dominadores ou dominados, podemos escolher ser parceiros.
Parceria, para mim, significa reconhecer que a vida é uma rede interdependente. É entender que a minha dignidade está ligada à dignidade do outro, que o meu florescimento só se cumpre quando o outro também floresce. É como uma orquestra: cada instrumento é diferente, com seu timbre e sua potência, mas só juntos produzem harmonia. Quando um tenta se impor sobre os demais, o resultado é ruído. A parceria é a música que só existe quando há escuta, reciprocidade e cuidado.
Ao longo da história, as culturas matrísticas viveram sob esse paradigma da parceria. Não eram sociedades perfeitas, mas estruturavam-se em torno de valores de respeito, inclusão e acolhimento. Não se tratava de negar conflitos, mas de resolvê-los sem violência como princípio. Essa herança nos lembra que o modelo da dominação não é natural nem inevitável: é apenas uma escolha histórica.
Trazer o conceito de parceria para os dias de hoje é um desafio urgente. Em um mundo que ainda insiste em medir valor pelo poder de dominar, falar de parceria soa quase revolucionário. É dizer que a verdadeira grandeza não está em impor, mas em compartilhar; não em vencer, mas em conviver. É afirmar que paz não é ausência de conflito, mas a ausência de confronto e na escolha consciente de viver sem violência.
Na prática, parceria se traduz em pequenas e grandes ações: educar de forma não violenta, construir redes de ajuda, respeitar as diferenças, aprender a conversar sem agredir. É decidir, todos os dias, que a vida vale mais quando é partilhada. É optar pelo cálice em vez da espada.
No fundo, parceria é um ato de fé: fé de que a humanidade pode aprender a se reconhecer não como inimigos em guerra, mas como companheiros de jornada. E é também um ato de coragem: coragem de desarmar a mão e abrir o coração. A realidade atual de nossa história é um alerta mais que urgente para que comecemos essa travessia. Eu aceito o convite, porque acredito que o futuro só será possível se for um futuro de parceria.
O cálice e a espada continuam diante de nós. Podemos escolher qual símbolo guiará nossas relações. A espada é rápida, cortante, sedutora. O cálice exige paciência, cuidado, tempo. A espada promete vitória, mas deixa rastros de sangue. O cálice não promete domínio, mas oferece comunhão. Entre cortar e nutrir, entre dividir e integrar, está a encruzilhada da humanidade.
A história nos mostrou o poder destrutivo da espada. Talvez seja hora de experimentar a sabedoria do cálice. Se o mundo for uma mesa, a espada a corta em pedaços; o cálice a reúne em torno do vinho partilhado. Se o mundo for um corpo, a espada o fere; o cálice o cura. Se o mundo for uma canção, a espada silencia; o cálice canta.
Escolher o cálice é escolher a vida. É olhar para o outro não como ameaça, mas como parte da mesma travessia. É aceitar que não somos donos do futuro, mas guardiões da possibilidade de futuro. É abrir espaço para que a próxima geração encontre não ruínas, mas sementes.
Ao trocar a lâmina pelo gesto, o medo pelo cuidado, a dominação pela parceria. Que sejamos capazes de transformar a violência em memória e a paz em prática. Que o cálice volte a ocupar nossas mãos, não como nostalgia de um passado perdido, mas como profecia de um futuro ainda possível.
Reflitam em paz!
Homero Reis
Brasília, outubro/2025
[1] Riane Tennenhaus Eisler (Viena 1931/xx) sobrevivente do nazismo, é uma acadêmica austríaca, historiadora cultural, escritora e ativista social.
É presidente do centro para “Estudos sobre Parceria”, na Califórnia/USA.
