por Homero Reis
Sempre que penso nos relacionamentos que mantenho, sejam eles vínculos de afeto, convivência, trabalho ou apenas casuais, tenho à sensação de que somos atravessados por forças que não se limitam ao visível. Forças que nos moldam, que nos pressionam, que nos convidam a reagir, a interpretar, a criar sentido.
Com o tempo, percebi que essas forças não são meros movimentos psicológicos: são dimensões estruturantes da maneira como existo no mundo e me relaciono com o outro. Chamo essas forças de concêntrica e excêntrica.
Essas duas forças constituem a dinâmica fundamental da Inteligência Relacional. Como em toda dialética bem compreendida, nenhuma delas é suficiente em si; nenhuma sobrevive de forma saudável sem a outra. Ambas expressam o jogo entre a realidade que me atravessa e a realidade que eu atravesso.
No fundo, é a velha condição humana descrita por Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Pois conhecer-me implica reconhecer o modo como a realidade me impacta e o modo como eu impacto a realidade. E é nessa dança, tão antiga quanto o próprio espanto filosófico, que se tecem os nossos vínculos.
- A Força Concêntrica: Quando o Mundo Chega Antes de Mim
Chamo de força concêntrica tudo aquilo que vem de fora para dentro. É o modo como a realidade me toca, me pressiona, me seduz, me fere ou me forma. Nietzsche dizia que nós, humanos, somos “animais interpretadores”, seres que recebem estímulos e imediatamente lhes atribuem sentido. Porém, o modo como recebo algo depende do observador que sou, e esse observador nunca é neutro.
A força concêntrica se manifesta quando percebo alguém pela primeira vez e sinto que “meu santo não bate com o dela”. Esse fenômeno, tão cotidiano quanto misterioso, revela uma operação silenciosa: sou impactado. Mesmo sem história compartilhada, algo no outro me afeta: um gesto, um olhar, uma postura. Freud chamaria de projeção. Jung chamaria de sombra. Bauman talvez chamasse de estranhamento líquido, próprio de tempos em que os laços humanos se tornaram mais frágeis e os encontros mais inquietos.
Lembro-me de uma situação aparentemente banal que escancarou essa força diante de mim. Eu participava de um evento em que seria o conferencista. Enquanto aguardava minha vez, observei um homem sentado na primeira fila. Ele não fazia gestos bruscos, não demonstrava irritação, mas sua postura, seu olhar fixo e firme, sua expressão quase impassível, me geraram uma antipatia gratuita, imediata. Era como se sua presença dissesse: “Prove seu valor.”
De repente, senti o velho desconforto: “E se eu não agradar? E se ele discordar de mim? E se parecer arrogante?” Só depois percebi que aquele homem não havia feito absolutamente nada para provocar esse turbilhão em minha mente. O impacto estava mais na forma como eu o percebi do que naquilo que ele efetivamente expressou. É assim que a força concêntrica atua: ela não pede licença; simplesmente acontece.
Muitas vezes esse impacto é profundamente desconfortável; em outras, positivo. Mas o mais intrigante é perceber que aquilo que sinto quando o outro chega é também aquilo que provoco quando eu chego. Assim como há pessoas que me inspiram bem-estar imediato, sei que também inspiro antipatias repentinas, e reconhecer isso é um exercício de humildade. Kierkegaard diria que isso é um convite à interioridade: assumir que não sou apenas aquele que sente, mas também aquele que causa sentimento.
Quando a força concêntrica domina o meu modo de estar no mundo, perco minha capacidade de gerir-me. Tudo o que chega de fora ganha peso exagerado: opiniões, julgamentos, expectativas, críticas, gestos sutis, silêncios, rejeições imaginadas. E quando isso acontece, começo a viver como se estivesse sempre à mercê das circunstâncias ou das pessoas.
1.1. Consequências do predomínio concêntrico
No domínio da identidade (o Eu): Quando me deixo dominar pela força concêntrica, entro em estados depressivos, perda da autoestima, insegurança; não necessariamente clínicos, mas existenciais. É a sensação de ser menor que a vida, menor que a história, menor que os acontecimentos. É como se a realidade fosse um mar revolto e eu, uma embarcação frágil prestes a naufragar.
