ENTRE O EFÊMERO E O VERDADEIRO – ensaio sobre o mundo pós-verdade

Por Homero Reis

“Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. A sentença de Karl Marx, que atravessou o século XIX como um diagnóstico das revoluções industriais e morais que iriam redesenhar o mundo moderno, nunca me pareceu tão atual quanto agora. Quando reflito sobre ela à luz do nosso tempo, percebo que não apenas as estruturas econômicas, mas também os relacionamentos humanos, as convicções e até as verdades se tornaram voláteis. Vivemos em um tempo em que tudo se liquefaz antes mesmo de adquirir forma.

Zygmunt Bauman, que transformou a metáfora marxista em um conceito sociológico poderoso, chamou esse fenômeno de “modernidade líquida”. Ele percebeu, com lucidez e melancolia, que a aceleração das trocas, dos afetos e das ideias produziu uma sociedade incapaz de se demorar em si mesma, de criar raízes, de refletir sobre valores. Tudo precisa ser rápido, superficial, instantâneo e, portanto, descartável. A fluidez que antes era promessa de liberdade tornou-se sintoma de fragilidade. O amor líquido, a fé líquida, a identidade líquida e até a ciência líquida, tudo escorre pelos dedos antes que se possa compreender o que se tem nas mãos.

A descartabilidade passou a ser o valor dominante das relações. Nada mais parece ter vocação para durar. Os vínculos amorosos, por exemplo, tornaram-se experiências e não compromissos; aventuras emocionais e não construções de sentido. Não é que devamos idealizar o eterno, mas há uma diferença profunda entre o que se transforma e o que simplesmente se dissolve. “A experiência, quando não gera aprendizado, torna-se apenas consumo”. O risco é viver muito e compreender pouco.

Essa falta de consistência não nasce do nada. Ela se alimenta de um contexto cultural que valoriza mais a aparência do que a substância, mais a exposição do que o encontro. O século XXI herdou de seus predecessores a lógica da aceleração, mas radicalizou-a. Vivemos sob o império do “agora”, e o “agora” não suporta reflexão. Hannah Arendt advertia que o pensamento exige interrupção, Drummond de Andrade defendia que “a vida precisa de pausas”, e eu gosto de acrescentar que a vida também precisa de silêncio. Essas coisas são condições para se compreender o mundo. Parar é condição para compreender. O mundo pós-verdade, no entanto, teme o silêncio e substitui o diálogo pela emissão incessante de opiniões.

A palavra “pós-verdade” surgiu oficialmente no dicionário de Oxford em 2004, definindo o tempo em que os fatos objetivos perderam o poder de moldar a opinião pública, substituídos pelo apelo às emoções e crenças pessoais. É como se tivéssemos abdicado da verdade em favor da conveniência afetiva. A verdade passou a ser aquilo que conforta e que “interessa”, e  não o que liberta.

Quando penso sobre isso, lembro-me de um episódio de sala de aula. Durante uma palestra sobre Freud e Bauman, um aluno de mestrado levantou a mão e declarou, com firmeza juvenil: “Professor, eu não concordo com Freud”. Perguntei-lhe se já havia lido ou estudado Freud. Ele respondeu que não, mas que “lá em casa as coisas não funcionavam assim”.

A cena me marcou. Não pela ousadia, mas pela naturalidade com que a opinião pessoal se sobrepôs ao conhecimento. O gesto daquele aluno simboliza uma época em que a autoridade intelectual foi substituída pela conveniência da experiência subjetiva. Todo o pensamento e trabalho de um dos homens mais importantes na formação do século XX, foi reduzido a pó porque “lá em casa as coisas não são assim”. Em nome da autenticidade, abandonamos a humildade epistemológica.

Nietzsche já havia anunciado a “morte de Deus” como metáfora da crise dos fundamentos morais. No mundo pós-verdade, parece que enterramos, junto com Deus, a própria ideia de referência. Tudo se torna equivalente, subjetivo e pessoal; nada é sagrado. As fronteiras entre certo e errado, belo e feio, importante e irrelevante, dissolvem-se em um relativismo complacente.