[2] REIS, Thirza; BASTA; Ed. Literare Books, SP/SP, 2025 – thirzar@gmail.com

Sempre que penso sobre a força dos relacionamentos humanos, volto ao poder de uma atitude aparentemente simples, mas profundamente transformadora: a escuta ativa. Escutar o outro é mais do que captar palavras; é entrar em sintonia com sua experiência, acolher suas emoções, perceber seus silêncios. É um gesto que, na superfície, pode parecer óbvio, mas que, em sua profundidade, revela-se como um dos pilares da convivência ética, da inteligência relacional e da gestão de vínculos duradouros.
Falo na primeira pessoa porque esse tema não é teórico, é visceral. Tenho experimentado, em minha vida e em minha prática profissional, os efeitos da escuta ativa como ferramenta de transformação individual e coletiva. Sinto que, quando escuto ativamente, eu não apenas compreendo o outro; eu me deixo tocar por ele. Isso me lembra Martin Buber, filósofo do diálogo, que dizia que o encontro autêntico se dá quando nos dispomos ao “Eu-Tu”, e não ao “Eu-Isso”. Na escuta ativa, coloco o outro no centro da relação, não como objeto de análise, mas como sujeito de dignidade.
A psicologia humanista, especialmente na obra de Carl Rogers, nos lembra que a escuta ativa é condição essencial para que o outro possa florescer. Rogers falava da “consideração positiva incondicional” como abertura para que o outro se revele sem medo de julgamento. Eu me identifico profundamente com isso. Quando escuto ativamente, sinto que ofereço ao outro uma espécie de solo fértil, onde sua palavra pode brotar sem ser arrancada ou sufocada. Por outro lado, quando percebo que alguém é capaz de escutar o outro, as distâncias se encurtam, o diálogo floresce, as soluções são encontradas, os acordos são feitos e os resultados desejados aparecem com mais vigor e perenidade.
Escutar não é apenas de uma técnica de comunicação. A escuta ativa é, para mim, uma postura existencial. É decidir estar presente no aqui e agora, com atenção plena, com empatia e respeito. É a antítese do automatismo que marca tantas conversas cotidianas, onde falamos mais para responder do que para compreender.
O filósofo Hans-Georg Gadamer, em sua hermenêutica, dizia que compreender é sempre um processo de fusão de horizontes. Essa fusão só acontece se eu estiver disposto a sair de meu próprio horizonte para me abrir ao do outro. A escuta ativa é justamente esse movimento de deslocamento: eu amplio meus limites para que o horizonte do outro encontre espaço em mim.
Muitas vezes, penso que escutar ativamente é como abrir as janelas de uma casa que há muito tempo está fechada. O ar novo entra, a luz se espalha, e eu descubro que havia cantos esquecidos. Assim também é na relação: a escuta areja, renova, expande.
Mas, por que temos tanta dificuldade em escutar o outro ou os outros? Escutar os outros deveria ser um gesto natural, mas na prática é um dos atos mais difíceis que realizamos. Muitas vezes carregamos conosco a ilusão de que estamos escutando, quando na verdade apenas esperamos a pausa alheia para introduzir a nossa própria fala. Esse comportamento nasce de diferentes causas. Uma delas é o ego inflado, que não aceita ser deslocado do centro da cena. O desejo de protagonismo nos leva a disputar espaço em cada conversa, como se o diálogo fosse uma arena em que importa mais vencer do que compreender.
Há também a influência da ansiedade e da pressa que marcam nossa época. Vivemos em um ritmo que não tolera o silêncio e que exige respostas rápidas. Escutar, no entanto, exige tempo, paciência e disposição para permanecer diante da palavra do outro sem antecipar conclusões. Muitas vezes a pressa nos leva a interromper frases, a completar pensamentos alheios, a reduzir a complexidade do que está sendo dito apenas para que possamos voltar a falar.
Outro fator relevante é a ausência de uma cultura de escuta. Desde a infância somos ensinados a falar, argumentar, defender ideias, apresentar trabalhos. A oratória é valorizada, mas a escuta raramente é cultivada como habilidade essencial. Crescemos em ambientes em que escutar não é sinal de maturidade, mas de passividade, como se o silêncio fosse sinônimo de submissão. Assim, não aprendemos a sustentar com dignidade o lugar de receptores da palavra alheia.
