A ESQUIZOFRENIA ORGANIZACIONAL

Reflexões sobre Coerência, Relações e Sentido©[1]

 

Quando utilizo a expressão “esquizofrenia organizacional”, não me refiro a um diagnóstico clínico, mas a uma metáfora poderosa para descrever o desencontro entre o que se proclama e o que se pratica. É um hiato que separa valores anunciados de condutas efetivas; um descompasso que se manifesta tanto em instituições quanto em pessoas. No fundo, é a incoerência como modo de existência: uma vida em que se defende a ética no discurso e se pratica a transgressão nos bastidores, em que se fala de cuidado mas se age com descaso, em que se promete inclusão mas se reproduz exclusão. Essa incoerência, embora muitas vezes silenciosa e imperceptível no início, vai corroendo os alicerces da confiança, minando a credibilidade e desestruturando os vínculos que sustentam toda forma de convivência. Como se isso não bastasse, a esquizofrenia organizacional bloqueia as ações de longo prazo, minando o propósito das instituições. Isso porque constrói uma agenda oculta. Coisas são ditas “nos bastidores” e não sustentadas na vida pública; onde “sinceridade” é confundida com agressividade, questões pessoais disfarçados de “compromissos”, solidariedade encobrindo conflitos de interesse.

 

A esquizofrenia, em seu conceito técnico, é um transtorno mental, marcado por uma profunda dissociação entre percepção, pensamento, emoção e comportamento. Quem vive com essa condição experimenta uma ruptura na integração da realidade: acredita em coisas que não existem, ideias que não encontram base no mundo objetivo, sente afetos que não se ajustam às circunstâncias. Suas consequências traduzem um empobrecimento da vida emocional e social. A esquizofrenia é antes de tudo uma fragmentação da percepção, da razão, da afetividade e da conduta.

 

Quando transporto essa conceituação para o universo das organizações, encontro um paralelo inquietante. Vejo instituições que, como sujeitos em sofrimento psíquico, vivem uma cisão interna entre o que percebem, dizem, o que sentem e o que fazem. O discurso institucional, como um delírio socialmente aceito, anuncia valores elevados: ética, sustentabilidade, inclusão, bem-estar. Mas a prática cotidiana revela outra realidade, muitas vezes contraditória: ciúmes, invejas, comportamento “bate-assopra”, exploração de pessoas, descaso ambiental, exclusão velada, sobrecarga de trabalho. É como se a organização tivesse suas próprias alucinações, vendo-se como algo que não é, projetando uma imagem que não se sustenta na experiência real de quem a habita.

 

Nesse sentido, a esquizofrenia organizacional não é apenas incoerência. É uma ruptura do vínculo entre palavra e gesto, entre intenção e ação, entre identidade proclamada e vida concreta. Tal como no indivíduo em sofrimento, a organização perde a unidade de seu “eu” coletivo.

 

Costumo dizer que essa esquizofrenia é como uma rachadura em uma grande parede. No começo, quase invisível, não incomoda. Mas, com o tempo, se amplia, e toda a estrutura começa a se fragilizar. Uma organização pode continuar erguida por algum tempo, sustentada por aparências, slogans ou marketing, mas inevitavelmente essa rachadura se tornará visível e colocará tudo em risco. O problema não é apenas institucional; ele se infiltra nas relações entre as pessoas que compõem a organização. Cada líder ou colaborador, cada cliente, cada fornecedor sente, mesmo que inconscientemente, o peso da incoerência.

 

Tenho acompanhado organizações que falam de resultados e futuros com entusiasmo em seus relatórios anuais, mas cujas práticas diárias revelam desperdício, poluição e desordem na gestão. Outras que proclamam a diversidade como bandeira, mas mantêm em seus conselhos e diretorias apenas perfis homogêneos, fechados à diferença. Propósitos louváveis e práticas corrosivas. Vejo empresas que se dizem defensoras da ética, mas convivem naturalmente com pequenas corrupções cotidianas, justificadas em nome da sobrevivência do negócio. Também encontro instituições que defendem publicamente o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, mas que esperam que seus colaboradores se sacrifiquem em jornadas intermináveis, respondendo e-mails de madrugada ou abrindo mão de finais de semana.