Vivemos, como diria Byung-Chul Han, numa sociedade da transparência e da positividade, em que tudo precisa ser visível, agradável e imediato. A negatividade, o conflito, a dúvida, o incômodo, foram banidas do convívio e da reflexão.

O problema é que, sem limites, não há profundidade. O excesso de liberdade sem direção produz vazio. Freud, em O mal-estar da civilização, alertava que o desejo humano, quando desprovido de renúncia e limite, torna-se autodestrutivo. A pós-verdade, nesse sentido, não é apenas uma crise de informação: é uma crise de sentido.

No plano das relações, essa crise se traduz em insegurança afetiva. A cada nova conexão, carregamos o medo de ser substituídos. O amor deixou de ser uma promessa e tornou-se um contrato temporário de conveniência emocional. Vivemos cercados por pessoas e, paradoxalmente, mergulhados na solidão. A hiperconectividade não produziu pertencimento, apenas exposição.
Somos, como escreveu Bauman, “turistas relacionais”: visitamos sentimentos sem jamais habitá-los.

A era digital intensificou esse fenômeno. As redes sociais criaram a ilusão de presença constante, mas o que nelas se compartilha é apenas imagem; e a imagem, como toda superfície, reflete, mas não acolhe. O selfie tornou-se a metáfora perfeita do narcisismo contemporâneo: registrar-se no mundo passou a valer mais do que estar no mundo.

A informação substituiu a formação. Sabemos de tudo um pouco e compreendemos quase nada. Viktor Frankl lembrava que “quem tem um porquê enfrenta qualquer como”; o drama do pós-verdade é que perdemos o porquê. Colecionamos dados, mas esquecemos de perguntar o que eles significam. A tecnologia, longe de ser o problema, tornou-se o espelho da nossa dispersão interior. E essa dispersão não é apenas cognitiva, é também moral e espiritual. Cada um fabrica sua própria fé, seu próprio Deus, sua própria verdade sob medida. Como observou Agostinho: “Quem escolhe o que quer crer, crê apenas em si mesmo.” E quando a crença se reduz ao eu, o outro desaparece. É o narcisismo em sua forma mais patológica que acreditamos “ser normal”.

Penso que parte dessa lógica começou com Henry Ford. Sua genial invenção, a linha de montagem, revolucionou a economia, mas fragmentou a experiência humana. O trabalho perdeu o sentido de totalidade; a vida passou a ser uma sequência de tarefas. O fordismo, que nos ensinou a produzir mais em menos tempo, também nos ensinou a sentir menos em menos tempo. Essa cultura da eficiência contaminou a educação, a fé, a amizade e tornou-se o alicerce do modelo como pensamos as relações e a vida. Tudo precisa ser “eficiente ao máximo, no menor tempo possível”.

Nas escolas, produzimos especialistas incapazes de conversar. Nas empresas, valorizamos metas mais do que pessoas. Nas famílias, substituímos presença por performance. A divisão técnica se tornou divisão relacional. E, ao final, já não montamos carros, montamos personagens.

Erich Fromm, em Ter ou Ser, advertiu que a sociedade moderna trocou o modo de ser pelo modo de ter. Hoje poderíamos acrescentar: trocamos também o modo de compreender pelo modo de opinar. A rapidez com que julgamos, descartamos e substituímos revela uma impaciência existencial. Queremos amor instantâneo, sabedoria em noventa minutos, felicidade em cápsulas. Vi, certa vez, num livraria em um aeroporto, uma coleção intitulada Filosofia Rápida: Kierkegaard em 90 minutos. Ri e me entristeci. Como condensar o desespero e a esperança de Kierkegaard, aquele que mergulhou nas profundezas da angústia humana, em uma hora e meia de voo? A pressa tornou-se nossa forma de ignorância. Em 90 minutos torno-me um “especialista em existencialismo”.

Vivemos, portanto, num mundo onde tudo tem prazo de validade. As amizades duram enquanto servem, os empregos enquanto satisfazem, as causas enquanto rendem visibilidade. Transformamos até Deus em produto personalizado: um Deus simpático, ajustado às minhas demandas, domesticado pela minha subjetividade. Ele está do meu lado, desde que eu continue no centro.