Há ainda o medo de se deixar afetar. Escutar verdadeiramente é perigoso, porque nos coloca diante da dor, da diferença e da vulnerabilidade do outro. Quem escuta com profundidade pode ser transformado, pode ter de rever certezas, pode perceber fissuras em suas próprias convicções. Muitos evitam a escuta justamente para não enfrentar esse espelho. É mais seguro manter-se na bolha das próprias opiniões do que permitir que a alteridade nos desestabilize.
Além disso, cada um carrega consigo uma multidão de ruídos internos. Preocupações, preconceitos, julgamentos e ansiedades funcionam como filtros que distorcem ou abafam o que o outro diz. Mesmo presentes fisicamente em uma conversa, às vezes estamos ausentes por dentro, mergulhados em nossas vozes internas. Essa sobreposição de pensamentos nos impede de receber plenamente a mensagem alheia.
O contexto também interfere. Em ambientes hierárquicos ou tóxicos, escutar é visto como fraqueza. Quem detém poder sente que precisa falar para manter sua autoridade, enquanto quem ocupa posições subordinadas acredita que não será escutado de qualquer forma. A estrutura da organização inibe a prática da escuta e reforça a lógica do monólogo.
As consequências dessa dificuldade são muitas e profundas. A primeira delas é o empobrecimento das relações. Sem escuta, os vínculos se tornam superficiais, reduzidos a trocas utilitárias. Pessoas convivem lado a lado, mas não se encontram de verdade. Cada uma vive em seu universo particular, sem ponte com o mundo interno do outro.
Outra consequência frequente é o aumento dos conflitos. Muitas divergências não nascem de grandes diferenças, mas de pequenos mal-entendidos que poderiam ser evitados se houvesse uma escuta atenta. Quando não escutamos, interpretamos mal, alimentamos suposições e reforçamos ressentimentos. O diálogo se rompe e o que poderia ser uma diferença criativa se converte em disputa hostil.
A falta de escuta também gera isolamento emocional. Aquele que nunca é escutado tende a se retrair, a acreditar que sua voz não importa, que sua existência não é reconhecida. Esse silêncio imposto pelo desinteresse do outro é uma das formas mais cruéis de solidão. Ser ignorado mina a autoestima e enfraquece a confiança básica de que valemos a pena.
Nas organizações, a ausência de escuta corrói a confiança. Uma liderança que não escuta sua equipe perde credibilidade. As pessoas deixam de se engajar, escondem problemas, evitam trazer ideias. Em contextos mais amplos, como no espaço social ou político, instituições que não escutam seus públicos tornam-se irrelevantes, incapazes de dialogar com as transformações do tempo.
Também há um impacto direto na capacidade de inovar. Quando não escutamos clientes, colaboradores, familiares ou parceiros, deixamos escapar sinais importantes do ambiente. Ficamos presos em nossas próprias narrativas, repetindo padrões, sem perceber oportunidades de mudança. A escuta ativa, ao contrário, é fonte de adaptação e de criação, porque revela perspectivas que sozinhos jamais alcançaríamos.
Talvez a consequência mais profunda, no entanto, seja o empobrecimento humano. Quem não escuta fecha-se em suas certezas, priva-se da riqueza do outro, perde a oportunidade de aprender e de crescer. A escuta é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que acolhe, também ensina. Negar-se a escutar é recusar-se à transformação que todo encontro humano traz.
No fundo, a dificuldade em escutar revela o medo de deixar o outro existir em nós. É como se houvesse receio de que a palavra alheia ocupe espaço demais, ou que sua dor se infiltre em nossas frestas. Mas quando não escutamos, pagamos caro: relações frágeis, conflitos recorrentes, isolamento, falta de confiança e estagnação. Aprender a escutar, portanto, não é apenas um gesto de bondade, mas um imperativo de sobrevivência relacional. É nesse exercício que se decide a qualidade das nossas conexões e, em última instância, a qualidade da nossa própria humanidade.