Aristóteles já alertava que o excesso de passividade leva à akrasia – fenômeno que descreve a situação paradoxal onde a pessoa, de forma consciente e voluntária, não consegue seguir seus próprios princípios ou planos, falhando em cumprir a promessa que fez a si mesma e, consequentemente, a perda do domínio sobre si.
No domínio do outro: Surge o distanciamento. Afasto-me não por escolha, mas por insegurança. A solidão torna-se consequência natural da incapacidade de levantar a voz, colocar limites, dizer não. É como se eu acreditasse que o outro sempre sabe mais, merece mais, pesa mais. Mas também pode acobertar-se de comportamentos irascíveis, intolerância exagerada, mal humor.
No domínio temporal do passado: Rejeito minha história. Sinto vergonha dela, ignoro-a, contorno-a. O passado deixa de ser raiz e se torna peso. Perco a capacidade de honrar minha caminhada e, com isso, perco também a dignidade das minhas narrativas e a integridade dos meus propósitos.
No domínio temporal do futuro: Com a força concêntrica dominante, o futuro se torna nebuloso. Perco ambição, desejo, mobilidade. Byung-Chul Han diria que entro num estado de “exaustão psíquica”, incapaz de mover-me porque já não acredito na minha potência, nem na minha competência.
- A Força Excêntrica: Quando eu Chego Antes do Mundo
Agora, se a força concêntrica fala do mundo que entra em mim, a força excêntrica fala do meu movimento em direção ao mundo. É a energia de dentro para fora, meu impacto, minha voz, meu modo de interferir na realidade. É a força da ação, da decisão, da imposição.
Quando essa força predomina, corro o risco de acreditar que detenho um acesso privilegiado à realidade. Creio que vejo mais, entendo mais, posso mais do que os outros. E desse lugar, deslizo facilmente para a arrogância, prepotência, tirania, comportamentos tóxicos e abusivos. Como alertaria Platão, o excesso de confiança pode se tornar violência; e, como diria Fromm, a necessidade de controle é quase sempre sintoma de medo.
2.1. Consequências do predomínio excêntrico
No domínio da identidade (o Eu):
Curiosamente, quando a força excêntrica é excessiva, não me torno mais seguro, torno-me mais temeroso. Medo de mim mesmo, medo de ultrapassar limites, medo de desestabilizar tudo. Vivo num estado de tensão, como se qualquer gesto meu pudesse ferir alguém. É a pressão interior que Freud chamou de superego punitivo, uma instância interna que vigia cada movimento.
Recordo-me de um episódio profissional que me marcou. Eu liderava um projeto importante e acreditava, honestamente, que estava garantindo o sucesso da equipe ao tomar todas as decisões essenciais. Evitava consultar os demais porque supunha que eles não teriam a mesma visibilidade, a mesma experiência ou a mesma leitura estratégica que eu.
Um dia, um dos membros da equipe, com coragem admirável, disse:
“Homero, às vezes parece que você vem com o pacote pronto. A gente só monta.”
Essa frase me atravessou como um espelho. Ali estava a força excêntrica em sua forma mais contundente: eu interferia tanto na realidade que o outro perdia lugar nela. É como se minha presença ocupasse espaços demais, não por maldade, mas por excesso de zelo, excesso de competência, excesso de pressão interna.
Nietzsche chamaria isso de “vontade de potência mal calibrada”. Fromm diria que é o medo mascarado de controle. Byung-Chul Han diria que vivemos numa sociedade onde o desempenho vira tirania, e quem assume demais acaba esmagando o espaço do outro.
No domínio do outro: Transformo-me em ausência. Não legitimo o outro, ignoro-o. Não porque o despreze, mas porque estou tão tomado pela minha própria perspectiva que não o enxergo. É como se minha presença fosse tão grande que o mundo ao redor desaparecesse. Freud diria que essa é a porta de entrada de um narcisismo crônico.
No domínio temporal do passado: Rejeito minha história não por vergonha, mas por inconformismo. Sinto culpa, arrependimento e a necessidade constante de refazer o que já foi vivido. Como Sísifo, estou sempre empurrando a pedra da mudança, incapaz de aceitar aquilo que já passou. Incapaz de superar uma história que teve seu momento dolorido, mas que agora pode ser ressignificada.