Recordo um episódio banal que me pareceu profundamente simbólico. No estacionamento de um shopping, vi um carro com dois dizeres: no para-brisa, “Presente de Deus”; no vidro traseiro, “Vende-se”. Ali estava condensado o espírito da pós-verdade: reconhecemos o valor das coisas apenas enquanto nos são úteis. O dom transforma-se em mercadoria.

Essa lógica atinge tudo. Vejo pessoas que lutam anos por uma conquista e, pouco depois, desprezam o que tanto desejaram. Alunos que sonham com o diploma e, ao consegui-lo, o desdenham. Casais que se prometem eternidade e, em poucos anos, só se comunicam por advogados. Pais que imploram por um filho e, quando o têm, se exasperam com os cuidados que ele exige. O mundo pós-verdade é, acima de tudo, um mundo impaciente. E a impaciência é a negação da vida.

O filósofo Byung-Chul Han descreve o “cansaço da sociedade do desempenho”: uma exaustão silenciosa gerada pela obrigação de estar sempre em movimento, sempre produzindo, sempre certo. A doença do século XXI não é mais a repressão, mas o excesso de positividade, a impossibilidade de dizer não, de parar, de falhar. A solidão, que deveria ser espaço de escuta e contemplação, tornou-se fardo. Estamos cercados de vozes e, paradoxalmente, cada vez mais incapazes de conversar.

Perdemos o mundo das conversas e o trocamos pelo mundo dos recados. Nas redes, opinamos sobre tudo, mas raramente nos dispomos a ouvir. A comunicação tornou-se transmissão; o diálogo, exceção. E sem diálogo, não há inteligência relacional possível.A inteligência relacional, que compreendo como a capacidade de construir vínculos consistentes a partir da escuta, do respeito e da reflexão, exige presença e tempo. Mas o tempo, em nossa cultura, tornou-se inimigo. Vivemos em modo “história curta”: tudo precisa caber em um story de trinta segundos.

Em A condição humana, Arendt dizia que “agir é iniciar algo novo”. Mas, para agir de verdade, é preciso compreender o que já existe. A ação sem reflexão é ativismo vazio. É o que vejo proliferar: movimentos rápidos, emoções rápidas, opiniões rápidas; e uma lentidão assustadora para amar, compreender e mudar.

O pós-verdade também se expressa na economia do afeto: valorizamos o útil e descartamos o essencial. “Se não me serve, não me interessa.” Esse princípio, aparentemente inofensivo, destrói silenciosamente o tecido das relações. Ele transforma o outro em instrumento, o vínculo em transação. E quando tudo se torna meio para algo, nada mais é fim em si.

A descartabilidade emocional nos impede de viver a experiência da alteridade. Emmanuel Levinas lembrava que o rosto do outro é um apelo ético que me desinstala; é o que me convoca a sair de mim. No entanto, na lógica da pós-verdade, o outro só é tolerado enquanto confirma minhas crenças. O diferente se torna ameaça; o contraditório, ofensa.

O resultado é o empobrecimento da experiência humana. Reduzimos o amor à afinidade, a amizade à conveniência, a fé à autoajuda, a filosofia a resumos rápidos. A verdade deixou de ser busca compartilhada e virou propriedade privada. Cada um tem “a sua verdade”, expressão que disfarça o medo de confrontar-se com algo maior que si. Mas a verdade, como lembrava Sócrates, nasce do diálogo, não da solidão. É fruto do espanto, da pergunta e do encontro. Precisamos reaprender a perguntar, reaprender a conversar, reaprender a refletir, reaprender a estar pacificadamente com o outro que nos é diferente.

O mundo pós-verdade também nos roubou o mistério. Tudo precisa ser explicado, classificado, decifrado, mesmo que nada saibamos sobre ele. Mas a vida perde encanto quando tudo se torna evidente. O mistério é o útero da sabedoria. Sem ele, só restam fórmulas. Vivemos cercados por explicações rápidas para aquilo que exigiria uma vida inteira de silêncio.