 

O curioso é que muitas vezes essa incoerência não nasce da má-fé, mas de um conjunto de concessões aparentemente inocentes. Surge quando se diz: “vamos abrir uma exceção só desta vez”, “todos fazem assim, não podemos ficar para trás”, “precisamos bater a meta a qualquer custo”. Essa repetição de pequenas justificativas acaba criando uma cultura em que o discurso e a prática se divorciam. O resultado é uma vida organizacional esquizofrênica: proclama-se um valor para fora, pratica-se outro para dentro. Mas o pior da esquizofrenia organizacional é a dificuldade das pessoas de conversarem amigavelmente sobre as “coisas que discorrem”. Tudo acaba sendo um grande “ringue” de exercício do poder, tentativa de manipulação, ameaças veladas.

 

As consequências são devastadoras. A confiança se desfaz, e sem confiança não há vínculo que sobreviva. A motivação se dilui, porque ninguém se sente mobilizado por discursos vazios. Os conflitos internos aumentam, porque os valores deixam de ser referência compartilhada e passam a ser apenas retórica. A reputação, que leva anos para ser construída, pode ser destruída rapidamente quando incoerências vêm à tona. Mas talvez a consequência mais dolorosa seja a perda de sentido: quando uma pessoa ou organização deixa de alinhar discurso e prática, perde também a razão pela qual existe, porque os valores deixam de ser bússola e se tornam apenas enfeite.

 

A origem dessa esquizofrenia é multifacetada. Na maior parte das vezes ela nasce da liderança. Um líder incoerente, que não encarna os valores que proclama, cria descrédito em cascata. Mas também pode nascer de falhas de comunicação, quando mensagens se perdem e a prática vai em direção oposta ao discurso. Outras vezes é fruto do excesso de foco em resultados, em que o número vale mais que a dignidade. Há também a cultura da aparência, que prioriza a imagem externa e descuida da prática interna, criando um teatro de valores que nunca se tornam realidade. Em muitos contextos, a causa é ainda mais sutil: o medo do conflito. As pessoas percebem incoerências, mas calam-se, receosas de desagradar ou de colocar em risco sua posição. O silêncio, nesse caso, se torna cúmplice da fragmentação. Mas também há o caso dos “ultra comprometidos”; ou seja, pessoas que se julgam detentores das “verdades do negócio” e, em nome disso, perdem a elegância e o trato cortes com os demais.

 

Superar a esquizofrenia organizacional exige coragem e humildade. Coragem para enfrentar-se a si mesmo em um processo de autoconhecimento, como também para enfrentar dilemas éticos e para recusar atalhos convenientes que traem os valores fundamentais. Humildade para admitir erros, assumir vulnerabilidades e abrir espaço para conversas sinceras. A coerência não se constrói com discursos apenas, mas com gestos cotidianos, às vezes simples, mas sempre consistentes. Um pedido de desculpas sincero pode reconstruir mais confiança do que uma campanha de marketing milionária. Uma decisão difícil, tomada em nome de um valor ético, pode inspirar mais lealdade do que qualquer incentivo financeiro. A competência de atuar em grupo, buscando o consenso, vale mais do que a arbitrariedade de uma ação isolada, ainda que legítima. Entendendo que às vezes “posso fazer, mas não devo”. Esse discernimento nos conduz à saúde organizacional.

 

Nesse ponto, percebo como a Inteligência Relacional se apresenta como um verdadeiro antídoto contra a esquizofrenia. Ela nos lembra que o valor de nossas ações não está apenas no que pretendemos, mas no que o outro percebe, sente e experimenta em contato conosco. Não refere a como atuo na minha “boa vontade”, mas como o outro percebe isso e como o “meu modo de ser” impacta os outros. Somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo efeito que causamos. Isso significa que não basta ter boas intenções: é preciso alinhar o discurso às práticas de forma que o outro possa experimentar a coerência em cada gesto.