Quando penso em gestão de relacionamentos, seja no âmbito pessoal, profissional ou institucional, vejo que a escuta ativa é um divisor de águas. Empresas, famílias, comunidades, todas são atravessadas pela qualidade de suas conversas. E é pela escuta que construímos confiança.
Confiança não nasce de palavras bonitas, mas da experiência reiterada de ser escutado e respeitado. Quando uma equipe percebe que sua liderança escuta genuinamente, abre-se um campo de reciprocidade. As pessoas sentem-se autorizadas a trazer suas inquietações, suas ideias, suas vulnerabilidades. E é nesse espaço que surge a inovação, a coesão e a corresponsabilidade.
Lembro-me de Anthony Giddens, sociólogo, que fala da reflexividade da vida moderna: vivemos em um mundo onde precisamos constantemente justificar nossas ações e decisões diante dos outros. Nesse contexto, a escuta ativa não é luxo, mas necessidade. Só por meio dela conseguimos sustentar relações transparentes e evitar que a comunicação se torne apenas formalidade vazia.
Na prática da Inteligência Relacional, percebo que escutar é um dos modos mais potentes de cuidar. Escutar não é passividade, é ato ativo de sustentação do vínculo. Quando escuto, assumo responsabilidade compartilhada: reconheço que o outro existe, que tem voz, que sua narrativa é tão legítima quanto a minha. Isso cria um pacto silencioso de dignidade.
A psicologia contemporânea reforça o impacto da escuta ativa no bem-estar emocional. Estudos da psicologia positiva apontam que ser escutado é uma das experiências mais gratificantes que alguém pode ter. O simples ato de narrar uma dificuldade, e perceber que o outro realmente escutou, já diminui a carga de estresse, amplia a resiliência e fortalece a autoestima.
Também na terapia cognitivo-comportamental, percebe-se que a qualidade da escuta do terapeuta é decisiva para que o paciente consiga reestruturar suas crenças. Sem escuta, não há espaço para a reorganização da narrativa pessoal. E mesmo em contextos de mediação de conflitos, a escuta ativa se revela essencial: é quando as partes se sentem ouvidas que se abre a possibilidade de diálogo e resolução.
Na minha vivência, como conselheiro corporativo, mentor e psicanalista, noto como muitas vezes as pessoas não pedem soluções, mas apenas espaço para serem escutadas. A escuta, nesses casos, já é terapêutica. É como se o simples fato de alguém sustentar meu discurso com atenção amorosa já fosse suficiente para que eu me reorganize por dentro.
Penso, por exemplo, em reuniões de trabalho onde alguém propõe algum tema difícil, ou abre uma conversa delicada, traz um tema controverso ou aponta uma dificuldade. Muitas vezes, ele não busca um manual pronto de respostas. Busca reconhecimento. Busca sentir-se visto. Quando escuto sem interromper, sem apressar, percebo que sua própria fala já contém as sementes da solução.
Do ponto de vista filosófico, escutar ativamente é um exercício ético. Emmanuel Lévinas fala da alteridade (qualidade do que é diferente e a capacidade de se colocar no lugar do outro), como fundamento da ética: é o rosto do outro que me convoca à responsabilidade. Escutar é atender a esse chamado. É reconhecer que minha liberdade encontra limite no direito do outro de existir plenamente.
Essa dimensão ética da escuta ativa é crucial na gestão de relacionamentos. Pois gerir não é manipular, é cuidar. Não é impor, é dialogar. Não é apenas conduzir pessoas para metas, mas criar ambientes em que a dignidade seja preservada. E a dignidade começa pelo reconhecimento da voz.
Quando escuto, ergo uma ponte entre o eu e o outro. Uma ponte que não apaga diferenças, mas que as torna fecundas. Escutar é aceitar que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. É por isso que digo: a escuta ativa é uma política da convivência inteligente.