Os antigos, com muito menos informação, compreendiam mais o essencial. Santo Agostinho, em toda sua vida, talvez tenha lido pouco mais que vinte livros, mas de suas reflexões extraiu uma teologia que ainda sustenta o pensamento ocidental. Ele lia lentamente, refletia, conversava. O conhecimento não estava na quantidade de dados, mas na profundidade da escuta. O mesmo se pode dizer de Francisco de Assis, Anselmo e Abelardo: pensadores de uma era em que o diálogo e a reflexão eram formas de oração.

Hoje, em contrapartida, consumimos montanhas de informação e nos tornamos anêmicos de sentido. A abundância de dados não gera sabedoria; apenas ruído. Tornamo-nos “especialistas em tudo e em nada”, como ironizou Ortega y Gasset.

Penso que o drama central do pós-verdade é a perda da integridade, a incapacidade de manter coerência entre o que se pensa, o que se diz e o que se vive. Como afirmei em outros ensaios, o desenvolvimento humano começa quando aquilo que cremos (teoria esposada), e aquilo que praticamos (teoria em uso), se reencontram na busca de uma coerência que exale autoridade. Vivemos um tempo em que as pessoas defendem valores que não praticam e praticam valores que não reconhecem. A dissociação entre crença e conduta é o solo fértil da incoerência relacional.

Para recuperar consistência, é preciso desacelerar. É preciso devolver densidade às palavras, peso aos compromissos, paciência às promessas. A verdade não é uma opinião, é uma construção coletiva. E o verdadeiro, no sentido mais profundo, não é o que é “meu”, mas o que é compartilhável e sustentável pelo mover humano.

A pós-verdade nos oferece a ilusão do controle absoluto: “eu sou o que sou e nada há fora de mim que mude isso”. A frase soa libertadora, mas esconde uma prisão. O eu, quando fechado em si, torna-se cárcere. Mudar é abrir-se ao encontro.

Talvez o maior desafio do nosso tempo seja reaprender a consistência. Consistência não é rigidez; é profundidade. Não é permanecer o mesmo, é manter o sentido e propósito, mesmo mudando. O mundo líquido nos pede leveza, mas o coração humano precisa de raízes.

Viver de forma relacional é aceitar que o outro me transforma. É compreender que a verdade não está em mim, nem em ti, mas entre nós. O filósofo Martin Buber chamava esse espaço de “entre”: o lugar do encontro, onde o eu e o tu se tornam nós. É nesse entre que a Inteligência Relacional se manifesta como prática de escuta, reciprocidade, respeito e cuidado.

No fundo, o mundo pós-verdade não é o fim do mundo; é apenas o fim de um tipo de mundo. Um mundo onde a percepção pessoal se converteu em lei, onde a crença substituiu o conhecimento, e a emoção, o discernimento. Talvez estejamos apenas atravessando uma transição: o cansaço do superficial pode ser o início de uma nova fome de profundidade.

Vivemos cercados por urgências. Mas há algo em nós que ainda deseja o duradouro. Quando olho para as histórias humanas, percebo que tudo o que valeu a pena exigiu tempo. A amizade que resiste, o amor que amadurece, a fé que se aprofunda, a sabedoria que se encarna, tudo isso nasce da demora. A verdade, como o vinho, precisa respirar.

Por isso, insisto: a saída para o mundo pós-verdade não está em negar a tecnologia, nem em demonizar o presente. Está em restaurar o sentido relacional da existência. Em fazer da conversa um espaço sagrado, do desacordo uma oportunidade de aprendizagem, da diferença um convite à ampliação do olhar.

Ser verdadeiro, hoje, é um ato de coragem. Num tempo em que tudo é performance, ser autêntico é um gesto subversivo. A verdade pode até se desmanchar no ar, como disse Marx; mas é no ar que respiramos. E, enquanto houver alguém disposto a inspirar-se com lucidez, a escutar com inteireza e a viver com consistência, haverá futuro para o humano.

Porque, no fim, o que nos salva não é a velocidade, nem a eficiência, nem a exposição, é o encontro. E todo encontro verdadeiro exige pausa, presença e vulnerabilidade.

Talvez seja esse o chamado da Inteligência Relacional no mundo pós-verdade: devolver à existência a sua densidade perdida, fazer do efêmero um espaço de eternidade, e do diálogo, novamente, um lugar de verdade.

Reflitam em paz!

Homero Reis

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