por Homero Reis©
Quando fecho os olhos, ainda o vejo correndo: o pelo dourado balançando ao vento, o olhar alegre como se o mundo fosse um campo aberto, e a vida, uma festa onde todos são bem-vindos. ASLAN, o nome do leão de Nárnia, e, de certo modo, o mesmo espírito. Nobre, protetor, cheio de uma doçura indomável. Um Golden Retriever de sete anos e meio, que não era apenas um cão, mas um modo de Deus me lembrar da ternura que a vida ainda pode ter, mesmo quando tudo parece duro ou cansado.
Durante sete anos e meio, Aslan foi meu companheiro de jornada, e quando digo jornada, não me refiro apenas às caminhadas diárias que fazíamos; embora elas fossem um ritual sagrado, uma conversa sem palavras entre dois seres que se entendiam no silêncio. Refiro-me ao caminho mais profundo, aquele que se faz por dentro. Porque é curioso como um cachorro pode se tornar um espelho da alma. Enquanto eu o conduzia pela coleira, era ele quem me guiava num caminho de aprendizagem.
Havia algo nele que me ensinava sobre o tempo, não o tempo do relógio, mas o tempo do coração. Ele não conhecia a pressa. Sabia estar. Cada passeio era uma descoberta. Um galho seco virava brinquedo. Um cheiro novo, uma aventura. Ele me lembrava que viver é estar inteiro, mesmo nas coisas pequenas.
Certa vez li em Saint-Exupéry que “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Mas o oposto também é verdade: tornamo-nos eternamente cativos daquilo que amamos. E o amor, quando é verdadeiro, nos humaniza, mesmo quando vem em forma de focinho, patas e rabo abanando e algumas travessuras.
Aslan me ensinou a ser presente. No mundo em que tudo corre, ele parava para cheirar o vento. No mundo em que todos querem chegar, ele se alegrava apenas por estar. Havia nele uma sabedoria ancestral, talvez a mesma que os poetas pressentem: a de que viver é um ato de gratidão constante.
Aslan era brincalhão e levado. Um dia, enquanto preparávamos dois filés para o jantar da família, deixamos a cozinha por uns instantes. Quando voltamos, um dos filés havia sumido. Silêncio. Intriga. E lá estava ele, no jardim, fingindo indiferença, o focinho brilhando e o olhar disfarçado, como quem tenta enganar o destino. A cena virou história contada em todas as reuniões da família.
Mas mais que engraçada, essa ocorrência me lembra que a vida também precisa de leveza. Quantas vezes, adultos que somos, esquecemos de brincar? Quantas vezes acreditamos que ser sério é sinônimo de ser responsável, e esquecemos que a alegria é também uma forma de fidelidade à vida? Aslan me lembrava disso o tempo todo. Sua presença era uma convocação à inocência — aquela que não é ignorância, mas pureza de coração.
Nietzsche dizia que “a maturidade do homem é ter reencontrado a seriedade que se tinha ao brincar quando era criança”. Talvez Aslan fosse isso: um mestre da seriedade do brincar. Ele me ensinou a rir das pequenas trapalhadas, a não me culpar tanto, a lembrar que viver também é fazer bagunça no jardim da existência. Ele me ensinou que não vale a pena ficar zangado enquanto há tanta coisa para explorar.
Mas a vida, que é feita de dias de sol, também traz suas tempestades. Um ano antes de partir, Aslan começou a apresentar nódulos estranhos no corpo, engasgos e dificuldades de respirar. A partir daí começaram as incontáveis visitas ao veterinário. Remédios, cirurgia na traqueia, exames diversos, remédios. Muitas noites ele não conseguia dormir, e eu o acolhia em meu colo até acalmá-lo para que adormecesse. Foram oito meses até que veio o temido diagnóstico de câncer linfocitário. Um golpe. Um nó na garganta. Lembro do primeiro dia em que ouvimos a palavra “câncer” dita pelo veterinário; o chão se abriu sob nossos pés. É estranho como o amor torna a vulnerabilidade mais nítida.