No domínio temporal do futuro: O futuro me assusta. Tenho medo de falhar, medo de repetir erros, medo de que minha força seja grande demais ou destrutiva demais. Vivo em estado de alerta permanente, como se cada passo fosse um risco. Isso me torna tão assustado que me paraliso.
Isso me lembra a história de uma cliente que vivia o drama de se casar ou não. Segundo ela, havia amor, companheirismo, cumplicidade. Mas assumir esse papel de CASADA, a tomava de um temor imobilizador. Seu argumento era assim: não quero me casar porque você não sabe a vida que meus pais levaram e eu temo repetir essa “tragédia” no futuro.
- O Equilíbrio das Forças: O Nascimento da Inteligência Relacional
Se há uma palavra que pode resumir a jornada da maturidade, é equilíbrio. Não equilíbrio estático, mas dinâmico, como o de um bailarino sobre o palco. Equilibrar as forças concêntrica e excêntrica é alcançar aquilo que chamo de Inteligência Relacional.
Ela é a competência de dançar entre perceber e atuar; entre escutar e dizer; entre recolher e oferecer; entre ser afetado e afetar. É aquilo que Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, chamaria de justa medida, o ponto virtuoso entre extremos que, isolados, são vícios. Quando encontro esse equilíbrio, algo profundo acontece. Senão, vejamos:
3.1. No domínio da identidade (o Eu):
Sinto-me pleno. Não inflado nem diminuído. Rico, mas não arrogante. Sereno, mas não passivo. É a experiência de habitar a própria pele com naturalidade, aquilo que a psicologia humanista de Carl Rogers chamaria de congruência.
3.2. No domínio do outro:
Aproximo-me dele com legitimidade. Já não preciso me esconder e já não preciso me impor. Posso permitir que ele seja quem é. Legitimar o outro, como sempre digo, não é concordar com ele, é reconhecê-lo. É olhar e dizer: “Tu és um mundo, e teu mundo não ameaça o meu”.
3.3. No domínio temporal do passado:
Valido minha história. Reconheço luzes e sombras. Aceito minhas falhas e celebro minhas conquistas. O passado deixa de ser prisão e se torna fundamento. Como dizia Paul Ricoeur, começo a narrar minha vida não como vítima nem como herói, mas como protagonista responsável.
3.4. No domínio temporal do futuro:
O futuro se abre como horizonte cheio de sentido. Sinto curiosidade. Sinto desejo. Sinto mobilização. Caminho como quem sabe que ainda há paisagens a descobrir, comidas a experimentar, culturas a conhecer, projetos a realizar. O futuro deixa de ser ameaça ou fantasia e se transforma em convite.
- A Maturidade como Arte de Relacionar-se
Certa vez atendi um executivo que vivia preso ao predomínio da força excêntrica. Era brilhante, competente, admirado. Mas sua presença era tão forte que seus líderes se calavam diante dele. Ele acreditava que estava sendo eficiente. Os outros acreditavam que estavam sendo descartados.
Durante uma de nossas sessões, ele me contou uma experiência que o transformou. Disse-me que, um dia, ao chegar em casa, sua filha pequena correu para mostrar-lhe um desenho. Ele olhou, disse que estava bonito e voltou ao celular. A menina, então, segurou seu rosto com as duas mãos, forçando-o a olhar para ela e disse: “PAPAI, VOCÊ ME VÊ?”
Ele ficou paralisado. Percebeu, naquele gesto simples, que não via ninguém, nem mesmo a filha. No trabalho, no trânsito, nas relações, ele não via nada além de si mesmo e de sua agenda e interesses. Apenas avançava. Era puro movimento excêntrico.
Naquele dia, algo se abriu para ele. Ele começou a permitir que a força concêntrica também tivesse lugar: o impacto, a vulnerabilidade, a sensibilidade, a escuta. Sem saber, sua filha lhe ensinou a lição que Sócrates ensinara há milênios: a vida examinada é a única digna de ser vivida, e examinar-se inclui reconhecer o impacto que o outro causa e o impacto que causamos no outro. Ela lhe ensinou aquilo que chamo de inteligência relacional.