 

A coerência, nesse sentido, é mais que uma virtude: é a garantia de segurança relacional. Quando ajo em consonância com aquilo que proclamo, ofereço ao outro um espaço previsível e confiável. A confiança nasce dessa previsibilidade. A incoerência, ao contrário, gera incerteza, porque nunca se sabe qual versão da organização “está funcionando”: a do discurso ou a da prática. E a incerteza é corrosiva para qualquer vínculo.

 

A vida me mostrou que a coerência não significa perfeição. Significa autenticidade. Implica mostrar-se vulnerável, assumir limites, pedir desculpas quando necessário e entender que é na qualidade das relações que construímos o futuro. É justamente na vulnerabilidade que a humanidade se manifesta, e isso não fragiliza os vínculos; pelo contrário, fortalece-os. Quando um líder reconhece que errou e se dispõe a corrigir o rumo, inspira mais confiança do que quando julga estar sempre certo.

 

As aplicações práticas dessa reflexão são inúmeras. No campo da convivência humana corporativa, coerência significa transformar o discurso de cuidado em políticas concretas de bem-estar. No marketing, significa que as promessas feitas devem corresponder à experiência entregue, sob pena de transformar as relações em engodos. Na governança, significa alinhar relatórios de desempenho e sustentabilidade às práticas diárias, evitando o risco da “maquiagem verde”. De fato, refere-se à prática de uma empresa ou instituição que divulga(interna ou externamente) uma imagem de sustentabilidade, responsabilidade e coerência que não correspondem às suas ações reais (internas ou externas). Ou seja, usa-se um discurso ou marketing apenas para melhorar a reputação, sem mudanças consistentes na suas ações cotidianas. Na educação corporativa, significa ensinar que ética e coerência não são acessórios, mas fundamentos. Até mesmo nas relações familiares, coerência significa viver aquilo que se ensina, para que os filhos aprendam mais com o exemplo do que com as palavras. Para a liderança, significa também ser exemplo de fato.

 

Percebo que a coerência é um processo “terapêutico” contínuo contra a esquizofrenia organizacional, e nunca um estado acabado. Ela nasce do autocuidado, porque não posso ser coerente se vivo em contradição comigo mesmo. Ela se alimenta da escuta ativa, porque é ouvindo o outro que percebo minhas incoerências. Ela cresce na responsabilidade compartilhada, porque a cultura de uma organização não é obra apenas da liderança, mas de todos. E ela se consolida na coragem ética, quando assumimos a decisão de permanecer fiéis aos nossos valores, mesmo quando isso custa caro.

 

Gosto de pensar na esquizofrenia organizacional como um espelho incômodo. Ela nos mostra nossas contradições, expõe nossas feridas, mas também nos convida à transformação. Onde há incoerência, há possibilidade de aprendizado. Onde há fragmentação, pode nascer reconciliação. Cada contradição é um chamado à coerência, cada falha é um convite à responsabilidade. O risco é real, mas a oportunidade também é.

 

No fim, acredito que a coerência é o maior patrimônio que uma pessoa ou organização pode possuir. Não se conquista de uma vez por todas, mas se cultiva em pequenas escolhas diárias. É ela que sustenta reputações, que fortalece vínculos e que dá sentido ao trabalho. Quando penso no legado que desejo deixar, não me interessa ser lembrado pelas palavras bonitas que escrevi ou pronunciei, mas pela coerência entre o que disse e o que pratiquei. Porque, no fundo, é isso que permanece: a confiança que inspirei, os vínculos que construí, o sentido que ajudei a semear.

 

E se a esquizofrenia organizacional é um risco constante, ela também é um chamado à vigilância permanente. Cada gesto incoerente é um lembrete de que precisamos ajustar o rumo. Cada contradição percebida é uma oportunidade de recomeço. Ser coerente é um exercício de humanidade, uma escolha diária de alinhar discurso e prática, palavra e gesto, valor e conduta. É nesse alinhamento que se constrói a verdadeira grandeza das pessoas e das instituições.

 

Reflitam em paz!

 

Homero Reis

Brasília,outubro/2025

Homero@homeroreis.com

 

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