Durante um ano, ele lutou e sua luta foi linda. Não havia drama nem vitimismo em seu olhar; apenas firmeza. Quando o levávamos para os tratamentos, ele abanava o rabo, como se dissesse: “Está tudo bem, vamos juntos.” Era como se ele nos ensinasse, silenciosamente, que coragem não é ausência de dor, mas presença de amor.
Simone Weil escreveu que “a dor é o modo como o universo se faz ouvir”. A dor do Aslan, e a minha ao vê-lo enfraquecendo, foi também uma espécie de escola. Aprendi que amar é acompanhar até o fim. Que a lealdade não é feita apenas de festas e sorrisos, mas também de estar ao lado quando o corpo fraqueja e o olhar se apaga. Fiquei com ele até seu último suspiro: sereno, tranquilo consolando-me como que diz fique em paz. Eu estou bem. Obrigado.
Ele nunca se revoltou, nunca desistiu. Lutou até o último dia com a mesma dignidade com que viveu. Houve momentos em nossas últimas caminhadas, que meus olhos lacrimejavam, e ele, mesmo fraco, vinha se encostar em mim, como se me consolasse. Que força tem um ser que, mesmo à beira da morte, cuidava do meu coração?
Na madrugada em que ele partiu foi como um corte invisível. O corpo dele descansou, mas algo em mim também se deitou ao lado, cansado. Fiquei um tempo olhando para ele, antes de o deixar aos cuidados dos veterinários. Chegando em casa senti o espaço vazio de onde ele costumava se deitar ao lado de nossa cama. Ainda espero, como quem espera o inefável, escutar o som de seus passos que não mais virão.
Mas, com o passar dos dias, algo vem mudando. Percebo que o Aslan não foi embora por completo. Ele ficou dissolvido no ar, espalhado pela casa, impregnando tudo com a memória de sua presença. Ele está na coleira que guardo, nas pegadas que o tempo não apaga, nas manhãs em que ainda sinto o impulso de sair para passear. Está no vazio que tem a forma de sua presença.
Montaigne escreveu: “A amizade alimenta o espírito e cura a alma.” E talvez eu possa dizer o mesmo sobre esse laço entre homem e animal, um amor que não precisa de palavras, mas que diz tudo.
Há amores que são como rios subterrâneos: mesmo quando desaparecem da superfície, continuam a correr por baixo da terra, silenciosamente. O amor que sinto pelo Aslan é assim. Ele me ensinou a amar do modo mais simples, mais gratuito, mais inteiro. Em seus olhos, eu aprendi o que é a pureza do olhar que não julga. Em sua presença, aprendi o valor de ser confiável. Em sua despedida, aprendi que o amor verdadeiro não se mede pela duração, mas pela intensidade com que transforma quem o vive.
Alguém disse que “o amor é o último teste e a última escola”. E eu creio nisso. Aslan foi um professor paciente. Mostrou-me o que tinha que mostrar no tempo que esteve conosco. Nem mais, nem menos. Apenas o que é essencial. Mostrou-me também que amar é também saber deixar ir. Que a saudade é uma forma de amor que muda de roupa, mas não de essência. É uma forma de mostrar que as memórias afetivas nos constituem.
Às vezes penso que os cães são mensageiros. Não no sentido místico, mas simbólico. Eles carregam algo que perdemos: a inocência primordial. Não guardam rancor. Não mentem. Não planejam vingança. Apenas amam. E talvez por isso, quando morrem, deixam uma saudade que é, paradoxalmente, uma presença.
Lembro-me de um filósofo que dizia: “O amor é o único meio pelo qual nos aproximamos do eterno.” Ao olhar para Aslan, eu me sentia próximo de algo maior do que eu, uma espécie de graça silenciosa. Ele me ligava ao mistério da vida, e ao mistério de Deus.