A vida, com suas tensões, tentações, quedas e ressurgimentos, me ensinou que a inteligência relacional não se conquista de uma vez. Ela se pratica. Requer vigilância amorosa sobre mim mesmo, como recomendaria Santo Agostinho: in interiore homine habitat veritas (“a verdade habita no interior do homem”).
Ser inteligente relacionalmente não é ser perfeito. É ser impecável e fazer o melhor possível com o que tenho, como costumo ensinar. É reconhecer que sou observador e ator. É assumir que o mundo me toca e que eu o toco. É saber que o outro me modifica e que eu o modifico. É aceitar que a vida é um sistema de influências mútuas.
Byung-Chul Han diria que vivemos numa era de hipersensibilidade, onde tudo nos afeta demais, e numa era de hiperprodutividade, onde tudo exige que atuemos demais. O desafio, portanto, não é ser mais sensível nem mais ativo, é ser sensível e ativo. É escutar e agir. É perceber e interferir. É concêntrico e excêntrico.
Aristóteles diria: é encontrar o meio virtuoso. Buda diria: é trilhar o caminho do meio. Kierkegaard diria: é escolher a si mesmo na presença de Deus.
Fromm diria: é amar-se sem se perder de si, e amar o outro sem possuí-lo.
Jesus diria: é amar ao próximo como a si mesmo, o que significa amar o próximo e a si mesmo na mesma medida.
- Quando Percebo Meu Predomínio: Caminhos de Autodiagnostico.
Com o tempo, desenvolvi um método simples para perceber onde estou na dança existencial das forças que me constituem: basta estar atento às minhas reações diante das acontecencias da vida.
Quando a força concêntrica está dominando:
a) fico inseguro diante do olhar alheio,
b) tenho dificuldade de dizer não,
c) sinto que a vida pesa mais do que deveria,
d) meu passado me envergonha,
e) o futuro me assusta.
Quando a força excêntrica está dominando:
a) imponho demais minhas opiniões,
b) escuto pouco,
c) ignoro o outro,
d) rejeito minha história não por vergonha, mas por revolta,
e) o futuro me pressiona como se fosse uma ameaça.
Reconhecer meu estado já é meio caminho para restabelecer equilíbrio. Como dizia Foucault, a consciência sobre si é, em si mesmo, um exercício de liberdade.
- A Inteligência Relacional como Caminho de Humanização
Todas as tradições filosóficas, espirituais e psicológicas convergem para a mesma ideia: tornamo-nos humanos por meio das relações. É no olhar do outro que aprendo quem sou. É na minha presença que o outro descobre quem pode ser. É na história compartilhada que construímos significados. É no futuro sonhado que criamos mundos possíveis.
A inteligência relacional é, no fundo, uma metodologia da convivência. É a arte de equilibrar as forças que nos constituem. É a capacidade de manter a espinha ereta diante da vida: firme o suficiente para sustentar-se, flexível o suficiente para acolher.
- A Dança das Forças: Uma Conclusão Em Movimento
Hoje, quando olho para minha própria trajetória, percebo que vivo numa eterna oscilação entre receber e agir. Já fui excessivamente concêntrico, carregando culpas, medos, vergonhas e a sensação de insuficiência. Já fui excessivamente excêntrico, escondendo minha vulnerabilidade atrás de certezas e discursos. Já me senti vítima do mundo e já me senti senhor do mundo.
A maturidade me ensinou que não preciso ser nenhum dos dois. Posso ser os dois. Posso permitir-me a porosidade de ser tocado e a coragem de tocar. Platão imaginava que a harmonia da alma nasce quando cada parte ocupa seu devido lugar. Eu diria que a harmonia relacional nasce quando a força concêntrica e a força excêntrica encontram seu compasso comum.
E nesse encontro, descubro o que sempre busquei: não o controle, não a submissão, não a perfeição, mas a impecabilidade da presença. A vida continua a me impactar. Eu continuo a impactar a vida. E nesse movimento contínuo, encontro o lugar onde me torno plenamente humano.