Na sociologia, autores como Jürgen Habermas destacam a centralidade da comunicação para a vida democrática. Habermas fala da “ação comunicativa” como horizonte de uma sociedade baseada na razão dialógica. A escuta ativa é a expressão prática desse ideal: sem escuta, não há deliberação democrática, não há comunidade viva, não há coesão social.
Se ampliarmos isso para sistemas complexos (famílias etc.), e organizações corporativas e sociais, percebemos que onde não há escuta de membros, sócios, colaboradores ou clientes, as relações tornam-se frágeis, autorreferenciais, incapazes de se adaptar. Se não há escuta entre os líderes e diretores, a situação fica mais complexa ainda; torna-se “cabo de guerra”, onde os interesses individuais sobrepõem-se às demandas ou necessidades coletivas. Já aquelas que cultivam uma escuta permanente constroem resiliência, porque captam sinais, ajustam rumos e mantêm vínculos de confiança.
Eu vejo que, em tempos de excesso de informação, a escuta ativa se torna estrategicamente necessária. Recebemos e construímos mensagens e estímulos intensos e constantemente, mas nem sempre nos sentimos escutados. Escutar, nesse cenário, é contracultural: é resistir à lógica da pressa, da resposta imediata, da superficialidade.
Na minha trajetória, percebo que a escuta ativa é também um exercício de autoconhecimento. Para escutar o outro, preciso primeiro calar minhas próprias vozes internas. Preciso aquietar meu julgamento, minha ansiedade de resposta, minha ânsia de controle. Escutar é aprender a esperar.
Essa espera, por vezes desconfortável, é também fecunda. Ela me ensina a paciência, a humildade e a coragem de não ter todas as respostas. Aprendo que escutar é um ato de fé: acreditar que o outro tem algo a dizer que pode me enriquecer, mesmo quando não concordo.
Além disso, a escuta ativa me conecta ao sentido da reciprocidade. Quando sou escutado, sinto-me valorizado; e quando escuto, valorizo o outro. É nesse movimento de troca que se edifica a confiança.
Na gestão de equipes ou de grupos, a escuta ativa se traduz em liderança mais humana e eficaz. Líderes que escutam conseguem captar as nuances do ambiente, identificar conflitos latentes, reconhecer talentos ocultos. Mais ainda: líderes que escutam tornam-se referenciais de confiança.
Eu mesmo, em experiências profissionais, já vi equipes e grupos se desestruturarem por ausência de escuta. Palavras ditas em vão, reuniões em que ninguém se sentia escutado, decisões tomadas unilateralmente. O resultado era desmotivação, distanciamento, perda de energia, além de brigas e discussões sem sentido.
Por outro lado, já presenciei transformações impressionantes quando a escuta foi cultivada. Ambientes tensos se tornaram mais leves, rivalidades foram administradas, histórias entendidas, pessoas antes retraídas passaram a contribuir, soluções criativas emergiram do simples fato de alguém ter se sentido escutado.
É curioso notar como a escuta ativa também é motor de inovação. Muitas vezes, pensamos que inovar é apenas criar algo inédito. Mas, na prática, inovar é perceber de modo novo aquilo que já existe. E isso só é possível se escutamos com atenção.
Escutar clientes, escutar diferentes, por exemplo, é fonte inesgotável de insights. Escutar colaboradores revela potenciais ainda não explorados. Escutar parceiros abre portas para colaborações inéditas.
Na era digital, em que tanto se fala de big data e inteligência artificial, acredito que a escuta humana, genuína, continua sendo insubstituível. Pois não há algoritmo que capture o silêncio carregado de sentido, ou o tremor da voz que revela vulnerabilidade.