Muitos dizem que os cães não têm alma. Eu discordo. Se alma é aquilo que sente, que reconhece o outro, que vibra com o bem, que responde ao amor então Aslan era pura alma. Alma com pelos dourados e um coração enorme e pequenas peraltices.
Hoje, quando penso no Aslan, não o vejo como ausência, mas como herança. Ele me deixou a lição do contentamento. A alegria de viver o momento. A alegria de amar sem reservas. A alegria de ser leal, mesmo quando as pessoas e o mundo parecem injustos.
Ele também nos deixou a lição da resiliência. Lutou contra o câncer como um guerreiro silencioso. Ensinou-nos que a vida não se define pelo que perdemos, mas pelo que amamos.
Por fim, deixou-me a lição da lealdade, uma palavra que se gasta fácil na boca dos humanos, mas que nele era verdade encarnada. Ele estava lá em todos os dias: bons, maus, neutros. Nunca se ausentou. Estar era seu dom.
Aprendi com Aslan que o amor é presença, não posse, não controle. Presença sem pedido ou necessidade, apenas presença. Ele me amava e, ao mesmo tempo, era livre. Havia nele uma fidelidade que não aprisionava. Um amor que não exigia reciprocidade, apenas compartilhava o que tinha: alegria, ternura, companhia.
Talvez por isso sua ausência seja tão sentida: porque foi uma presença total.
Senti culpa, por um tempo, por não poder fazer mais. Por não ter lhe prolongado a vida. Mas depois percebi que o amor não é um contrato de cura, é um pacto de cuidado. Cuidamos dele e ele cuidou de nós. Isso basta. Agora ficam a aprendizagem, as memórias afetivas, e o vazio nos afetos.
O filósofo Albert Schweitzer dizia que “até que alguém tenha amado um animal, parte da alma permanece adormecida”. Talvez tenha sido isso. Aslan despertou em nós algo que estava dormindo: uma ternura antiga, um pedaço da infância, a lembrança de afetos que o tempo havia soterrado.
Hoje, quando vejo outros cães brincando, sinto uma mistura de saudade e gratidão. Saudade do que foi, gratidão pelo que ficou. Porque o Aslan continua comigo, não na forma que os olhos veem, mas na forma que o coração reconhece.
Ele me ensinou que a vida é breve, mas o amor é vasto. Que o corpo é finito, mas o vínculo é infinito. Que morrer é apenas mudar de lugar no mapa do afeto; e, quando caminho sozinho, ainda escuto o som das suas patas ao meu lado. Talvez seja apenas o vento. Talvez seja ele. Mas, de qualquer forma, sorrio.
No fim das contas, percebo que o amor é o que nos torna humanos. E, curiosamente, às vezes é um animal que vem nos ensinar isso. Aslan foi meu espelho e meu companheiro mais presente. Ensinou-me que viver é servir, brincar, cuidar, confiar e seguir. Que o amor verdadeiro não precisa de aplauso, apenas de presença. Que a alegria é uma forma de resistência.
Nietzsche, novamente, dizia que “o que é feito por amor está sempre além do bem e do mal”. E é isso que fica: um amor que não se explica, mas que ilumina. Aslan não está mais aqui, mas tudo o que ele foi está. Sua coragem, sua travessura, sua alegria. Seu jeito de olhar, sua forma de encarar a vida, como se dissesse que tudo, no fim, dá certo.
E talvez seja isso mesmo: o amor não morre, apenas muda de forma. Hoje ele corre em outro campo, livre. E eu, aqui, sigo caminhando, levando dentro de mim o rastro luminoso do meu companheiro dourado, de quatro patas.
Como dizia Mark Twain, “Se há um paraíso, é certo que ele está repleto de cães.”
Reflitam em paz!
Homero Reis
Porto de Galinhas/PE
Outubro/2025