Desafios da escuta ativa:
Não romantizo a escuta ativa. Sei que ela exige disciplina, presença e, muitas vezes, coragem. Escutar pode ser doloroso, porque o que o outro diz nem sempre é o que eu gostaria de escutar. Pode ser frustrante, porque demanda tempo em um mundo acelerado. Pode ser desafiador, porque me confronta com minhas próprias limitações.
Mas é justamente nesses desafios que reside sua potência. Ao escutar, coloco-me em posição de vulnerabilidade: reconheço que não controlo tudo, que dependo do outro para compreender melhor a realidade. Esse reconhecimento é libertador.
Gosto de pensar a escuta ativa como uma arte. Uma arte relacional, que mistura técnica, sensibilidade e ética. Uma arte que se aprende praticando, errando, recomeçando. Uma arte que nunca se esgota, porque cada encontro é único.
Na prática, escutar ativamente é como afinar um instrumento musical. Preciso ajustar minhas cordas internas (atenção, paciência, empatia), para que a melodia do encontro soe harmônica. E, quando isso acontece, sinto que o relacionamento ganha nova densidade.
Lembro-me de uma situação concreta em que um gestor empresarial enfrentava altos índices de rotatividade em sua equipe. Havia tentado aumentar salários, criar bônus, melhorar a infraestrutura. Nada parecia resolver. Quando nos sentamos para refletir, percebemos que o problema era simples, mas profundo: os colaboradores não se sentiam escutados.
Iniciamos então um processo de encontros de escuta ativa. Em vez de reuniões apenas para repassar tarefas, criamos espaços para que cada voz fosse ouvida. Aos poucos, o clima organizacional mudou. O índice de rotatividade caiu, e os próprios funcionários relataram sentir-se mais motivados.
Outro caso, em contexto comunitário, envolveu um grupo em conflito por diferenças religiosas. A tensão era tão grande que já não havia diálogo. Foi pela escuta ativa, mediada com paciência, que surgiram narrativas comuns: todos, no fundo, desejavam segurança para seus filhos, dignidade em suas vidas e respeito às suas crenças. Essa descoberta partilhada foi possível apenas porque alguém decidiu escutar. Esses exemplos me confirmam: a escuta ativa não é retórica. É prática concreta de transformação.
Vivemos hoje em um ambiente em que a comunicação é acelerada por plataformas digitais. Mas, paradoxalmente, a escuta verdadeira parece cada vez mais rara. Nos aplicativos de mensagem, respondemos sem ler com atenção; nas redes sociais, interagimos apenas com fragmentos.
Acredito que a escuta ativa precisa se reinventar nesse cenário. Precisa incluir pausas, feedbacks mais conscientes, tempos de silêncio mesmo em ambientes virtuais. Quando escrevo uma mensagem e recebo uma resposta que mostra que o outro realmente entendeu, sinto o mesmo alívio que numa conversa presencial.
Na gestão de relacionamentos digitais, a escuta ativa é antídoto contra a superficialidade. É ela que distingue um atendimento robótico de uma relação humanizada.
Para resumir tudo o que disse, eu afirmo: a escuta ativa é um caminho de humanização. É ela que dá corpo ao amor como força criadora, que sustenta o dever como pacto de reciprocidade, que transforma o medo em guardião da vida, que orienta a ira para a defesa da dignidade.
Na gestão de relacionamentos, a escuta ativa é o que impede a fragmentação e favorece a integração. É o que transforma grupos em comunidades, equipes em coletivos criativos, organizações em organismos vivos.
Escutar, no fim das contas, é uma escolha. Uma escolha por estar presente, por reconhecer o outro, por apostar no diálogo. É um ato de fé na palavra e no silêncio, na vulnerabilidade e na força, na singularidade e na interdependência.
Assim, sigo aprendendo a escutar. E cada vez que escuto, renovo minha convicção de que não há inteligência mais poderosa do que a relacional. Pois é ela que nos lembra, sempre, que ninguém se humaniza sozinho.
Pense e reflita sobre isso.
HomeroReis.
Curitiba, PR, setembro/25
